A cuia e o chimarrão, a bota e a bombacha, o salame e a grappa não deixam margem a dúvidas: chegamos ao Rio Grande do Sul? Não, chegamos ao Mato Grosso. Nossa primeira parada é em Nova Mutum, a duzentos quilômetros de Cuiabá, que geograficamente funciona como uma espécie de porteira das capitais do agronegócio.
Os campos começam a se estender para além do horizonte, e viram um mar de soja, ornados com placas de corporações que celebram uma agricultura de alta produtividade, tecnologia e precisão total: “Soy Tech”, “Ideal Agro”, “Agro Baggio”. Por entre lojas de defensivos agrícolas, circulam tratores e muitos, muitos caminhões.
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“Aqui é onde tá crescendo muito. Olha, eu acho que, se vocês estiverem procurando um lugar pra viver, aqui é muito bom. A gente vai precisar de muita gente, de todas áreas”, anuncia um vendedor da loja de produtos gaúchos, antes mesmo de saber quem somos.
O rádio toca uma música folclórica a plenos pulmões. A parede tem bandeiras do Rio Grande do Sul. Encostado no balcão, o vendedor diz que nas outras cidades, aquelas que não estão no eixo da BR 163, não está “acontecendo nada”. E que em Nova Mutum, para viver, é preciso querer trabalhar muito, de segunda a sábado. “Pode ver que de domingo, quando é umas seis da tarde, já não tem ninguém na rua, porque todo mundo acorda muito cedo.” Dono da loja de produtos gaúchos, ele é mato-grossense, e não gaúcho, mas louva a cultura sulista que, na visão dele, foi a que desenvolveu essa região do estado.
Do lado de fora, uma cidade perfeitamente quadriculada se apresenta. O cortador de grama é onipresente: as chuvas já começaram, e ainda assim não há um pedaço de jardim que esteja mal aparado. Todas as árvores estão podadas. Uma obsessão pela regra e pela ordem que se repete pelos próximos quatrocentos quilômetros, acompanhada pela soja e pela exaltação da cultura sulista.
A ode aos sulistas também está presente nos monumentos da região, como o que homenageia o agricultor pioneiro, em uma praça de Nova Mutum, representado por um homem e uma mulher em cima de um trator.
Apartheid do asfalto pra lá e do asfalto pra cá
Rodovias conectam ou segregam? Caminhões em ritmo frenético trafegam pela BR 163, levando soja e milho até os portos do Norte e do Sudeste. Ao mesmo tempo, a estrada corta a capital do agronegócio entre oeste e leste, entre ricos e pobres, entre sulistas e nordestinos.
“Infelizmente há um apartheid entre o asfalto pra lá e o asfalto pra cá”, resume Adevanir Pereira da Silva, o Bia. A conversa é do lado de cá de Sorriso, ou seja, do lado oeste, onde fica o centro oficial de uma das cidades-chave na produção de soja e milho no Brasil. “A diferença é muito gritante. De noite, se você sair aqui, tudo normal. Mas lá no leste você fica abismado”. Negro, 63 anos, ele é das gerações mais antigas – “antigo”, nesse caso, significa ter chegado nos anos 1980, antes que a população pobre fosse empurrada para o lado leste.
Várias cidades brasileiras têm a mesma situação: são divididas por rodovias que acabam significando, também, uma segregação social. Mas o caso de Sorriso é elevado à enésima potência. Os lados determinam cor de pele, origem geográfica e renda.
No lado oeste, ruas arborizadas e iluminadas, ciclovias, grama bem aparada, praças. É dezembro, e o gramado cuidadíssimo da loja Canal Concept acolhe uma enorme árvore de Natal. Na mesma avenida, a loja Feitos de Laura optou por renas vermelhas de mais de dois metros de altura, todas moldadas usando uma folhagem. Basta virar à direita para começar a cruzar com mansões em estilo neoclássico. Colunas e portas gigantes, amplos e impecáveis jardins, poltronas confortáveis se repetem.
Junto com bandeiras do Brasil: uma, duas, três, cinco, dez, vinte. Estão penduradas em janelas de prédios, de casas, de restaurantes, lojas, imobiliárias e sorveterias. No lado rico da cidade de Sorriso, em tamanhos diferentes, elas fazem lembrar que estão ali em apoio ao presidente Jair Bolsonaro. Em carros imensos, 4X4, adesivos com os dizeres “É Jair ou… já era” e “7 de Setembro, por nossa nova independência. Sorriso-MT”.
Numa das casas de alto padrão, um grupo de pessoas conversa em volta de uma mesa no jardim, e ali ao lado, há um totem fotográfico em tamanho real de Jair Bolsonaro. A estética dessa região de Sorriso nos faz lembrar da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, e de Miami. Esse é o lado dos “sonhos” da capital do agronegócio.
Perto da bem cuidada Praça das Fontes, restaurantes sofisticados com nomes em inglês, calçadas largas, lojas com decoração e roupas de inverno, quase fazem esquecer que a cidade está na Amazônia Legal. A vegetação amazônica desapareceu e em seu lugar foram plantadas palmeiras imperiais.
Desdém, desconfiança e preconceito
Quando chegaram a Sorriso, Bia e o pai foram trabalhar como ensacadores de arroz, e começaram a mobilizar os trabalhadores para criar um sindicato. “Eu me recordo de um fato que nós tivemos. Os trabalhadores, amarraram eles e queriam sumir com eles. Aí a gente intercedeu, o pai intercedeu, conseguiu resolver, mas era comum o trabalhador ser achacado, maltratado e muitas vezes até apanhar.”
Desde sempre, Bia lida com a narrativa comum por essas regiões: o sulista entrou com o cérebro, o nordestino entrou com a força física. “Eles olhavam a gente com desdém, tratava de ‘negrinho’, tipo assim como com desconfiança e preconceito, mesmo, um preconceito muito, muito forte.”
O pai, Aureliano Pereira da Silva, foi eleito vereador em 1987 e 88. Acumulou inimigos. “Vocês não têm ideia do preconceito que ele sofreu aqui nesta cidade. Ele enfrentou muitas batalhas.” E foi morto em 1989. Os assassinos foram presos e condenados, mas a família não se deu por satisfeita: até hoje suspeita-se que existam mandantes.
Bia se sentiu impelido a seguir os passos do pai. Foi vereador entre 1997 e 2004. “Eu era o presidente da Câmara nessa época e havia um projeto de uma votação muito polêmica. A casa encheu. E tinha uma mulher. Ela gritava para todo mundo ouvir isso ‘Negrinho, esse negro acha que é o dono da cidade’ e ‘Preto, quando não caga na entrada, caga na saída’, coisas assim.”
Na atual legislatura, vários vereadores contam fazer parte de famílias sulistas, e alguns se colocam entre os fundadores da cidade. É o caso também do prefeito, Ari Genézio Lafin, que diz ter migrado nos anos 80.
“Para eles só existe o agronegócio”, resume Bia. “Dizem que não existe fome. Se você andar aqui, vai ver pessoas que precisam, que passam apuro, que trabalham de sol a sol para se manter. Tem muito serviço? Tem, mas infelizmente tem também muitas pessoas necessitadas.”
Dirigindo pela Perimetral Sudoeste, logo cruzamos com a mansão da família Daroit, uma das “pioneiras”, segundo o discurso oficial. Essa avenida é um dos dois pontos de acesso ao lado leste da cidade. Ao cruzar a rodovia, um outro mundo se abre. Galpões, silos, o pó do agronegócio, o barulho das indústrias, o frenesi dos caminhões.
Uma outra cidade
Praças e árvores minguam. As bandeiras do Brasil desaparecem. Brotam casas pequenas e barracos. As calçadas largas do lado rico viram calçadas estreitas e esburacadas. O comércio de luxo dá lugar a pequenas lojas que vendem o básico do básico, botecos e bibocas. Foi ali, na sede da Central Única de Favelas (Cufa), que encontramos João Vitor Oliveira Silva, ou John, como prefere ser chamado.
Quando o pai morreu, John se mudou com a mãe e a irmã para Sorriso. Aos 17 anos, a vida da família em Boa Esperança do Norte, um distrito de Sorriso que foi recém-convertido em município, não agradava. Não parecia promissora. “Quando viemos embora pra Sorriso, eu pensei: ‘Vai ser melhor porque vai ser uma cidade mais desenvolvida, uma cidade melhor para se bancar’. E foi nesse momento em que eu percebi que a vida aqui na cidade não era tão boa como eu pensei.”
O discurso de indústria-riqueza vai até a página dois. “O aluguel aqui da cidade é caro. É uma cidade bem cara, então, tipo, uma casa pequena, mas a gente pagava R$ 850 de aluguel”, continua. “Daí eu acabei saindo do colégio para poder trabalhar nesse mercadinho.”
Negro, periférico e gay, John se depara diariamente com a realidade de uma cidade que exalta a branquitude, a riqueza e a heteronormatividade. “Eu não fui procurar um serviço num lugar que seria ‘para homens’, como uma mecânica, por exemplo. Eu me identifico mais com atendimentos. Mas eles querem mulheres nos atendimentos. Quando chega um menino que se veste bem colorido, que tem um cabelo black power, já me olham de cima abaixo.”
A sorte de John, como prefere ser chamado, é que tinha um trunfo na manga: desde os 10 anos ele assistia a vídeos de dança, em especial de balé, no YouTube, e com isso foi aprendendo na marra, até que se sentiu confiante para virar professor. Hoje, ele divide o tempo entre três empregos: atendente numa lanchonete, ajudante numa barbearia e professor de dança para crianças da periferia.
“Eu fiz umas nove, dez entrevistas de emprego. As pessoas que estão em Sorriso há mais tempo procuram um padrão”, conta. “Perguntam ‘Onde você mora?’ Já aconteceu de perguntarem para mim, ‘você é maranhense?’ Nem vinha ao caso da entrevista. Mas se eu fosse maranhense talvez já não tivesse chance.”
Maranhense é a palavra que condensa tudo o que não é bem-visto pelas elites locais: pessoas que não vêm do Sul do país, pessoas que não são brancas, pessoas de baixa renda. Francio, Brescansin, Schevinski, Manfrói, Spenassatto, Antonello, Ferronatto, Potrich, Raitter, Riva, Bedin, Daroit, Lodi: a história oficial de Sorriso é branca. Os sobrenomes dos “fundadores” estão registrados na vida política, nas páginas de registro e em projetos de lei que pouco ou nada falam sobre a presença de nordestinos e negros.
“Tem muito preconceito”
“Vai no centro de bicicleta pra tentar vender. Você não vende. Tem muito preconceito”, conta Almerindo Corrêa Pereira, um senhor de bigode ralo, pele branca marcada pelo sol e chapéu de palha na cabeça. É domingo cedo, e a feira organizada do lado leste já está repleta. Os elementos da cultura paraense dão o tom: murici, açaí, tucupi, pato, puba, peixes.
Almerindo vende geleias, doce de leite, leite, queijo, farinha de mandioca. Durante a semana, ele sai de bicicleta para vender de porta em porta, dos dois lados da cidade. Ele começa a desfiar histórias que dão conta de como os pobres são tratados do outro lado da rodovia. “Eu tenho jogo de cintura”, se orgulha.
Certa vez, ele estacionou a bicicleta em frente a uma loja, e foi repreendido. “Ela falou que eu devia ir pro lado leste. Que ali não era lugar pra mim.” Irritado, diz Almerindo, ele decidiu comprar uma carteira: foi a maneira que encontrou de dar uma resposta à agressão que havia sofrido. “Quando falei que eu tava ali pra comprar, aí o tratamento mudou.”
De volta à BR, dirigimos alguns quilômetros até os enormes silos rodeados por soja, da família do sulista Argino Bedin, que em 2020 recebeu Bolsonaro em uma de suas fazendas quando o presidente visitou Sorriso. É domingo, e não há movimento em torno dos silos gigantescos. Logo atrás deles, improvável, surge mais uma mansão, com várias casas e uma pequena área verde, rodeada dos dois lados pela soja. Na rodovia, passamos por soja, soja, soja e soja. Até que chega Sinop, a capital informal do Nortão Matogrossense.
Assim como o racismo e o classismo, as cidades do Nortão são marcadas por LGBTfobia. No dia 9 de março, o prefeito de Sinop, Roberto Dorner (Republicanos) sancionou uma lei que proíbe materiais sobre “ideologia de gênero” em locais públicos, privados de acesso ao público e entidades de ensino. Entre as proibições, está “qualquer conteúdo com informações sobre a prática da orientação ou opção sexual, da ideologia de gênero, de direitos sexuais e reprodutivos, e também da sexualidade polimórfica, ‘desconstrução da família e casamento tradicional.”
Em suas redes sociais, a vereadora Graciele Marques dos Santos (PT), única mulher da legislatura repudiou a sanção da lei “que é homofóbica e contra as principais diretrizes de saúde das mulheres.”
“Não se vitimalize”
“Não venha falar que eu sou racista porque não apoio isso”, discursou o presidente da Câmara de Sinop, Elbio Volkweis. Dentro do gabinete, ele havia rejeitado o convite para participar da celebração do Dia da Consciência Negra, que em 2021, pela primeira vez seria, realizada dentro do Legislativo. Não satisfeito, fez questão de discursar em plenário. “Acho que ninguém pode se vitimalizar [sic] pela cor da sua pele. A cor da pele não dá dignidade a ninguém. Não vamos usar a cor da pele e se aproveitar disso. Isso é racismo.”
A história de Volkweis é semelhante à da maioria dos integrantes da elite política: ele é natural do Paraná, filiado ao Patriotas, partido que chegou a abrigar parte do clã Bolsonaro, e promotor do discurso pró-agronegócio. A fala sobre racismo teve repercussão negativa, então, Volkweis acabou por comparecer ao evento do Dia da Consciência Negra. Ele ficou de pé, próximo à porta, durante cinco minutos, e depois foi embora.
O plenário recebeu em torno de vinte pessoas naquela manhã, a maioria ligadas ao movimento negro. Poucas semanas antes, praticamente todos os vereadores haviam ido à inauguração de um shopping. Mas, ao ato da Consciência Negra, ninguém compareceu.
“Eu acho que caminhou o debate sobre racismo, mas é muito tímido”, analisa a presidente do Conselho de Promoção da Igualdade Racial em Sinop. Márcia Ana Nascimento cresceu em Sinop, passou alguns anos fora e retornou para cursar a faculdade.
No Censo de 2010, negros e pardos formam a maioria de Sinop, mas essa presença não está narrada na história oficial da cidade, nos nomes das ruas, nas praças públicas, nem na política institucional.
De memória, Marcinha começa a revisitar episódios da infância que, na época, não sabia que atendiam pelo nome de racismo. “Eu lembro que eu ia para a escola e o colega falava assim: ‘Não vou comprar Bombril, não. Vou pegar um pedacinho do seu cabelo.’ Tinha uma musiquinha que era sempre perturbadora, que eu ia embora e o colega ia atrás cantando ‘Nega preta fedorenta, bate a bunda no cimento, pra ganhar 1.500’. Então, era muito comum isso.”
O Mato Grosso ocupa a quarta posição no ranking dos estados com maior número de casos de injúria racial em 2020, quando foram registrados 390 casos. Em 2019, foram 489. Os dados são do 15º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Naquele ano, Mato Grosso ocupava a primeira posição no ranking de registros de casos de racismo proporcional ao número de habitantes.
O crime de injúria racial está previsto no Código Penal brasileiro e consiste em ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem. O crime de racismo está previsto na Lei 7.716/1989, elaborada para regulamentar a punição de crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, conhecida como Lei do Racismo.
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