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‘Brasileiros tomarão a decisão certa: o lado da vida’, diz Francia Márquez

Em entrevista exclusiva para a Alma Preta, a primeira vice-presidenta negra da Colômbia falou sobre as eleições no Brasil, os desafios do novo governo colombiano e as ações para preservação da Amazônia

Imagem: Pedro Borges

Foto: Imagem: Pedro Borges

28 de outubro de 2022

Francia Márquez, primeira vice-presidenta negra da Colômbia, e Gustavo Petro, ex-guerrilheiro do grupo M-19, foram eleitos em 19 de junho e formam o primeiro governo de esquerda do país. No início do mandato, que se iniciou em 7 de agosto, Francia Márquez recebeu a equipe da Alma Preta na residência oficial da vice-presidência e conversou sobre as eleições no Brasil e os desafios colocados para pessoas negras do continente.

Ela não declarou apoio a nenhum candidato para evitar problemas diplomáticos, mas reafirmou a confiança na escolha do eleitorado. “Brasileiros tomarão a decisão certa: o lado da vida”. 

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Francia Márquez esteve com Lula em 26 de julho, em São Paulo, quando se reuniu com o líder das pesquisas de intenção de voto para a presidência. A agenda não foi oficial, porque Francia Márquez e Gustavo Petro ainda não haviam sido empossados. Ela não se encontrou com o Presidente da República, Jair Bolsonaro, ou o vice, Hamilton Mourão.

Durante o diálogo com Lula, ela reforçou a importância de uma mulher negra ocupar o mesmo cargo dela no Brasil. “Agora é a vez das mulheres negras. No Brasil, as mulheres negras são maioria, mas continuam sendo deixadas para trás. É hora das mulheres negras assumirem a liderança no Brasil, na América Latina, para impulsionar as demandas de nossos povos”. 

No dia 18 de outubro, um dia antes da entrevista, o governo colombiano anunciou a criação do Ministério da Igualdade e Equidade, que ainda precisa da aprovação do legislativo. A pasta terá o objetivo de alcançar igualdade salarial para homens e mulheres e desenvolver reformas, como a agrária, que devem beneficiar povos negros e indígenas. “Chegar à Vice-Presidência não é o fim, é um meio. O objetivo é garantir que negros, indígenas e toda a humanidade vivam livres e com dignidade”. As mudanças podem ser percebidas no staff da vice-presidenta, composto em sua maioria por pessoas negras, com destaque para as mulheres. 

A vice-presidenta da Colômbia é do departamento de Cauca, da região do Pacífico, onde há grande concentração de pessoas negras, e tem uma trajetória marcada pela luta contra a extração de minérios da região e em defesa dos recursos naturais. No poder executivo, ela pretende construir políticas de proteção ao meio ambiente, propostas que podem ser executadas em parceria com o Brasil.

“Em conjunto com o Brasil, pode-se enfrentar o crime de mineração e desmatamento, mas também liderando um fundo binacional para beneficiar economicamente as comunidades locais por sua contribuição para a conservação da biodiversidade que transcende nossas fronteiras. Esperamos que isso possa ser feito não só com o Brasil, mas também com Peru, Equador e Bolívia, que compartilham conosco esse tesouro que está ameaçado”.

Assim como o Brasil, a Colômbia tem um histórico de política de guerra às drogas com efeitos sobre os chamados grupos étnicos, ou seja, as comunidades negras e indígenas do país. A Comissão da Verdade do país sobre o conflito armado, que contou com a participação de grupos narcotraficantes, apontou 16 localidades de maior tensão na região pacífica do país e dedicou um capítulo exclusivo dos impactos da guerra sobre esse grupo. Para avançar com a agenda, Francia afirma necessitar da colaboração dos demais países da América Latina e dos Estados Unidos. 

“O tráfico não vai acabar se as drogas não forem legalizadas na Colômbia. Mas isso não passa por uma decisão deste país, isso passa por uma decisão da América Latina. Passa por uma decisão dos Estados Unidos, passa por uma decisão global para resolver esse problema. A política antidrogas fracassou em nosso país e custou à América Latina um milhão de pessoas assassinadas. A maioria de pessoas empobrecidas, e muitas negras”.

francia 1Francia Márquez, de 40 anos, é natural da cidade de Suárez (COL) | Foto: Karen Gómez/Vice-presidência

Confira a entrevista na íntegra

A Colômbia parece viver um momento semelhante do Brasil de maior orgulho negro. O país elegeu pela primeira vez uma mulher negra como vice-presidenta, ampliou a bancada afro no congresso de 10 para 17 cadeiras, e aguarda a criação do Ministério da Igualdade e Equidade. O que mudou na Colômbia? 

A mudança não começou agora. Os negros resistem há muitos anos na Colômbia, desde os tempos da escravidão. Negros e indígenas neste país são os que mais sofreram com o conflito armado e os que vivem nas condições mais extremas de pobreza. Negros são aqueles que não tiveram chance de uma vida decente e ainda enfrentam muitos obstáculos para acessar serviços básicos, água potável, educação, saúde, moradia digna.

Eles também não tinham representação política nesse nível. Quando eu disse que ia concorrer à Presidência, os negros inicialmente não acreditaram. Disseram que eu estava louca, ‘o que estava acontecendo comigo?’, porque nos ensinaram a nem sonhar ou ter aspirações, a acreditar que esses lugares são de brancos. E não de qualquer um, há brancos empobrecidos, mas dos brancos de elite.

De uma forma particular, o que sinto é que, quando coloquei meu nome, houve muita resistência, até mesmo da esquerda. Eles disseram que não era a minha hora e que eu tinha que esperar. Eu disse: ‘Esperar até quando? Como negros, esperamos 500 anos. Não vamos esperar mais, porque somos filhos de mulheres negras e indígenas que estão morrendo de fome, que vão para a guerra, que não têm educação, que não têm o direito de sonhar’.

Falei para Lula: ‘Agora é a vez das mulheres negras. No Brasil, as mulheres negras são maioria, mas continuam sendo deixadas para trás. É hora das mulheres negras assumirem a liderança no Brasil, na América Latina, para impulsionar as demandas de nossos povos’.

Este não é o fim, chegar à Vice-Presidência não é o fim, é um meio. Até chegar à Presidência não é o fim, é um meio. O objetivo é garantir que negros, indígenas e toda a humanidade vivam livres e com dignidade. Chegou a hora de mais de 200 milhões de afrodescendentes da América Latina se unirem e traçarem agendas políticas que enfrentem o racismo estrutural. 

O partido Pacto Histórico foi o primeiro da esquerda a vencer na Colômbia. Não só no poder Executivo, mas obteve um cenário favorável no Legislativo. Existe uma expectativa no país e na região de que mudanças profundas virão da Colômbia nos próximos anos. Como vocês têm lidado com essas expectativas do povo?

Temos enormes desafios. O Pacto Histórico, que hoje tem a maior bancada do Legislativo, com total paridade de gênero, não consegue ser maioria sozinho. Cabe a nós formar uma coalizão de Governo com setores que não sejam tão progressistas quanto nós. De alguma forma, isso não vai permitir um avanço tão rápido nas transformações estruturais que buscamos. Mas acho que podemos dar alguns passos importantes. Por exemplo, a criação do Ministério da Igualdade em um dos países mais desiguais do mundo. Talvez nossa coalizão aprove este projeto que apresentamos ontem. 

Esperamos que se possa avançar nessas reformas profundas de que a Colômbia precisa e que exigem muito mais de quatro anos. Isso não significa que o presidente Petro e eu vamos nos agarrar ao poder, mas implica que um projeto real de sociedade requer muito mais tempo para consolidar as mudanças estruturais.

O Brasil vive um momento delicado. Há uma disputa eleitoral no país entre Jair Bolsonaro, que já criticou o novo Governo colombiano o acusando de querer “soltar todos os meninos presos”, e Lula, com quem você esteve em São Paulo. Na passagem pelo Brasil, já eleita vice-presidente, você declarou apoio a Lula. Por que optou por ele Lula? O que os governos colombiano e brasileiro, seja qual for, poderiam fazer pelas comunidades afro dos dois países?

Eu disse isso antes da posse e agora posso ser acusada de me intrometer na política brasileira. Não vou dizer o que penso. A foto entre mim e Lula diz tudo.  Eu acho que as pessoas deveriam tomar boas decisões, e os negros no Brasil deveriam fazer isso porque eles são a maioria. O Brasil tem a chance de levantar a cabeça e definir seu próprio rumo.

Quando estive lá com Lula, disse a ele: ‘Brasil e Colômbia têm uma responsabilidade enorme em relação à justiça racial na América Latina’. Se a Colômbia é o segundo, o Brasil é o primeiro país com a maior população afrodescendente. Existe uma responsabilidade que nos cabe como região, mas também depende da própria população, que têm de tomar as decisões. É a decisão de se livrar de um jogo de opressão que tornou a vida de milhões de pessoas miseráveis. Eu confio que os brasileiros vão tomar a decisão certa: o lado da vida.

No Brasil, serão jovens, mulheres, negros, indígenas, os historicamente excluídos e a comunidade LGBTIQ+ que podem mudar a história. Por isso, desejamos boa sorte, que Deus o ilumine e que os ancestrais o protejam e o abençoem para que tomem a decisão certa.

francia 2Francia Márquez, primeira vice-presidenta negra da Colômbia, declarou apoio a Lula | Foto: Karen Gómez/Vice-presidência

Uma das prioridades para essa nova legislatura é o alcance da paz total, que avançou com a entrega das armas por parte das FARC e colocaria fim a um conflito armado existente desde 1964. Foram retomadas as negociações com o Exército de Libertação Nacional (ELN), a maior guerrilha armada do país. Existe a expectativa de firmar um acordo com a ELN e alcançar a paz total? Quais serão as estratégias para lidar com os ainda existentes paramilitares e os grupos de narcotraficantes?

Acredito que aqui há um compromisso com a paz total. Tanto do presidente Gustavo Petro quanto de mim e de todo o nosso Governo. Mas o mais importante é que a maioria dos colombianos quer viver em paz. A sociedade está comprometida com a paz. As pessoas cansaram de sofrer, de violência, e da dor. 

Por isso, fizemos um apelo nacional a todos os atores armados. Um dos que respondeu é o ELN, com o qual a mesa de diálogo já foi reiniciada. Outros atores ainda estão a caminho de avançar nessa possibilidade de diálogo. Mas agora o diálogo será com os jovens que estão em quadrilhas criminosas nos bairros populares das diferentes cidades. Eles também foram vítimas do conflito. Por exemplo, em Buenaventura, em Quibdó, no distrito de Aguablanca (Cali), esses jovens foram vítimas de exclusão, marginalização, falta de oportunidades e só encontraram o caminho da violência. É por isso que pensamos que devem ser criados espaços para esses jovens e oportunidades para a juventude colombiana em geral.

Há também os diálogos com os dissidentes, com os diferentes atores armados, incluindo os paramilitares, que continuam a violar os direitos do povo em muitas áreas. Com alguns, diálogos serão por meio da política, como é o caso do ELN, mas talvez outros por submissão à justiça. Isso está sendo avaliado caso a caso.

Um dos principais problemas da Colômbia, que inclusive motivou a guerra civil no país, iniciada em 1964, é a concentração de terras. As comunidades negras e indígenas relatam muitas dificuldades para terem os territórios reconhecidos pelo Estado. O que o Governo colombiano poderá fazer para que esses grupos tenham o direito à terra e uma garantia de segurança da vida?

A desigualdade neste país é evidente na concentração de terras produtivas nas mãos de poucos, enquanto a maioria está sem terra para produzir. O outro é o abandono estatal que tem existido em termos de investimento em áreas rurais pobres. Eles foram abandonados. Embora as pessoas produzam, não há estradas terciárias, não há conectividade, não há como transformar os produtos nas regiões. Isso levou as comunidades a plantar coca como opção de sobrevivência nesses territórios. Então eu acho que a questão da terra é central para uma política progressista que busca a dignidade das pessoas.

Avançou-se em um acordo feito por nossa Ministra da Agricultura com a associação de fazendeiros do país, dirigida por pessoas de direita que parecem ter entendido a importância de distribuir a terra.

Francia, você é uma ambientalista, que nasceu e foi criada em uma comunidade afro, que tem a sua vida e renda relacionada à floresta e ao rio. Colômbia e Brasil têm parte significativa da floresta amazônica e uma responsabilidade com a vida do planeta. Quais políticas pensam em adotar para diminuir o desmatamento na região? O que pode ser feito em parceria com o Governo brasileiro?

A Ministra do Meio Ambiente vem liderando um acordo para a Amazônia com as comunidades indígenas, camponesas e afros que vivem nela. É um acordo para transformar títulos da economia verde em um fundo para a sustentabilidade ambiental, para que possam ganhar renda enquanto cuidam de seu território. Um problema com os créditos de carbono é que havia terceiros mediando entre as comunidades e aqueles que pagam pelos créditos. Isso está sendo eliminado e já existe um mecanismo direto. Foi feito um fundo de conservação ambiental de cerca de 6 bilhões de pesos, para lidar com o desmatamento.

Por outro lado, o enfrentamento da criminalidade que desmata compete à Força Pública. Na Amazônia há uma grande ameaça das máfias do desmatamento, então deve haver uma política de interdição para enfrentar a destruição da floresta. Não só na Amazônia, mas nas selvas do Pacífico colombiano.

Em conjunto com o Brasil, pode-se avançar nesse sentido de enfrentar o crime em termos de mineração e desmatamento, mas também liderando um fundo binacional para beneficiar economicamente as comunidades locais por sua contribuição para conservar a  biodiversidade que transcende nossas fronteiras. Esperamos que isso possa ser feito não só com o Brasil, mas também com Peru, Equador e Bolívia, que compartilham conosco esse tesouro que está ameaçado.

Leia também: As muitas Francias do Brasil e da Colômbia

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