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Igrejas negras nos EUA: resistência ao racismo e alvo do supremacismo

Apesar das mudanças históricas, os negros norte-americanos seguem a se organizar no campo político em torno das igrejas; espaços têm se estruturado para evitar casos de violência

A montagem mostra a bandeira do brasil com o termo amor, ordem e progresso

Foto: Vinícius Araújo/Alma Preta jornalismo

1 de agosto de 2022

“A Igreja tem sido a âncora por toda a história dos afro-americanos. É aquilo que tem nos ajudado contra as opressões”, é o que diz Goldie Wells, vereadora da cidade de Greensboro. O município, com 294 mil habitantes e localizado no estado da Carolina do Norte, teve a igreja como um espaço importante para a luta pelos direitos civis e hoje segue como pilar na luta pela vida dos afro-americanos, de acordo com a política.

Ela é frequentadora da Igreja Batista Wells Memorial, cujo líder é o Bispo Doutor Herman Platt. De acordo com o site da Igreja, o espaço tem o objetivo de “influenciar a humanidade por meio da testemunha do evangelho para criar discípulos, e para impactar o mundo por meio da oração, o louvor e a adoração”.

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Adrienne Israel, presidenta do conselho da Wells Memorial, acredita que todas as igrejas afro-americanas são importantes para a superação do racismo e na prestação de serviços para as comunidades negras. “Todas são essenciais, não apenas a nossa. Todas elas têm sido pioneiras para as nossas comunidades”, conta.

A comunidade de Wells Memorial começou a ser formada em 1927, com encontros para oração na casa da família de Elder Park. No ano seguinte foi organizada a igreja, sob a liderança de Elder Malone.

Em 1941, o espaço tem uma virada, com o posto de bispo assumido por Wyoming Wells, quem coordenou a igreja por 34 anos. Em 1946, a igreja iniciou o primeiro programa de rádio organizado pela Congregação Negra de Greensboro. Os programas são descritos como importantes na mobilização da comunidade no período da luta pelos direitos civis.

Wells Memorial 1

Imagem da cerimônia dominical da Wells Memorial (Foto: Pedro Borges/Alma Preta)

A fé da comunidade negra norte-americana é diversa, com pessoas ligadas às igrejas protestantes e até mesmo a religiões de matriz africana, caso do Ifá. A maior conexão entre pessoas negras está com as igrejas batistas, caso da Wells Memorial, espaços que permitem uma maior autonomia aos bispos e pastores e tem um modelo menos engessado na comparação com os formatos presbiterianos.

Ronilso Pacheco, pesquisador em teologia da Universidade da Columbia, em Nova York, explica que as lideranças desses espaços são determinantes para os caminhos a serem tomados pela igreja.

“Se você tem uma comunidade cuja liderança se reconhece na trajetória ou herança dos ‘pais e mães’ da luta pelos direitos civis, isso se reflete em ações mais incisivas, sermões mais incisivos, marchas, campanhas, uma escolha de lado da igreja. Mas também é preciso falar que em algumas igrejas negras pautas como gênero, sexualidade e aborto, por exemplo, sofrem resistências como em tantas outras mais conservadoras e brancas”.

A relação entre os afro-americanos e as igrejas, contudo, se alterou e não é mais a mesma da época dos direitos civis, segundo a vereadora.

“Nos dias de hoje continua tão importante quanto, mas porque nós atingimos alguma liberdade, isso tem feito vários afro-americanos se afastarem. Nós não temos as igrejas como âncoras das nossas comunidades, como costumávamos ter”.

A maior abertura política é apontada por Adrienne Israel como um dos fatores para alterar a percepção da realidade por parte dos afro-americanos. Um dos exemplos é o Black Caucus, encontro de congressistas negros dos dois partidos do país, os Republicanos e os Democratas. O comitê do Black Caucus hoje é formado por 58 membros, com a inclusão de dois senadores, todos democratas. Esse é o maior número de integrantes do grupo da história.

“Agora nós temos líderes políticos, não apenas os pastores do passado. Nós temos pessoas no governo em que podemos olhar como liderança, mas a igreja ainda é um espaço para as pessoas ficarem juntas”.

Outro exemplo dessa mudança está na estrutura e liderança dos movimentos sociais negros. Se na época dos direitos civis, a igreja era o fator central, hoje não é mais. Ronilso Pacheco apresenta como exemplo o Black Lives Matter, que tem um formato de organização diferente das igrejas.

“No movimento dos direitos civis a igreja tinha lugar central e havia uma luta para interferir na estrutura política, como pelo voto, que é de onde viria a mudança. No segundo, com o BLM, a igreja perde essa centralidade e existe até uma certa hostilidade com relação à figuras icônicas como Jesse Jackson e Al Sharpton”.

As alterações e perda de centralidade não minaram o poder de influência das igrejas para a comunidade negra, como explica Ronilso Pacheco. “Há igrejas que falam sobre a violência policial no seu estudo dominical, há igrejas que tem cartilha sobre como o jovem negro deve se portar em uma abordagem. Em muitos casos, a presença do pastor negro da comunidade é tão relevante na defesa de um jovem preso, e tão mais respeitada, do que a do próprio advogado”.

Supremacismo e a ameaça branca

Os EUA tiveram um processo de segregação racial institucionalizado pelas chamadas leis Jim Crow. Naquela época, existiam banheiros, bebedouros, assentos, e outros ambientes do cotidiano separados para negros e brancos. As igrejas não ficaram fora disso.

A Wells Memorial, localizada na cidade de Greensboro, na Carolina do Norte, é composta por pessoas negras. No dia em que as entrevistas foram feitas, durante um culto dominical, todos os presentes eram afro-americanos.

Além da segregação espacial, os norte-americanos convivem com grupos de supremacistas brancos, caso da Ku Klux Klan, e um contingente de pessoas armadas.

Pesquisa desenvolvida pelo Small Arms Survey (SAS), grupo baseado na Suíça, aponta a existência de 120 armas para cada 100 cidadãos norte-americanos em média. A quantidade média é a maior do mundo e tende a crescer, com a recente alteração da Suprema Corte do país. O tribunal decidiu, no dia 23 de junho, que os norte-americanos têm o direito de portar armas de fogo em espaços públicos para eventuais situações de autodefesa.

No dia 14 de maio, sábado, Payton Grendon matou 10 pessoas em um bairro negro no estado de Nova York. De acordo com Stephen Belongia, do FBI de Buffalo, o crime ficou caracterizado como de ódio. “Estamos investigando este incidente como um crime de ódio e um caso de extremismo violento com motivação racial”.

A segregação racial, os grupos supremacistas brancos e o armamento da sociedade alteraram a dinâmica das igrejas afro-americanas. Na entrada da Wells Memorial existe uma placa que proíbe os frequentadores do local de acessarem o espaço armados.

Mable Scott, apresentadora de rádio da WNAA e integrante da igreja, diz que há um aumento de estratégias de segurança em espaços organizados pela comunidade negra, não apenas as igrejas. “Todas as igrejas agora aumentaram os seus sistemas de segurança, com o objetivo de prevenir e de manter forasteiros e pessoas que querem iniciar distúrbios. Então isso é algo que todos precisam fazer e em fato muitas diferentes organizações, igrejas, escolas, negócios, organizações sociais, estão todas tentando aprender o que eles precisam saber para ficar seguros”.

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Entrada da Wells Memorial com o recado de que armas de fogo e armas em geral não são permitidas nesta propriedade (Foto: Pedro Borges/Alma Preta)

Ela não acredita que esse problema tenha que ser resolvido apenas pela comunidade negra e cobra uma maior participação dos congressistas norte-americanos para superar essa situação.

“Nós precisamos de mais ajuda dos nossos parlamentares nacionais para fazer mais para nos proteger das armas. Essas armas nem deveriam ser vendidas para as pessoas. As armas que estão sendo vendidas são as usadas pelo exército e nós não deveríamos viver em uma guerra”.

Dr. Martin Luther King Jr.

O principal ícone das igrejas norte-americanas na luta pelos direitos civis é Martin Luther King Jr. Baleado no dia 4 de abril de 1968, Dr. King, como é chamado pelos afro-americanos, é um dos ícones da garantia do direito ao voto e do fim da segregação racial institucionalizada nos EUA.

O pastor é responsável por célebres discursos, como o “Eu tenho um sonho”, e outros contrários à guerra do Vietnã e contra casos de violência contra pessoas negras. Dr. King também ficou marcado pelo discurso feito depois de um atentado, em 15 de Setembro de 1963, quando uma bomba explodiu em uma igreja batista que desenvolvia atividades pelos direitos civis. Na ocasião, três meninas negras de 14 anos, Addie Mae Collins, Carole Robertson e Cynthia Wesley, e uma de 11, Denise McNair, perderam as vidas. O ataque foi feito por integrantes da Ku Klux Klan.

Durante um discurso, feito na mesma igreja, no dia 18 de setembro, Dr. King falou do ódio racial e preferiu confortar os familiares das vítimas. “Assim quero que saibam hoje que vocês não estão sós. Vocês deram a este mundo crianças maravilhosas, que não viveram vidas longas, mas que viveram vidas significativas. Suas vidas foram dolorosamente curtas em quantidade, mas gloriosamente longas em qualidade. Como pais, nenhum outro tributo poderá ser-lhes tão valoroso”.

Adrienne Israel destaca a capacidade de articulação de Dr. King, motivo de inspiração e admiração.

“Ao longo dos protestos, muitas pequenas organizações de direitos civis surgiram por todo o país, em luta contra a segregação, e Martin Luther King foi capaz de aproximar todos, por conta do poder do espírito dele, e a sua habilidade de falar de maneira autêntica como alguém próximo a Deus”.

O pai de Goldie Wells, vereadora de Greensboro, trabalhou com Martin Luther King durante as mobilizações por direitos civis na cidade. O pai trazia excelentes referências sobre o ativista.

“Ele achava Dr. King um dos maiores homens que já viveu. Ele trouxe essa ideia de passeatas não violentas e, por isso, foi preso 87 vezes por desobediência civil. O Dr. King veio para a nossa casa duas vezes, e por esse motivo eu vendi a casa ao Estado da Carolina do Norte, e vai virar um museu”.

Questionado sobre a relevância de Luther King para os afro-americanos, Ronilso preferiu recordar um caso, do início da sua estadia nos EUA, em 2017.

“Eu tinha acabado de chegar, desci no Harlem, e estava procurando o apartamento de um professor amigo meu, que mora do lado da Riverside Baptist Church. Pelas ruas do Harlem, eu ia perguntando como eu chegava na Riverside Church, a igreja do Martin Luther King e absolutamente todas as pessoas que eu perguntava, quando eu falava ‘Martin Luther King’, me olhavam de cima a baixo, como se eu tivesse sido indelicado e me corrigiam, antes de explicar: ‘Doctor Martin Luther King'”.

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