Três policiais militares foram denunciados pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA) pelas mortes de Alexandre Santos dos Reis, 20 anos, Cléverson Guimarães Cruz, 22 anos, e Patrick Sousa Sapucaia, 16 anos, ocorridas na comunidade da Gamboa de Baixo, em Salvador, em março de 2022.
Segundo despacho da decisão, ao qual a Alma Preta Jornalismo teve acesso, os PMs denunciados foram Tárcio Oliveira Nascimento, Thiago Leon Pereira Santos e Lucas dos Anjos Bacelar Dias.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
Eles vão responder pelo crime de homicídio qualificado cometido por motivo torpe. A justiça também determinou afastamento de 180 dias das funções de policiamento ostensivo. Os policiais também estão proibidos de irem até a Gamboa e de manter contato com testemunhas e familiares da vítima enquanto durar o processo.
De acordo com a nota publicada pelo MP-BA, a denúncia foi oferecida na quinta-feira (23) pelo Grupo de Atuação Especial Operacional em Segurança Pública (Geosp) e pela 3ª Promotoria de Justiça do Júri de Salvador.
Dinâmica do crime
Na denúncia, ao qual a reportagem teve acesso, o MP-BA cita que no dia do ocorrido, “sem que houvesse conflito armado no local e no momento dos fatos”, os PMs chegaram no local e passaram a abordar e perseguir as vítimas Alexandre, Cléverson e Patrick, que estavam participando de uma festa na localidade.
Logo depois, os policiais efetuaram disparos que atingiram Alexandre e Patrick próximo a uma casa abandonada. Conforme a denúncia, os jovens foram mortos fora da residência e arrastados para dentro do imóvel, o que contesta a versão dos policiais de que eles foram atingidos apenas dentro da casa.
Já Cléverson foi morto quando estava encurralado dentro de um quarto do imóvel abandonado. Conforme a perícia, Thiago Leon foi o responsável por dar dois tiros no jovem, fato que o próprio PM confessou, segundo a denúncia apresentada pelo MP-BA.
De acordo com a denúncia, após o ocorrido, os PMs “inovaram artificiosamente na cena do crime” e lavaram as poças de sangue das vítimas nas escadas onde foram executadas utilizando vassoura e um balde de água como forma de evitar serem responsabilizados.
Além disso, os agentes, “a fim de comprometer a compreensão da dinâmica do crime”, retiraram os corpos das vítimas do local e levaram para o Hospital Geral do Estado “forjando que estariam com vida e que lhes prestariam socorro”. No entanto, as fichas de atendimento das vítimas revelam que eles já chegaram mortos no Hospital.
Cena forjada
Na denúncia, o MP-BA cita que os policiais introduziram armas na cena do crime, além de outros objetos, como forma de corroborar com o argumento de que as vítimas teriam entrado em confronto com os agentes.
No entanto, perícias feitas nas mãos das três vítimas revelaram que nenhum deles fez disparos já que foi comprovada a ausência de partículas de chumbo nas amostras. Além disso, duas das três armas colocadas na cena do crime apresentavam dificuldade de manuseio para ser utilizada durante um confronto.
“Logo, diante de um suposto confronto, as vítimas estariam em evidente desvantagem considerando que duas das armas apreendidas em poder destas sequer estavam em condições normais para efetuar disparos, muito menos, consecutivos”, cita um trecho da denúncia.
PM já havia torturado uma das vítimas
A denúncia confirma que um ano antes de ser morto, Cléverson Guimarães, de 22 anos, já tinha sido torturado por um dos policiais envolvidos no caso da Gamboa. Um boletim de ocorrência, registrado no dia 16 de março de 2021, mostra que o PM Thiago Leon estava presente na apreensão de Cléverson.
Na noite em questão, em março de 2021, Cléverson estava em casa quando os policiais invadiram o imóvel e o torturaram por quase três horas exigindo-lhe dinheiro. O rapaz ficou em poder dos policiais até às 19h do dia seguinte, quando foi apresentado em uma Central de Flagrantes 25 quilômetros distante da unidade policial mais próxima da Gamboa, onde morava. Após um dia preso, ele foi solto.
Decisão
Em um trecho da denúncia, o MP-BA destaca que os policiais cometeram o crime por “motivo torpe, pelo fato de os policiais presumirem que todas as vítimas seriam criminosos da localidade de Gamboa de Baixo e que poderiam agir ofensivamente para matá-los, diante do desvalor de suas vidas, mesmo sem que houvesse qualquer reação armada ou resistência”.
Além da denúncia, o órgão também solicita que eles sejam exonerados e que sejam condenados ao pagamento de valor mínimo para a reparação dos danos materiais e morais causados pela infração penal.
Em nota, o advogado e coordenador do Ideas Assessoria Popular, Wagner Moreira, destaca que o GEOSP inova com a tese que qualifica o “motivo torpe”.
“Explicitar, qualificar como torpe, a lógica do racismo estrutural que permite o genocídio em curso no país, demonstra que o Ministério Público baiano, não se mantem hermético a décadas de criticas e militância dos diversos setores do movimento negro”, aponta o coordenador, que presta assessoria jurídica para as vítimas.
“No Brasil a lógica que autoriza o extermínio do ‘outro’ é o racismo estrutural. O corpo negro é visto como de hierarquia inferior, e com menos resguardo jurídico/institucional. Não se imagina que ao matar um “corpo branco” no seu habitat natural (um bairro de classe média ou alta) que esse crime vai ficar sem investigação. Mas essa é a regra dos territórios negros em Salvador e no Brasil, como um todo”, completa o advogado.
A reportagem solicitou um posicionamento da Polícia Militar da Bahia sobre quais medidas adotou em relação aos agentes. Em nota, a PM-BA disse que, conforme informações da Corregedoria, “a apuração já foi concluída, sendo remetida ao MP”.
Relembre o caso
O caso aconteceu na madrugada do dia 1º de março de 2022, quando Patrick Souza Sapucaia, de 16 anos, Alexandre dos Santos, 20 anos, e Cleverson Guimarães Cruz, 22 anos, foram mortos por agentes do Batalhão de Rondas Especiais (Rondesp) após uma ação na comunidade da Gamboa, em Salvador.
Segundo a Polícia Militar, os agentes foram em direção ao bairro após uma denúncia de que homens armados estavam na região. Ao chegar no local, os policiais teriam sido recebidos a tiros por um grupo e revidaram. Com isso, segundo a polícia, três homens fugiram para um imóvel e foram encontrados caídos no chão em posse de armas de fogo e drogas.
No entanto, familiares e moradores afirmam que os policiais já chegaram no local dando tiros e atingiram os garotos, que foram levados para uma casa abandonada, onde uma cena de crime teria sido forjada. Na manhã do ocorrido, moradores da comunidade fizeram um protesto e fecharam a Avenida Lafayete Coutinho, popularmente chamada de Contorno, principal via de acesso à Gamboa.
Um inquérito instaurado pela Corregedoria da Polícia Militar, ao qual a Alma Preta Jornalismo teve acesso na época, aponta que ao menos um dos jovens foi executado. O laudo cadavérico de Cléverson Guimarães, uma das vítimas, aponta que ele morreu com um tiro disparado de cima para baixo. Antes do disparo, ele já tinha sido atingido por uma bala.
Ainda conforme a Corregedoria, um ano antes de ser morto ele já tinha sido torturado por policiais, caso confirmado por meio de Boletim de Ocorrência, registrado no dia 16 de março do ano passado.
Além disso, duas das três armas apontadas pelos policiais como sendo dos jovens apresentavam dificuldade de manuseio para ser utilizada durante um confronto. O inquérito cita que o revólver apresentava desajuste no mecanismo interno da arma e danos na parte externa, o que só possibilitaria disparos em ação simples.