A República Democrática do Congo (RDC), 11º maior país do mundo e segundo do continente africano, vive um conflito armado há cerca de 30 anos. Focado na parte oriental do país, em cidades como Goma, na região do Kivu do Norte, a guerra já registrou aproximadamente 10 milhões de vítimas. A instabilidade coloca em risco a vida de jovens, sobretudo das mulheres, e o meio ambiente.
A resolução do conflito passa por um acordo com do Congo com a Ruanda, interessada nos minérios do país vizinho. De maneira oficial, a RDC vive uma tensão com diversos grupos armados, entre eles o M-23, milícia que supostamente recebe apoio ruandês. Informação publicada pelo New York Times sinaliza a existência de cerca de 120 grupos de combatentes na região.
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O presidente congolês, Félix Tshisekedi, coloca como medida essencial para a construção de um acordo de paz a saída do M-23 das áreas ocupadas na RDC. No dia 6 de julho de 2022, os presidentes do Congo e da Ruanda se encontraram para debater o conflito e, durante o diálogo, o governo congolês acusou o país vizinho de prestar apoio ao M-23, informação negada pelos ruandeses. No mesmo ano, as relações bilaterais entre os dois países foram suspensas. As duas nações também não emitiram posicionamentos para a reportagem sobre as razões oficiais das disputas.
Apesar do silêncio dos países, Prosper Dinganga, coordenador do coletivo A Voz do Congo, acredita na existência de cortinas de fumaça para a principal motivação da guerra. “O real motivo é saquear as riquezas do Congo”, afirma.
O jornalista Anicet Kimonyo, com experiência na cobertura do conflito, conta que a guerra tem momentos mais agudos, de maior intensidade. Morador da cidade de Goma, um dos epicentros da guerra, ele explica os locais de maior risco e a dinâmica dos ataques.
“Há algumas semanas, os rebeldes do M-23, apoiados pelo exército ruandês, relançaram as hostilidades após várias semanas de calmaria. Os confrontos estão concentrados nos territórios de Rutshuru, Masisi e parte de Nyiragongo”, explica.
O Kivu do Norte é a província com maior incidência de batalhas. A capital da região, Goma, tem hospitais apoiados por organismos internacionais como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), que percebeu um aumento do número de vítimas por armas pesadas, como armamentos de grosso calibre ou explosivos.
Porta-voz do CICV, Alyona Synenko visita hospitais em Goma, como o Dosha Hospital, onde há um centro cirúrgico e costuma se deparar com pessoas com ferimentos graves, mesmo crianças e mulheres. “A gente vê muitos ferimentos abdominais por explosivos e ferimentos muito grandes e difíceis de serem tratados. Eu vi recentemente o paciente mais novo que eu já vi, um bebê de dois meses e meio com um ferimento grave no abdômen”. De acordo com os médicos do hospital, o espaço lida com milhares de pacientes por semana.
Desde março de 2022, o conflito se intensificou, com maior reagrupamento do M-23, que passou a atacar a província do Kivu do Sul. A consequência dos ataques foram mais pessoas perdendo as suas casas, número estimado em 1,6 milhão de pessoas da região, segundo a ONG Médicos Sem Fronteiras. A perda de moradia e a vida em campos de refugiados criam novos desafios, como lidar com surtos de cólera.
Segundo Alyona Synenko, apesar das dificuldades de se fazer qualquer previsão dada a volatilidade dos fatos, o que se vê todos os dias é um conflito pesado, com a presença ostensiva de combatentes e de civis com a perda de residências. “Por isso, eu receio não ter elementos para ser otimista sobre a situação. Eu não consigo visualizar as coisas melhorando no futuro. Eu realmente espero estar equivocada sobre isso, mas a situação dos civis está ficando cada vez mais complicada”, diz.
Independente do futuro do conflito, a República Democrática do Congo está distante dos holofotes ocidentais. Apesar de todas as atrocidades e mortes decorrentes da guerra, o tema é pouco debatido pela sociedade e pela imprensa.
Para denunciar esse silêncio e todo o conflito, A Voz do Congo, um grupo de ativistas do país e residentes no Brasil, organizou uma manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo, no dia 24 de março, para pedir o fim da guerra. Em nota, o grupo afirmou que o ato tinha como objetivo tornar o espaço em um momento de solidariedade para “elevar as vozes daqueles que estão sofrendo no Congo”.
As riquezas naturais do Congo
O Congo é um dos países mais ricos em minérios do mundo. A nação é uma das principais produtoras de coltan, cobalto, entre outros. O país já foi descrito pela diplomacia brasileira como uma “aberração geológica“, por ter uma série de minérios em abundância. Para Anicet Kimonyo, “há muitas empresas multinacionais escondidas atrás dessa guerra”.
Ele afirma que as empresas preferem desestabilizar o país do que negociar com o governo congolês. “Em vez de vir fazer negócios com o Congo, essas empresas preferem apoiar esses grupos armados por meio de países vizinhos. Quando há tropas e insegurança, os minerais são extraídos e transportados através de Ruanda. É por isso que você notará que alguns países vizinhos são produtores de minerais, quando eles não têm nada em seu subsolo. Em vez de comprar os minerais diretamente do Congo, as multinacionais vão comprá-los em Ruanda”, relata.
Em abril de 2024, o governo da RDC notificou a Apple por extrair minérios “explorados ilegalmente” do país em processos marcados por violações de direitos humanos para a produção de aparelhos eletrônicos. No documento, consta a informação de que a Apple se beneficiaria do translado de minérios para Ruanda, segundo apuração da AFP.
Para além das extrações minerais, o palco do conflito é a Floresta Tropical do Congo, a segunda maior do mundo, atrás somente da Amazônia. A guerra na região gera impactos na fauna e na flora local.
Coordenador regional da África Central para a Campanha de Florestas do Greenpeace África, Raoul Monsembula, destaca que o conflito dificulta qualquer controle para a manutenção dos recursos naturais. “A exploração dos recursos naturais não é controlada nas zonas de conflito. Os rebeldes matam elefantes para obter o marfim e cortam árvores para vender e comprar armas e outros equipamentos de guerra”, aponta.
O país congolês possui mais de 60% da floresta da chamada Bacia do Congo, de acordo com o Green Peace África. A floresta é descrita como densa, úmida e com a capacidade de armazenar gigatoneladas de carbono. “Algumas paisagens de vegetação intacta estão nos pântanos e nessas paisagens também encontramos uma biodiversidade muito rica em sua fauna e flora. Além disso, há muitas áreas protegidas no Congo, mas os conflitos armados e a falta de gestão do governo não ajudam essas áreas a permanecerem protegidas”, complementa Monsebula.
A ONG internacional afirma que tem denunciado toda irregularidade ambiental no país, casos de corrupção no setor e a exploração insustentável de madeira no Congo. O grupo afirma desenvolver trabalhos com as comunidades locais para enfrentar o desmatamento e a atuação de empresários.
Os envolvidos no conflito
Ruanda lida com disputas internas, como as tensões existentes entre as Forças Democráticas de Libertação de Ruanda (FDLR) e o governo oficial do país. Sob a presidência de Paul Kagame, o país vive sob uma ditadura, sem liberdade de expressão e com um serviço secreto temido no continente africano. “Não existe liberdade de expressão, não há oposição política em Ruanda, a maioria dos opositores do regime vivem em exílio e sofrem perseguição”, conta Prosper Dinganga.
Apesar disso, Kagame reconheceu que o país serve como passagem dos minerais congoleses, mas chama atenção para a cumplicidade da comunidade internacional que se beneficia. O presidente afirmou que esses minerais eram direcionados para locais como Dubai, Israel e Rússia, por exemplo.
Outro ator importante do conflito é a Organização das Nações Unidas (ONU), que tem uma missão de paz no país chamada de Monusco, com a participação do exército brasileiro. A missão está em território congolês desde 2010.
Na República Democrática do Congo existem 22 militares brasileiros, que atuam em diferentes áreas, como comandante do Estado-Maior, cargo ocupado pelo general Miranda Filho, e outras funções como militares observadores, integrantes das brigadas de intervenção, equipe de treinamento de operações de selva, entre outras. A força internacional é composta por soldados de 51 países diferentes.
O Brasil ocupa essa função há anos, com o General Santos Cruz como primeiro oficial brasileiro na posição de Comandante do Estado-Maior, em 2013. Ele liderou ataques contra o grupo armado M23, com o intuito de recuperar territórios na parte leste do Congo.
As tropas brasileiras ocupam esse posto também por conta da familiaridade que têm na atuação em áreas de florestas tropicais, como é o caso da Amazônia. Por conta da experiência, o Exército Brasileiro treina os soldados congoleses para os combates.
“O Brasil é internacionalmente reconhecido como um dos países com melhor capacidade de realizar operações em ambientes de selva. Possuímos no Brasil o Centro de Instrução de Guerra na Selva, considerado uma referência no mundo. Essa capacidade de compartilhar nossa expertise aqui, por anos, com tropas de diversos países, tem contribuído para aumentar a capacidade combativa das tropas empregadas”, afirmam os militares brasileiros.
Depois de quase 25 anos em território congolês, havia uma expectativa de fim da Monusco, com a saída das tropas internacionais até o fim de 2024. A intensidade dos conflitos na província do Kivu do Norte alteraram o planejamento, com a permanência das forças sem nova data para o encerramento da missão de paz.
Colonialismo no Congo
Para entender os motivos do conflito na República Democrática do Congo, é necessário retornar ao período de colonização e ao processo de independência do país.
Entre 1884 e 1885, ocorreu a Conferência de Berlim, responsável por criar as bases de acordos para uma divisão de parte do continente africano entre as nações europeias. Até aquele momento, apenas os países da costa do continente haviam sido ocupados pelos europeus. Mesmo com um primeiro acordo para a área oriental ficar sob domínio francês, o Rei Leopoldo II da Bélgica passou a frente para ocupar a região e o território congolês se tornou uma propriedade particular do Rei Leopoldo II. Estima-se que durante a colonização do país cerca de 10 milhões de pessoas foram assassinadas.
Esse processo foi alterado com o movimento de independência do Congo, liderado pelo Movimento Nacional Congolês (MNC), cujo principal nome era Patrice Lumumba. A independência do país foi efetivada em junho de 1960, em um contexto de libertação de várias nações africanas.
Lumumba fundou o MNC em 1958, depois de se tornar presidente do Sindicato Independente dos Trabalhadores Congoleses. Ele era uma referência nos temas da unidade africana contra o colonialismo e de uma unidade nacional acima das diferenças étnicas.
O líder foi assassinado em 17 de janeiro de 1961, em uma operação militar que contou com apoio da CIA e do governo belga. No contexto da guerra fria, Lumumba fez acenos para a União Soviética e era visto com temor por parte do mundo ocidental capitalista. O desdobramento disso foi a chegada ao poder de Joseph Désiré Mobutu, que contou com o apoio das nações envolvidas na morte de Lumumba. “Esse sofrimento foi o colonizador que colocou. Tudo o que é ruim foi provocado pelo colonizador”, conta o artista plástico Shimbuyi Wetu, radicado no Brasil.
Depois de décadas no poder, Mobutu sofreu um revés na década de 1990. Entre 1996 e 1997, ocorreu a chamada Primeira Guerra do Congo, que apesar de ter um caráter civil, teve a participação de outros países da região, como Ruanda, Uganda e Burundi. Por conta do conflito, foi possível afastar da direção do país Mobutu. Laurent Kabila, que assumiu o posto, e contou com o apoio das forças estrangeiras regionais, logo rompeu com os países vizinhos, o que alimentou as tensões na região.
A Segunda Guerra do Congo ocorreu quase um ano depois da primeira, com o envolvimento de outros países do continente. Enquanto Uganda, Burundi e Ruanda decidiram atacar o governo de Laurent Kabila, Angola, Chade, Zimbabué e Namíbia apoiaram o então regime da RDC. Com duração entre 1998 e 2002, o conflito registrou mais de 4 milhões de mortes, o que o caracterizou como o conflito mais sangrento do planeta depois da Segunda Guerra Mundial.
Outro fator para entender o conflito é o genocídio em Ruanda, que entre 1993 e 1994 vitimou cerca de 800 mil pessoas, a maioria da etnia Tutsi. Depois do massacre, cerca de dois milhões de Hutus fugiram para a RDC, com receio de retaliação. A Frente Patriótica Ruandesa (FPR), composta por Tutsis, assumiu o comando de Ruanda e foi acusada de perseguir os opositores Hutus em território ruandês e congolês.
O exército de Ruanda também se aproximou de milícias Tutsi, que passaram a enfrentar o exército congolês em áreas, como o leste do país, próximos da cidade de Goma, onde existem refugiados e congoleses da etnia Hutu.
Violência de gênero
A Médicos Sem Fronteiras tem no país a sua principal atuação, com presença em 21 das 26 províncias da República Democrática do Congo, com foco em pessoas que foram deslocadas por conta do conflito e outras que vivem com problemas de saúde, como o HIV. A organização também oferece suporte de saúde física e mental para vítimas da violência sexual no país, um dos graves problemas do conflito.
A coordenadora de emergência da Médicos Sem Fronteiras em Goma, Camille Niel, acredita que a violência sexual não é uma situação restrita ao Congo, mas é uma realidade do mundo. “Podemos dizer que a violência de gênero é um problema mundial, presente em todas as sociedades. No país, especificamente em Kivu do Norte, o que observamos é que anos de conflito levaram a um enorme número de homens armados. Esses homens armados são os responsáveis pelo aumento do número de agressões sexuais e estupros cometidos contra mulheres e crianças”, detalha.
Camille Niel relata como as mulheres são alvos de ataques durante atividades cotidianas, ao mesmo tempo em que são as responsáveis pela manutenção da vida cotidiana das famílias vítimas do conflito.
“Não há limites para os ataques contra mulheres. Mesmo nesse contexto de deslocamento, as mulheres continuam sendo as responsáveis pelo sustento de suas famílias. Não há oportunidades econômicas para elas dentro dos acampamentos ou em Goma. Portanto, a maioria delas sai do acampamento e vai para as plantações para recolher lenha ou mesmo tentar coletar alguns vegetais ou comida para a família. Enquanto estão lá, elas são atacadas por homens armados que estão nessas áreas”, explica.
A Médico Sem Fronteiras atua no atendimento de sobreviventes nas regiões de Kinshasa, Salama, Maniema, Masisi, no território de Rutshuru e nos acampamentos de deslocados próximos à cidade de Goma, em Kivu do Norte. A estratégia da organização é construir centros médicos de atendimento e repassar o controle, de maneira gradual, para o governo local.
O diálogo com os atores armados do conflito é feito por parte do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, segundo Alyona Synenko, porta-voz da organização. “A gente os recorda que a violência sexual é uma grave violação do direito humanitário internacional e que é a responsabilidade deles prevenir, punir e investigar qualquer situação e punir aqueles responsáveis por participar de atos dessa natureza”.