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Entenda como o racismo influencia a crise e a cobertura da imprensa sobre o Haiti

Pesquisador e jurista Marcos Queiroz, autor de livro sobre a influência da revolta haitiana no Brasil, explica o contexto da crise antes e após o assassinato do presidente Jovenel Moïse

Texto: Solon Neto | Imagem: Orlando Barría

Conflito no Haiti após assassinato de presidente

17 de julho de 2021

No dia 7 de julho de 2021, o presidente haitiano, Jovenel Moïse, foi assassinado em sua residência na capital do Haiti, Porto Príncipe. O magnicídio levou o Haiti de volta ao centro do noticiário internacional, com o predomínio de uma narrativa que retrata um país pobre, negro e instável.

Apesar da ampla cobertura, o tema racial foi escanteado e a contextualização histórica distorcida. É o que afirma à Alma Preta Jornalismo o pesquisador e jurista Marcos Queiroz, autor do livro “Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro: a experiência constituinte de 1823 diante da Revolução Haitiana”, que discute a influência da revolta haitiana no Brasil e na região.

“Para nós, negros na diáspora, o Haiti é quase como um laboratório, um laboratório do que se pode fazer com pessoas negras que tentam se autodeterminar, que tentam levar a sério aqueles ideais revolucionários de liberdade e igualdade”, afirma o pesquisador.

A revolução impensável e o país ‘que não pode dar certo’

O Haiti é, hoje, um país com cerca de 12 milhões de habitantes. A sua posição no Caribe, nas chamadas Antilhas Maiores, junto com Cuba, Porto Rico, República Dominicana e Jamaica, é considerada de relevância estratégica na região, principalmente para os EUA – destino da maior parte das exportações haitianas. Essa posição também se reflete dentro do país.

O pesquisador Marcos Queiroz explicita que as tensões internas no Haiti são historicamente marcadas pela presença de uma elite alinhada aos interesses estrangeiros, uma elite de pele mais clara, dos chamados mulatos, ou de educação “afrancesada”. Conforme Queiroz, esse contexto deve ser salientado para compreender a realidade haitiana, na qual conflitos internos são articulados ao racismo e aos interesses internacionais.

Para Queiroz não há dúvidas: “falar de Haiti é falar de relações raciais”. O jurista salienta que o país caribenho é um símbolo de resistência desde sua formação enquanto República, após realizar a primeira revolução de escravizados negros, em 1804.

Segundo o pesquisador, essa formação histórica continua explicando a realidade haitiana. “Isso já explica um pouco a dificuldade do Haiti em se afirmar como uma nação soberana, uma nação desprovida de interferência internacional e de tensões internas”, diz.

Citando o historiador haitiano Michel Rolph-Trouillot, Queiroz lembra que, no contexto de naturalização do racismo no século XIX, a revolução haitiana era algo “inimaginável”. Após sua realização, ela passou a ser “impensável”, dando início à luta por autodeterminação no país.

“Ela [a revolução haitiana] tem que falhar, é uma revolução que não pode dar certo, não pode servir de exemplo para outros negros ao redor do mundo”, explica Queiroz. “É uma reação racista, o mundo ocidental vai falar que aquele país não pode dar certo. A gente tem que entender que o que está acontecendo no Haiti vem disso”, acrescenta.

Queiroz argumenta que após a revolução teve início no Haiti um período que se estende até hoje, com incursões militares e bloqueios diplomáticos e econômicos. Um dos mais importantes e cruciais desses movimentos para o desenvolvimento haitiano foi realizado pela França ainda no século XIX, impondo uma pesada dívida financeira ao país insular. O fardo só foi vencido em 1947, quando o Haiti finalmente saldou a dívida com a ex-metrópole.

“Isso mina qualquer condição, você não tem reconhecimento diplomático, você não consegue comercializar, você não consegue ter relações políticas, você, além disso, vai assumir uma dívida com a sua ex-metrópole, uma dívida quase impagável. Tudo isso vai minar essa nação do ponto de vista do desenvolvimento”, detalha Queiroz.

O processo das intervenções estrangeiras continuou ao longo do século XX. Em 1915, os EUA invadiram o Haiti e permaneceram no país até 1934. Já na década de 1950, teve início a ditadura de François Duvalier, apoiada por Washington, um regime que durou até meados dos anos 1980.

Na década seguinte, o país conviveu com uma série de golpes, sanções econômicas e incursões militares estrangeiras. Em 1994, o Conselho de Segurança da ONU chegou a bloquear totalmente o Haiti. No mesmo ano, os EUA lideraram forças estrangeiras na ilha com o objetivo de retirar os militares que subiram ao poder através de um golpe contra o líder popular Jean-Bertrand Aristide, figura importante na história recente do país.

Mesmo com presidentes eleitos, o país viveu sob crises econômicas geradas pelos bloqueios e pela conturbada cena política, abrindo caminho para a ocupação da ONU, em 2004, com a famosa Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (MINUSTAH), sob a liderança do Brasil.

“São cerca de sete intervenções desde a década de 1980, a mais duradoura delas é a MINUSTAH, encabeçada pelo Brasil. [O Haiti] é um país que luta desde 1804 para se autodeterminar. E tudo isso só se explica pelo racismo. Obviamente, pela lógica imperialista que paira historicamente sobre o Caribe, particularmente, mas também pelo racismo. Aquela República negra que não pode dar certo que não pode servir de exemplo para outras pessoas negras na diáspora e também na própria África”, ressalta o jurista Marcos Queiroz.

O papel da mídia e os estereótipos racistas

Após o assassinato de Jovenel Moïse, a mídia internacional voltou a discutir o Haiti. Para o pesquisador Marcos Queiroz, a cobertura geral, principalmente no Brasil, foi racista e estereotipada.

“A mídia, desde o assassinato de Jovenel Moïse, corrobora todo esse imaginário racista sobre o Haiti. Eu, particularmente, vi pouquíssimas matérias da grande mídia brasileira que tenham uma cobertura que não seja profundamente racista”, aponta.

Para Queiroz, em geral, a cobertura reforçou estereótipos de um país ingovernável e incapaz de se autodeterminar. Da mesma forma, o pesquisador salienta a falta de cuidado em alguns títulos que chamaram Moïse, um homem negro, de “homem banana”, devido à sua atividade empresarial no setor.

“Em nenhum momento a pessoa pensa que escrever logo isso na manchete está ratificando dois imaginários racistas sobre uma República negra e sobre um país caribenho: associar um homem negro a bananas […], e a outra ideia racista é a de República das bananas”, detalha o pesquisador, que afirma que essas escolhas apontam ausência de reflexão.

Marcos Queiroz também afirma que o interesse sobre o Haiti apenas em momentos de crise reforça esse mesmo caráter. “O Haiti é, talvez, um dos países do mundo que mais produziu poetas, artistas plásticos, romancistas de alta qualidade ao longo do século XX. Quando [Alejo] Carpentier vai começar a ideia de realismo mágico é em uma visita ao Haiti. O Haiti é importante para o imaginário de resistência na diáspora – a imagem de Toussaint L’Ouverture que pintava o Harlem Renassaince nas periferias de Nova York”, explica.

Queiroz acredita que o mesmo modus operandi se aplica à cobertura local, por exemplo, sobre as periferias no Brasil. Segundo ele, isso mostra como o Haiti é um exemplo paradigmático, que explicita uma visão geral sobre os negros no mundo inteiro.

“O Haiti é um país que tem uma complexidade […], mas só vai virar notícia nesses momentos. Momentos que dizem: o destino do Haiti é ser isso, é ter presidente assassinado, é ter terremoto, é ter desastre, é ter golpe de Estado, é ter intervenção. Quando a gente só noticia nesses momentos a gente ratifica esse imaginário, de que esse país nasceu para dar errado, de que nasceu para cumprir o destino de que os negros não podem se autodeterminar”, aponta.

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