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A conta não fecha: jovens negros precisam se desdobrar para pagar despesas mensais

O desejo de ter uma vida adulta com independência e estabilidade financeira para pretos e pretas parece distante diante das condições econômicas atuais; economista aponta que essa situação é resultado de uma dívida histórica do país com a população negra

Imagem mostra mãos de pessoas negras de pele retinta segurando boletos para pagamento em fundo laranja

Foto: Imagem: Reprodução/Black Enterprise

16 de fevereiro de 2022

Entrar para vida adulta, para muitos jovens, é sinônimo também de conquistar maior autonomia. Sobre os desejos desta nova fase, o da independência financeira está entre os principais. No entanto, o cenário de crise econômica tem distanciado cada vez mais os jovens adultos da meta de alcançar a estabilidade financeira. Para a juventude negra, principalmente, é tempo de se desdobrar para garantir o mínimo: as contas do mês pagas. 

Além de trancista, atendente, bartender, garçonete, artesã de bijuterias, recepcionista em festas e dona do brechó online ‘Chama Negra’, Ester Bastos, também é bolsista graduanda no curso de Publicidade e Propaganda pela Universidade Católica de Pernambuco. Aos 24 anos, a jovem conta que a multifuncionalidade em que se encontra é fruto do entendimento de que o negro no Brasil tem que ser bom no que faz e tem que saber fazer tudo para conseguir sobreviver. 

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“Além de poucas, as chances de trabalho, para nós, acabam sempre em lugares subalternizados. Quando procuramos ter algo independente e próprio, na maioria das vezes, não ganhamos o valor merecido, seja esse valor físico ou moral. Até quando essas oportunidades são dadas, a sociedade nos coloca sempre em um lugar de servir e, como necessitamos desse dinheiro, mesmo que sendo pouco, acabamos nos colocando nessas circunstâncias”, aponta. 

Questionada sobre as dificuldades em manter uma renda estável que encontrou ao dar seus primeiros passos sem apoio de familiares, Ester destaca a escassez de oportunidades no mercado de trabalho que sejam compatíveis aos gastos mensais. 

Ela faz parte da estatística do levantamento mais recente realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, que aponta a realidade de um país com 14,8 milhões de desempregados, com índice maior está entre os jovens. Entre os jovens de 14 até 17 anos, 46% estão à procura de emprego. Já entre 18 e 24 anos, 31% das pessoas estão desempregadas. Em relação ao longo prazo de busca por um trabalho que proporcione renda fixa, o Instituto aponta como predominante a faixa etária entre 17 e até 29 anos. 

O economista e mestre em economia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Marcos Henrique do Espírito Santo traça um panorama em que afirma que as dificuldades atuais passadas pela juventude é diretamente relacionamento à uma herança de um país escravocrata. Atualmente, dos 110 milhões de trabalhadores, 100 milhões estão na informalidade, sem qualquer vínculo ou proteção trabalhista. 

“Quase 90 anos depois da Consolidação das Leis Trabalhistas, o país ainda apresenta dificuldades em formalizar as pessoas, de colocá-las para dentro do sistema e existem motivos para tal. O Brasil é um país extremamente desigual, apesar de ter passado por um processo de crescimento econômico por cinco décadas, tornando-se potência mundial perdendo apenas para o Japão em renda per capita. No entanto, esse crescimento não incluiu as massas e, mesmo com tentativas de repartição desse desenvolvimento, o país sofreu golpes”, dispara. 

Leia também: Pandemia afeta mais a saúde mental e financeira de jovens negros e não cis, revela pesquisa

Ainda segundo o economista, é necessário refletir qual o tipo de vínculo empregatício que se gera em um país de subocupação, com baixa escolaridade, contando com alto contingente de pessoas fora do mercado de trabalho e com as problemáticas de desenvolvimento socioeconômico apontadas anteriormente. 

“Isso se choca com os altos custos das grandes cidades, com aumento do aluguel, da conta de luz, água, alimentação, que muitas vezes, ultrapassa o que a juventude que busca independência recebe, fazendo com que os gastos com serviços básicos tomem toda sua renda. Isso impede, ainda mais, que acessem suas independências”, afirma. 

Esforço multiplicado

Ester também precisa receber cesta básica da instituição de ensino que faz parte, o que acaba, de alguma forma, reduzindo o gasto no seu dia a dia e garantindo o básico, a alimentação. 

Essa situação também é vivenciada por Luís Henrique que, mesmo aos 27 anos, em outra fase de formação e atuação, ainda sente as dificuldades de se estabilizar financeiramente dentro do cenário atual. Atuando como redator, artista plástico e freelancer em marketing de conteúdo, Luís revela que mesmo tendo uma bolsa de doutorado em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF) garantida, ainda se vê refém de cumprir um número alto de demandas para obter retorno financeiro.

“Está tudo cada vez mais caro. Qualquer coisinha no mercado dá 100 reais. É um absurdo. Basicamente, tem se tornado quase utópico se estabelecer apenas atuando em uma única área. Para começar, a bolsa de doutorado que tenho, que é de R$2.200, não cobre todas as minhas contas. Se você pensar, essa bolsa não sofre reajuste desde 2013. Se, na década de 1990 e 2000, meus orientadores conseguiam bancar uma família inteira, apenas com a bolsa de doutorado, hoje, eu não consigo ir ao supermercado sem ter que pensar em comprar o mínimo e buscar opções de lazer que sejam de graça ou mais em conta”, critica.

Luís reforça ainda as possibilidades ofertados pelo país à população negra, que requer esforço multiplicado para garantir o básico ou para chegar a um patamar conquistado pelos demais com acessos e privilégios. O doutorando ainda critica a barreira de hiperespecialização para acessar seleções de emprego, tendo em vista o cenário do país que apresenta inúmeras problemáticas quanto ao acesso à educação de qualidade. 

“Todas as seleções que participei exigiam altos graus de qualificação para ganhar um salário que não condizia com a realidade socioeconômica brasileira. Trabalhei em agência de publicidade e era notável o fato da maioria das pessoas ali serem brancas, morarem com os pais e usarem o salário apenas para usufruto de lazer”, finaliza. 

Contornando a falta de acessos

Aos 25 anos, a graduanda em medicina pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Juliana Lima, encontrou nos estudos uma oportunidade de mudar o cenário econômico dela e de sua família. Filha de confeiteiro e de empregada doméstica, a estudante relata que se espelhou na patroa da mãe, que também é médica, como sinônimo de estabilidade financeira.

Aluna de escola pública no ensino fundamental e médio, Juliana contou com o incentivo e suporte financeiro dos pais para sair de São Paulo para o interior da Bahia, mas, morando há um mês sozinha, já concilia os estudos com as preocupações sobre aluguel. 

“Vim de classe social baixa e, por diversas vezes, ao longo do curso estive preocupada com a questão financeira, mas, mesmo diante das dificuldades, pensei em mudar de curso, mas sabia que a medicina poderia trazer estabilidade. Anteriormente, conseguia dividir casa e contar com uma bolsa de extensão, mas, agora, tenho que lidar com as contas sozinha e isso, pesa, sim. Ainda conto com a bolsa, mas ela está para acabar e isso já me preocupa sobre o aluguel. O difícil é que, sobre outras fontes de renda, a faculdade impossibilita de trabalhar pela demanda de estudos e os horários que dificultam ter um trabalho”, explica Juliana. 

A estudante ainda reitera o perfil encontrado nas salas de aula, uma maioria de jovens com condições financeiras altas, algo que, para ela, infere diretamente no bom acompanhamento do curso e, por consequência, no bom rendimento na questão das notas. A jovem ainda tende a ter um maior esforço para dar continuidade ao curso devido a responsabilidade que tem com ela e com a família, considerando a possibilidade de ascenção econômica.

Questionado sobre se há meios que possam ajudar ou, minimamente, contornar a situação de desigualdade atual, principalmente no que diz respeitos aos impactos para aqueles que já se encontraram em um somatório de vulnerabilidades gerais, como é o caso da população negra, o economista Marcos Henrique sugere algumas mudanças.

“Ao meu ver, a gente precisa de, por um lado, organizar o regime macroeconômico, passar a pensar o futuro a partir do restabelecimento da indústria e da ideia que o Estado tem o papel chave na recuperação da economia e do crescimento econômico junto à população, portanto, precisa gastar e não cortar recursos. Por outro lado, acredito que as políticas públicas, de uma maneira geral, devem forçar e formalizar a ideia de que existe um grande contingente da população que precisa ser atendido. Nesse caso, sempre favorável a inserção de cotas, por ser uma política responsável por diminuir os abismos do acesso que, na minha opinião, precisa ser fortalecida e aprofundada”, finaliza. 

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