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Ana Paula Oliveira: ‘Conseguimos colocar um PM assassino no banco dos réus’

O policial militar Alessandro Marcelino de Souza matou o jovem negro Johnatha de Oliveira, em 2014, com um tiro nas costas, mas saiu de seu julgamento em liberdade. Menos de 24 horas após o resultado do júri popular, a mãe de Johnatha, Ana Paula de Oliveira, cerrava os punhos novamente em frente ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao lado de famílias vítimas de violência do Estado: "Não é o fim".
Ana Paula Oliveira, fundadora do grupo Mães de Manguinhos, discursa durante protesto em frente ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no Centro da capital fluminense, 8 de março de 2024

Foto: Solon Neto/Alma Preta

8 de março de 2024

Na manhã da terça-feira (5), diversos familiares de vítimas de violência do Estado, a maioria mães, deixaram suas casas em várias regiões da capital fluminense para chegar ainda cedo ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), localizado no Centro da cidade, a poucos metros do Paço Imperial — onde foi assinada a Lei Áurea — e com vista para a baía de Guanabara, palco da Revolta da Chibata.

Em frente ao TJRJ, essas mesmas pessoas colocaram no chão dezenas de fotos de seus parentes assassinados, em uma manifestação em defesa da memória de Johnatha de Oliveira, jovem negro morto aos 19 anos por um policial militar, em 2014, com um tiro nas costas, na favela de Manguinhos. A mãe de Johnatha, Ana Paula Oliveira, uma das mais conhecidas ativistas da cidade, fundadora do grupo Mães de Manguinhos, era o centro das atenções.

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O julgamento do PM Alessandro Marcelino de Souza, o homem que matou Johnatha, começaria em poucas horas, quase dez anos após o assassinato. Durante essa década, Ana Paula reuniu apoiadores, provas, testemunhas e esteve em diversas cidades dentro e fora do Brasil para defender a memória de seu filho em busca de justiça. Nessa trajetória, a mãe de Johnatha se tornou uma liderança.

“Estou muito grata a todas as pessoas que compareceram, são pessoas que conheci ao longo dessa caminhada dura, muito dolorosa, muito árdua, muito difícil, nessa busca por mostrar a verdade, na luta por justiça, por memória, mas acima de tudo uma luta pela vida, pela garantia da vida dos nossos jovens negros, moradores de favela e de periferia”, disse Ana Paula, vestida com uma camiseta branca com a foto do filho, em entrevista à Alma Preta Jornalismo, ainda durante a manifestação pouco antes do julgamento.

A ativista Ana Paula Oliveira (centro), ao lado de familiares de vítimas de violência do Estado, durante o julgamento do policial militar Alessandro Marcelino de Souza, que matou o filho de Ana Paula em 2014, com um tiro nas costas, na favela de Manguinhos. Rio de Janeiro, 6 de março de 2024
A ativista Ana Paula Oliveira (centro), ao lado de familiares de vítimas de violência do Estado, durante o julgamento do policial militar Alessandro Marcelino de Souza, o assassino de seu filho. Rio de Janeiro, 6 de março de 2024 (Solon Neto/Alma Preta)

‘A sociedade compactua com policiais assassinos!’

A maioria das pessoas presentes entrou no tribunal com camisetas brancas como a de Ana Paula. O clima era de esperança entre os familiares e apoiadores. A entrada do auditório de onde seria possível acompanhar o julgamento foi concorrida e o corredor de acesso ficou lotado. Nem todos conseguiram entrar. Apesar da desconfiança, muitas pessoas vocalizaram que acreditavam na condenação do PM por homicídio doloso. Além de atender aos anseios da família de Johnatha, a eventual sentença pelo crime seria um sopro de ânimo para outras famílias que viveram casos semelhantes.

A expectativa de todos, porém, foi frustrada quando, por volta das 19h da quarta-feira (6), após dois dias de julgamento, a juíza Tula Correa de Mello leu a decisão das sete pessoas do júri popular diante das famílias. Apesar das provas apresentadas pela acusação, o chamado Conselho de Sentença acatou a tese de que o PM cometeu um homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Com isso, o tribunal em questão perdeu a competência de julgar o caso, que agora segue para a Justiça Militar.

Família de Johnatha de Oliveira assiste ao julgamento do PM Alessandro Marcelino de Souza, que matou o jovem negro há quase dez anos. Rio de Janeiro, 6 de março de 2024
Família de Johnatha de Oliveira assiste ao julgamento do PM Alessandro Marcelino de Souza, que matou o jovem negro há quase dez anos. Rio de Janeiro, 6 de março de 2024 (Solon Neto/Alma Preta)

“À conta de tais razões, atendendo a vontade soberana do Egrégio Conselho de Sentença desta comarca, declino da competência em favor da Justiça Militar por força da competência constitucional prevista no artigo 124 da Constituição da República Federativa do Brasil”, disse a juíza, que tentou ler um poema às mães presentes ao final da leitura do resultado, mas foi interrompida por lágrimas e protestos.

A maioria dos presentes virou as costas para o tribunal e um clima de dor tomou conta do local. Em prantos, a mãe de Johnatha foi cercada pela imprensa e despejou revolta e tristeza em frente às câmeras até ser contida por parentes e amigos, entre eles sua irmã, Patrícia Oliveira, e Marinette Silva, mãe de Marielle Franco. As imagens de lágrimas e indignação de Ana Paula viralizaram naquela noite, gerando uma onda de apoio e comoção. “Esse é o resultado que a sociedade deu! A sociedade compactua com policiais assassinos!”, disse emocionada a mãe de Johnatha ao deixar o auditório do tribunal.

Ao longo desses dias, a família e os presentes assistiram a ataques diretos contra a memória de Johnatha, além de contradições das testemunhas de defesa. Durante o julgamento, a defesa do PM, sem nenhum tipo de prova, acusou Johnatha de ser traficante, com base apenas nos testemunhos de quatro policiais militares envolvidos no caso. A defesa chegou a dizer que Ana Paula deveria usar sua energia para criar um grupo de apoio que acolha jovens e evite que eles entrem para o tráfico.

Entre os policiais que testemunharam pela defesa, estava Marcelo Nicolau de Carvalho, expulso da corporação acusado de envolvimento com milícias. Já a sargento Larissa Elaine da Rocha chegou a ser acusada pelo Ministério Público por falso testemunho durante o julgamento — o que não foi aceito pelo júri. O próprio réu, o cabo Alessandro Marcelino de Souza, deu mais de uma versão dos fatos ao longo do processo. Inicialmente, o cabo não relatou ter disparado sua arma na noite em que matou Johnatha. 

O policial militar Alessandro Marcelino de Souza (vestido com um casaco marrom) sentado no banco dos réus durante seu julgamento por ter matado Johnatha de Oliveira (foto está projetada). Rio de Janeiro, 6 de março de 2024
O policial militar Alessandro Marcelino de Souza (vestido com um casaco marrom) sentado no banco dos réus durante seu julgamento por ter matado Johnatha de Oliveira (foto está projetada). Rio de Janeiro, 6 de março de 2024 (Solon Neto/Alma Preta)

A perícia deixou evidente que Alessandro disparou pelo menos sete vezes com uma pistola .40 naquele dia, sendo um dos disparos o que atingiu Johnatha na base das costas, em trajetória levemente ascendente — ou seja, de baixo para cima. No julgamento, o cabo disse que não citou os disparos em seu primeiro depoimento porque não foi perguntado sobre tiros de pistola, apenas de fuzis.

Na saída do tribunal, os defensores públicos Daniel Lozoya e Luís Henrique Zouien, os assistentes de acusação, demonstraram frustração com o resultado. À Alma Preta, enquanto deixava o local, Zouien afirmou que há motivos para pedir a anulação do julgamento. O pedido deve ser enviado nas próximas semanas.

Ainda na saída do TJRJ, as mães e familiares que deixaram o tribunal frustrados no início da noite da quarta-feira (6) decidiram organizar um protesto contra o resultado do julgamento para o dia seguinte.

‘Nós vamos conseguir mais’

No início da tarde da quinta-feira (7), Ana Paula Oliveira estava novamente em frente ao Tribunal de Justiça, ao lado das mesmas mães e familiares que a acompanharam desde a manhã da terça-feira (5) e a acompanham em seu cotidiano de luta. Vestida de preto dessa vez, ainda abalada, ela fez questão de falar aos presentes, também vestidos com roupas escuras, e leu uma carta escrita por ela na manhã daquele mesmo dia sobre o que pensa a respeito do resultado do julgamento.

Antes da leitura do texto intitulado “Carta de uma mãe para a reflexão de toda a sociedade brasileira”, a liderança disse que só conseguiu sair de casa naquele dia porque precisava apoiar as outras mães.

Em protesto diante do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Ana Paula Oliveira segura uma camisa com a foto do filho assassinado. Rio de Janeiro, 7 de março de 2024
Em protesto diante do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Ana Paula Oliveira segura uma camisa com a foto do filho assassinado. Rio de Janeiro, 7 de março de 2024 (Solon Neto/Alma Preta)

“Nós conseguimos sentar um policial assassino no banco dos réus. A gente sabe que isso não acontece todos os dias, mas nós conseguimos. E nós vamos conseguir mais! Foram muitas mensagens que recebi de ontem para hoje. Foram vocês que conseguiram me levantar para estar aqui hoje, de punho cerrado, exigindo o mínimo. É o mínimo. Esse tribunal de Justiça vai ter que nos enxergar”, disse a ativista antes de ser ovacionada.

Na carta, publicada na íntegra pela Alma Preta, Ana Paula disse que mergulhou na “ilusão” de acreditar que a justiça pudesse ser feita pelo júri, mas enquanto lia o texto aos presentes preferiu trocar a palavra por “esperança”. No texto, a liderança cita a “sensação de que quem está julgando não consegue se ver na gente” e diz que “em alguns lugares, como no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por morarmos na favela, o que falamos como verdade não tem crédito”.

“A criminalização da pobreza e o racismo que permeiam o sistema de Justiça fazem com que a palavra de policiais, mesmo que já tenham sido presos, mesmo que já tenha sido expulso da corporação por práticas criminosas, tenha mais validade para um grupo de jurados, representantes da sociedade que nos julgam e nos condenam pela cor da pele e pela classe social”, disse Ana Paula lendo o texto distribuído aos presentes em folhas de papel sulfite com o nome das Mães de Manguinhos.

Priscila Menezes, mãe do menino Thiago Flausino, assassinado aos 13 anos, fala durante protesto após receber o megafone de Ana Paula Oliveira. Rio de Janeiro, 7 de março de 2024
Priscila Menezes, mãe do menino Thiago Flausino, assassinado aos 13 anos, fala durante protesto após receber o megafone de Ana Paula Oliveira. Rio de Janeiro, 7 de março de 2024 (Solon Neto/Alma Preta)

Após a leitura, a mãe de Johnatha fez questão de dar espaço à família de Thiago Flausino, menino negro de 13 anos assassinado há sete meses na Cidade de Deus. Ana Paula disse no megafone que não queria que a decisão do júri no dia anterior desanimasse as outras famílias que buscam por justiça. Perguntada pela Alma Preta sobre os possíveis recursos citados pela defensoria em relação ao julgamento do assassino de seu filho, ela garantiu: “Não é o fim”.

  • Solon Neto

    Cofundador e diretor de comunicação da agência Alma Preta Jornalismo; mestre e jornalista formado pela UNESP; ex-correspondente da agência internacional Sputnik News.

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