Era período de férias, em dezembro do último ano, quando o mestre em ciências sociais e professor, Paulo Holanda, de 40 anos, precisou redobrar a atenção para os cuidados com Cauã, de 6 anos, o caçula de três filhos. É que o ano de 2023 foi o mais quente já registrado no mundo, segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM).
No Brasil, a temperatura média anual no ano passado escalou para 24,92°C, superando em 0,69°C a média histórica do período de 1991 a 2020 (24,23°C).
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Com as altas temperaturas, o pequeno — que é alérgico e tem crises de sinusite — vivenciou períodos de tosse devido à poeira. “Por causa dessa alergia que ele tem, por vezes o olhinho fica irritado. Em casa, sempre estou usando o soro fisiológico, tudo isso para a limpeza”, diz o professor ao relembrar que o filho sempre sofre quando a cidade em que mora, Maceió (AL), registra temperaturas acima da normalidade.
“A gente já deixa ele, por exemplo, em casa, só de cuequinha, ele fica bem à vontade”. O pai do pequeno recorda que devido ao calor o ventilador não estava dando conta e precisou investir o décimo terceiro salário em um ar-condicionado. “A gente resolveu investir no conforto deles, no conforto da família”.
A realidade não mudou tanto assim, em relação ao fim do ano passado. O planeta continua registrando altas temperaturas. Em dados mais atuais, o mês de maio de 2024, se inscreve nos anais da história como mais um capítulo alarmante nas mudanças climáticas. Cientistas do Observatório Europeu Copernicus confirmaram, no dia 5 de junho, que maio foi o décimo segundo mês consecutivo a registrar temperaturas médias globais recordes.
Crianças são as que mais vão sofrer impactos da crise climática
À reportagem da Alma Preta, a CEO da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Mariana Luz, explica que os impactos da crise climática na primeira infância podem ser sentidos a curto, médio e longo prazo.
“É até contraditório pensar, mas fato é que as crianças na primeira infância são as menos responsáveis pela crise climática e as que mais vão sofrer seus impactos”, defende. Segundo ela, os desastres climáticos também aumentam o risco de transmissão de doenças, a exemplo da malária, febre amarela e dengue, “a grande maioria das vítimas letais dessas doenças são crianças pequenas”.
A CEO da FMCSV argumenta ainda que o período de secas prolongadas e enchentes prejudicam a captação e o fornecimento de água. Além disso, os impactos também são sentidos no campo da educação, que potencializa o risco de evasão escolar.
“Assim como vimos na tragédia recente no Rio Grande do Sul, as unidades escolares tendem a ser transformadas em ponto de acolhimento coletivo, o que impõe dificuldades para o pronto retorno das atividades educacionais”, acrescenta.
Crianças negras e os efeitos dos eventos climáticos extremos
Mariana também destaca que nos eventos climáticos extremos, as pessoas estão mais expostas a ambientes de vulnerabilidade e incerteza, podendo potencializar o risco de violências físicas, morais e sexuais para crianças. Essa realidade piora quando as crianças são negras.
A população negra e, consequentemente, as crianças estão em grande maioria nas periferias do país em moradias improvisadas, com pouca ventilação, comprometendo o conforto e o desenvolvimento infantil. A porta-voz da fundação reconhece essa realidade e os efeitos causados por ela.
“Infelizmente, sabemos que os efeitos dessa crise afetam desproporcionalmente crianças que vivem em situação de maior vulnerabilidade, principalmente negras, indígenas, quilombolas, e pertencentes a outros povos e comunidades tradicionais. Quando falamos de moradias sem ventilação, estas crianças ficam mais expostas à circulação de doenças ou aos efeitos do calor”, pontua.
Luz defende que uma criança negra, que vive em condições precárias, enfrenta os efeitos da crise climática desde o começo da vida, “já parte de um ponto de desvantagem com impactos a curto, médio e longo prazo”.
“Quando as famílias têm menos recursos para realocar-se ou adaptar-se a mudanças no clima, pois geralmente vivem em áreas geograficamente mais expostas e sem saneamento ou água potável, elas são as primeiras a sentir o impacto de eventos climáticos extremos, principalmente quando forçadas a saírem de seus territórios”, frisa.
Para a CEO, as crianças também são expostas a perda material e de seus cuidadores, e ainda a quebra de vínculos sociais com a vizinhança: a escola que frequentavam ou o parquinho utilizado para brincar. “Esse tipo de acontecimento pode gerar estresse ou trauma”.
Altas temperaturas e o desenvolvimento infantil
Assim como aconteceu com o pequeno Cauã, a crise climática, com seus efeitos catastróficos, não poupa nem mesmo as crianças, lançando sobre elas uma série de riscos e desafios que comprometem não apenas sua saúde física, mas também seu desenvolvimento cognitivo, emocional e social.
A pesquisa: “Primeira Infância, efeitos extremos de calor, desenvolvimento e saúde” (2023), do Centro de Desenvolvimento da Criança, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, aponta que todas as crianças enfrentam riscos decorrentes do calor excessivo, que se agrava a partir de alguns fatores, como classe e raça.
De acordo com o levantamento, em épocas de calor extremo, o corpo humano sofre alterações fisiológicas, principalmente durante a gravidez, o que pode ocasionar riscos adicionais. Além disso, também pode oferecer riscos ao feto.
“Há evidências de que em épocas de altas temperaturas, há aumento das taxas de natimortos, bem como mais bebês prematuros e com baixo peso ao nascer, todos os quais estão ligados a um maior risco de uma série de resultados ruins mais tarde na vida, incluindo cognição prejudicada, crescimento reduzido e problemas crônicos de saúde, como doenças cardiovasculares doença e diabetes na idade adulta”, pontua o levantamento.
Ainda sobre o assunto, os pesquisadores destacam que mesmo que algumas comunidades dos EUA estejam localizadas em uma mesma região, nem todas têm acesso a métodos de refrigeração, a exemplo de ar-condicionado, espaços verdes e piscinas.
“Os países de rendimento mais baixo têm maior probabilidade de sofrer os efeitos potencialmente fatais de um clima sobreaquecido, e as atuais estruturas de poder globais tornam um desafio para estes países influenciar e impulsionar a mudança a nível internacional”, destaca outro trecho da pesquisa.
Segundo o levantamento, a composição étnica e de território conseguiu criar ilhas de calor urbanas, a partir de décadas de zoneamento discriminatório e as práticas que são conhecidas no país como “redlining”, que em linhas gerais são mapas desenhados pelo governo federal para restringir investimentos imobiliários em bairros marcados por diferenças raciais e sociais.
Por conta disso, as áreas citadas acima são dominadas por “asfalto que retém calor, edifícios densamente concentrados, tráfego, indústria e rodovias”. Por consequência, esses bairros têm menor acesso a formas de reduzir a exposição de crianças ao calor excessivo.
O que fazer para mudar essa realidade?
A CEO destaca que, para mudar essa realidade e proteger as crianças negras dos efeitos da crise climática, é necessário que os governos priorizem investimentos em políticas para o meio ambiente. “Planos de enfrentamento e prevenção, educação ambiental e fiscalização contínua são estratégias para evitar novas catástrofes climáticas”.
Sobre o assunto, Mariana elucida que é preciso ainda assegurar a proteção da vida das novas gerações, priorizando principalmente as crianças indígenas e negras do sul global, o qual são as mais afetadas pelos eventos climáticos extremos.
“Fortalecer as instituições e legislação responsáveis pela garantia de preservação do meio ambiente, alcançar as metas de redução de emissões de gases poluentes, garantir recursos para a execução de políticas climáticos sensíveis aos direitos de crianças e desenvolver estratégias de prevenção que considerem crianças negras, indígenas e de outras comunidades tradicionais, são alguns dos passos importantes nesse momento”.
Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.