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‘Negligência internacional piora crise no Sudão’, diz voluntário do Médico Sem Fronteiras

Em entrevista à Alma Preta, o engenheiro e especialista em Água e Saneamento Raphael Macieira relata os desafios enfrentados no combate à cólera no Sudão e a falta de visibilidade para a crise humanitária
Equipe do Médico Sem Fronteiras (MSF) cuida de uma paciente em um centro de tratamento de cólera, no Sudão.

Equipe do Médico Sem Fronteiras (MSF) cuida de uma paciente em um centro de tratamento de cólera, no Sudão.

— Paula Casado Aguirregabiria/MSF

1 de março de 2025

O aumento repentino de casos de cólera no Sudão levou hospitais ao limite e evidenciou falhas estruturais no sistema de saúde. Desde outubro de 2024, a organização humanitária Médico Sem Fronteiras (MSF) presta suporte ao combate à cólera nos hospitais de Kosti e Rabak. Até recentemente, os casos estavam em queda, chegando a menos de 20 atendimentos diários. 

No entanto, na noite de quarta-feira (19) a chegada repentina de 100 pacientes alterou o cenário. Na sexta-feira (21), mais de 800 estavam internados. Pelo menos 20 pessoas morreram no centro, e uma chegou sem vida. O aumento contínuo dificulta o controle dos registros pela equipe de resposta.

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Raphael Macieira, engenheiro civil e especialista em Água e Saneamento da MSF, esteve no Sudão em outubro do ano passado, no início  do surto, enfrentando desafios semelhantes aos atuais. Raphael era um dos responsáveis pela implementação de Centros de Tratamento de Cólera (CTCs) em Renk. Em entrevista à Alma Preta, o profissional compartilhou parte de sua experiência.

“Os hospitais estavam sobrecarregados e faltavam insumos básicos. Trabalhei em Renk, onde vi de perto o impacto da crise sanitária e a dificuldade de resposta”, afirmou Macieira.

Macieira explicou como os centros de tratamento foram fundamentais para salvar vidas durante o surto. “Os centros de tratamento de cólera são essenciais porque garantem um ambiente controlado, onde os pacientes recebem reidratação oral e intravenosa de maneira adequada. Sem isso, a taxa de mortalidade seria ainda maior”, destacou.

Guerra e deslocamento forçado

Além de presenciar a crise sanitária, Macieira ouviu relatos impactantes sobre a guerra no Sudão. “Os ataques eram constantes. Trabalhadores humanitários e civis me contavam sobre vilarejos destruídos da noite para o dia. Famílias inteiras fugiam sem ter para onde ir, levando apenas o que conseguiam carregar”, relatou.

Ele ouviu de sudaneses que as casas eram queimadas para impedir o retorno da população. “Muitas das pessoas com quem trabalhei estavam deslocadas pela segunda ou terceira vez. Elas não tinham mais um lar para onde voltar”, contou.

A guerra também impactou diretamente os serviços essenciais. “As estações de tratamento de água não funcionavam porque a infraestrutura estava destruída ou sem energia. A cada novo ataque, os sistemas colapsavam novamente. Isso fez com que a população recorresse a fontes de água contaminadas, o que agravou a disseminação da cólera”, explicou Macieira.

Além da precariedade dos serviços, o aumento do número de deslocados internos agravou a crise. “Uma cidade que antes tinha 40 mil habitantes passou a ter 80 mil, sobrecarregando os serviços básicos”, afirmou.

Relatos e sentimentos ao deixar o Sudão

O engenheiro compartilhou um dos momentos mais marcantes durante a sua passagem pelo país africano, uma conversa com uma mulher sudanesa. Eu perguntei o que ela faria se a água acabasse, e ela apenas respondeu: ‘moskila’ — problema. A forma como ela disse isso, com os olhos cheios de preocupação, mostrou a gravidade da situação. Era uma questão de sobrevivência”, lembrou.

Macieira também vivenciou momentos de tensão. “Lembro de uma noite em que ouvimos tiros muito próximos do local onde estávamos. Todos ficamos em silêncio absoluto, apenas esperando que aquilo passasse. Não sabíamos se haveria uma invasão ou se precisávamos evacuar. A incerteza fazia parte da rotina”, contou.

Um senhor sudanês que conheceu em um campo de deslocados chegou a mencionar ao engenheiro que já havia perdido tudo três vezes. “A cada novo conflito, ele era forçado a fugir, deixando para trás família, casa e qualquer perspectiva de estabilidade. Esse nível de sofrimento constante é difícil de imaginar para quem nunca viveu algo assim”, revela o entrevistado.

Ao final de sua missão, Macieira revelou um misto de alívio e preocupação. “Era um alívio saber que estávamos ajudando, mas também havia uma sensação de impotência. A crise não acabou e a população ainda enfrenta desafios diários. Saber que talvez não houvesse ninguém para dar continuidade ao trabalho que fizemos era angustiante”, afirmou.

Ele descreveu a despedida do local como um momento difícil. “Muitas pessoas me agradeceram, mas eu sentia que não era suficiente. A sensação era de que estávamos remediando algo que, sem mudanças estruturais, voltaria a acontecer”, concluiu.

A comunidade de deslocados em que Raphael atuou em Renk, fronteira do Sudão com Sudão do Sul, foi forçada a fugir novamente após o anúncio de um novo ataque na região. O profissional não tem conhecimento do local onde eles se instalaram, mas garante que houve mortes no caminho.

Halima Abdurahman Dawud segura sua filha, Aszed Mohammed, que está recebendo uma vacina em Renk, no Sudão do Sul. (Foto: Evani Deboni/MSF)

Negligência internacional e impacto na população

Para Macieira, a falta de visibilidade internacional sobre a crise no Sudão contribui para a deterioração do cenário humanitário. “Quase ninguém no Brasil sabe o que está acontecendo aqui. A naturalização do sofrimento do povo africano dificulta a mobilização de ajuda. Se essa crise ocorresse em outro contexto, a resposta internacional seria muito mais rápida”, afirmou.

Macieira mencionou que em outras missões humanitárias observou padrões semelhantes de negligência. “Trabalhei na Palestina e no Chade antes de vir ao Sudão. Em Gaza, a destruição era visível, mas havia alguma atenção da mídia internacional. No Chade, vi refugiados sudaneses fugindo para lá, em uma crise que já dura décadas e quase ninguém fala sobre isso. Aqui no Sudão, a situação é igualmente grave, mas parece invisível para o resto do mundo.”

Ele destacou a importância da pressão global para que o Sudão receba o suporte necessário. “Precisamos cobrar posicionamentos e garantir que essa tragédia não passe despercebida. Sem uma ação concreta, quem sofre é a população”, concluiu.

As autoridades locais adotaram medidas emergenciais, incluindo a proibição do uso de carroças para coleta de água do rio e o reforço na cloração do sistema de distribuição de água. O mercado e a maioria dos restaurantes foram fechados para evitar a propagação da doença.


“Mesmo com essas medidas, a resposta precisa ser mais ampla. A crise sanitária no Sudão é um reflexo da instabilidade política e do descaso internacional”, concluiu Macieira.

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  • Giovanne Ramos

    Jornalista multimídia formado pela UNESP. Atua com gestão e produção de conteúdos para redes sociais. Enxerga na comunicação um papel emancipatório quando exercida com responsabilidade, criticidade, paixão e representatividade.

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