As crianças negras, especialmente na primeira infância, são as principais vítimas de violência no país. Desde os primeiros anos de vida, elas enfrentam violações de direitos que comprometem seu desenvolvimento e potencial humano.
No primeiro semestre de 2022, foram registradas 122.833 violações contra crianças de zero a seis anos. No total, 63% das vítimas eram negras. Os dados são do estudo “Prevenção de violência contra crianças”, do Núcleo Ciência pela Primeira Infância (NCPI), publicado em 2023, de autoria da professora e pesquisadora Maria Beatriz Martins Linhares.
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Ainda segundo o documento, em relação às vítimas de morte violenta intencionais (MVI) no país em 2021, na faixa etária de zero a 11 anos, 63% eram crianças negras.
Para a pesquisadora, que atua no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e integra o Comitê Científico do NCPI, a violência contra crianças é um problema global complexo, que afeta bilhões de jovens e causa danos profundos e duradouros, que produz consequências emocionais, sociais e econômicas de longo prazo e alto custo para os governos.
A análise histórica dos dados do Disque 100 da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Brasil, de 2011 a 2017, revela uma tendência crescente de notificações de abuso infantil, aponta Maria Beatriz.
“No primeiro semestre de 2021, a violência contra crianças e adolescentes atingiu o número de 50.098 denúncias no Disque 100, sendo que 81% desse total ocorreram no ambiente familiar da vítima e referem ter sido praticada pela mãe de forma predominante e seguida pelo pai, padrasto ou madrasta e outros familiares do convívio da criança”, acrescenta.
A realidade de violência contra as crianças requer a formação de cidadãos voltados para a convivência social e a cultura de paz. Esses são os objetivos da Semana Nacional de Prevenção da Violência na Primeira Infância, de 12 a 18 de outubro, instituída pela Lei nº 11.523/2007.
Quais são os tipos de violência enfrentadas pelas crianças?
Segundo Maria Beatriz Martins Linhares, existem diversos tipos de violência, a exemplo do dano físico, estresse tóxico associado ao racismo, mudanças de comportamento, violência sexual, física, psicológica e a negligência.
Além disso, a pesquisadora detalha que a violência pode ocorrer de diferentes tipos e de forma individual ou combinada:
- Violência sexual – Ação que constranja a criança ou o adolescente a praticar, ou presenciar conjunção carnal, ou qualquer outro ato libidinoso, realizado presencialmente ou por meio eletrônico, para estimulação sexual do agente ou de terceiro. O abuso sexual cometido no ambiente familiar é mais frequente do que o cometido por pessoas fora do domicílio.
- Violência física – Ação intencional infligida à criança ou ao adolescente que ofenda sua integridade ou saúde corporal ou que lhe cause sofrimento físico. Está relacionada com a utilização de força física contra à pessoa, criança ou adolescente, por cuidadores, pessoas do convívio familiar ou terceiros visando causar dor, sofrimento, lesão ou destruição da vítima.
- Violência psicológica – Ação ou situação recorrente em que a criança ou o adolescente são expostos, que pode comprometer seu desenvolvimento psicológico. Incluem comportamentos de discriminação, depreciação, desrespeito por meio de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática.
- Negligência – Omissão de cuidados básicos e de proteção à criança frente a agravos evitáveis e tem como consequência, portanto, o não atendimento de necessidades físicas e emocionais básicas.
“As consequências podem ocorrer a curto, médio e longo prazo, muitas vezes ocorrendo o ciclo intergeracional da violência. Neste caso, os pais que sofreram violências na infância reproduzem a violência com seus filhos”, defende.
Exposição à violência influencia comportamento e desempenho escolar
Segundo a professora, a violência contra crianças consiste em um problema grave e persistente na sociedade, que representa uma ameaça significativa ao desenvolvimento humano.
Para Linhares, pode ser entendida como um “evento de estresse tóxico no desenvolvimento”, desencadeando alterações fisiológicas e psicológicas duradouras nas crianças.
De acordo com a especialista, crianças expostas a esses tipos de práticas tendem a apresentar problemas comportamentais, como agressividade, desobediência e dificuldades de aprendizagem.
Os impactos da violência na infância se estendem para além da primeira infância, podendo afetar o desenvolvimento e o comportamento das crianças ao longo de toda a vida.
“A violência contra crianças pode ser entendida como um ‘evento de estresse tóxico no desenvolvimento’, desencadeando alterações fisiológicas e psicológicas duradouras nas crianças”, disse.
Como identificar os sinais de violência?
A pesquisadora ressalta a importância de observar determinados sinais no comportamento das crianças para identificar possíveis situações de violência intrafamiliar. “É importante observar machucados e adoecimentos frequentes e as mudanças no comportamento das crianças, como maior medo, retraimento ou, por outro lado, agitação e irritabilidade”, afirma.
Ela destaca a necessidade de atenção às alterações nos padrões de sono e alimentação, que podem ser indicativos de sofrimento. Além disso, educadores, médicos e membros da família desempenham um papel fundamental na detecção desses sinais.
Segundo a pesquisadora, os relatos e queixas das crianças não devem ser ignorados e precisam ser investigados para identificar possíveis casos de violência. Linhares também menciona a violência escolar, como o bullying, destacando a importância da atenção dos professores para comportamentos agressivos, tanto físicos quanto verbais, entre os alunos.
Ela explica que é crucial observar a dinâmica entre a criança agressora, a vítima e os demais colegas que testemunharam a situação, de modo a planejar ações preventivas e de intervenção no ambiente escolar.
Políticas públicas e estratégias para criar ambientes seguros
No Brasil, o arcabouço legal de proteção às crianças vem se fortalecendo ao longo dos anos, mas ainda há muito a ser feito no enfrentamento da violência contra crianças. Para a professora, é fundamental que as políticas públicas sejam mais eficazes e focadas na prevenção.
“Precisamos de políticas públicas que ofereçam respostas efetivas para o enfrentamento da violência contra as crianças. A prevenção é o melhor caminho”, afirma Linhares. Ela ressalta ainda a importância de se conhecer e sistematizar dados atualizados sobre o problema para as ações serem planejadas com metas e resultados bem definidos.
De acordo com Linhares, essas políticas devem ser intersetoriais, envolvendo as áreas da saúde, educação, assistência social e jurídica. “Os gestores precisam trabalhar em parceria com coordenadores de serviços, profissionais técnicos e a comunidade para criar redes de proteção às crianças”, explica.
Além disso, é essencial que sistemas de notificação de violência funcionem de forma integrada entre os diferentes setores públicos, e que o sistema jurídico mantenha seu compromisso com os direitos fundamentais das crianças.
Um exemplo prático de programa preventivo citado por Linhares é o ACT – Para Educar Crianças em Ambientes Seguros, desenvolvido pela Associação de Psicologia Americana e validado no Brasil. O programa, centrado na parentalidade, oferece encontros semanais com famílias para discutir temas como regulação emocional, disciplina positiva e prevenção da violência.
“O ACT tem mostrado resultados positivos na melhoria das práticas parentais e na redução de problemas de comportamento em crianças de até seis anos”, destaca Linhares.
Ela também enfatiza que as estratégias de parentalidade positiva são essenciais para garantir ambientes seguros e saudáveis para as crianças. “A disciplina não-violenta, os cuidados responsivos e o fortalecimento dos vínculos afetivos formam a base de proteção às crianças”.
Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.