Na última semana, o Brasil se deparou com a morte de mais um homem negro por agentes do Estado. Genivaldo Santos, diagnosticado com esquizofrenia, foi preso no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF), em Sergipe, e submetido à tortura com gás lacrimogêneo por não usar capacete enquando dirigia uma moto. Ele morreu por asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda, segundo aponta o laudo do Instituto Médico Legal (IML) de Sergipe. Os policiais envolvidos no caso estão sendo investigados e respondem a um processo administrativo disciplinar.
Casos de racismo e violência policial contra pessoas com deficiência (PCDs) não são incomuns no país. Em fevereiro do ano passado, Marcos Vinícius, um jovem negro com deficiência intelectual, foi espancado e ficou preso por 21 dias após ser acusado de roubo por policiais militares, em Diadema, na Grande São Paulo.
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Também no ano passado, em abril, Thiago Duarte de Souza, jovem de 20 anos e autista, ia a uma padaria, na zona leste de São Paulo, quando foi baleado na boca por um policial à paisana, que o acusou de furto. O jovem morreu após ficar 12 dias internado no Hospital Geral de São Mateus, também na zona leste.
Para ativistas PCDs, casos como o de Genivaldo revelam como o racismo e o capacitismo violentam pessoas negras com deficiência, segundo afirma Luciana Viegas, autista, ativista, mãe de uma criança autista e idealizadora do movimento Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI).
“Quando o braço armado do Estado, que é a polícia, vai agir e apreender pessoas com deficiência, se são pessoas brancas, essa ação é capacitista, é repressiva mas tem uma questão no capacitismo que só acomete pessoas brancas, que é a questão da dó, o cuidado pela dó. Só que quando é com pessoas negras essa parte do capacitismo não chega até a gente, a lógica é de repressão, hipermedicalização, morte, tortura e manicônio”, afirma a ativista.
Segundo Viegas, o capacitismo e o racismo fazem parte de um processo histórico que dizima vidas negras por meio da violência e violação de direitos, sobretudo dentro de espaços institucionais.
“O Genivaldo é uma consequência e um sintoma do que o Estado tem feito há anos com pessoas negras com deficiência. Genivaldo é a consequência para o policial se sentir à vontade de colocar ele dentro de um camburão e colocar gás de pimenta para formar uma câmara de gás”, aponta.
“A polícia não está preparada para lidar com pessoas neurodivergentes”
No Brasil, 17,3 milhões de pessoas, de dois anos ou mais de idade, possuem algum tipo de deficiência, o que corresponde a 8,4% da população nessa faixa etária. Em relação ao perfil racial, 9,7% são pessoas pretas, 8,5% são pardas e 8% brancas. Os dados são da Pesquisa Nacional de Saúde 2019, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No Brasil, estima-se que há cerca de 1,6 milhão de esquizofrênicos, assim como Genivaldo.
No entanto, ativistas reforçam que apenas reconhecem os números coletados em 2010, quando foram registradas pouco mais de 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, sendo 3,8 milhões autodeclaradas pretas.
Mirian Ribeiro é mãe de uma criança negra autista e conta que uma das suas principais preocupações com o filho, Miguel, de sete anos, é a questão da violência policial e a falta de acesso a políticas de saúde mental, já que muitas pessoas possuem algum tipo de deficiência psicossocial mas sequer são diagnosticadas.
“A polícia não está preparada para lidar com pessoas neurodivergentes. Quando a polícia se depara com uma pessoa com algum transtorno, preta, ele não vai achar que aquela pessoa tem algum transtorno mental, ele vai ver aquela pessoa como drogada, bêbada… Vai olhar como uma pessoa que precisa ser exterminada porque o racismo estrutural é isso”, relata.
Mesmo com um diagnóstico, Mirian diz que Miguel ainda não tem acesso a tratamentos. Para ela, a saúde pública mental ainda é falha. “O meu filho é diagnosticado e a gente não tem acesso às terapias que ele necessita, mas ainda é diagnosticado, o que é uma grande coisa tendo em vista que pessoas sequer chegam nesse diagnóstico”, comenta.
“Nascer preto no Brasil já é nascer com um alvo nas costas e quando é uma pessoa preta com deficiência fica ainda mais vulnerável a ser vítima de violências”, completa.
Como mãe de Luiz, uma criança autista não oralizada, Luciana Viegas, fundadora do movimento Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI), aponta que o mais importante é que o filho sobreviva à uma abordagem policial.
“Eu preciso que a polícia não o mate por ele não falar. Isso é importante para mim porque agora ele é uma criança autista, ele tem cinco anos, mas daqui a dez anos ele vai ser um adolescente, um adulto e um senhor de idade autista”, relata.
“Quando a gente fala da deficiência psicossocial, a gente só precisa sobreviver e não é o que tem acontecido, a gente não está sobrevivendo pela polícia, por fome, nas instituições. Durante anos, a gente foi jogado à margem de uma sociedade que simplesmente olha para as pessoas com deficiências psicossociais e tratam como malucos que podem fazer qualquer coisa a qualquer momento”, pontua Luciana Viegas.
Para Marcelo Zig, fundador do ‘Quilombo PCD’, o caso Genivaldo escancara a vulnerabilidade da pessoa com deficiência no Brasil, quando não é possível compreender os “códigos” de uma abordagem policial.
“Basta considerarmos toda a violência que é imposta às pessoas apenas por elas serem pretas pra entendermos que comportamentos de pessoas com deficiências, como não atender a um comando para parar em uma batida policial por ser surda ou reagir ao toque do policial por ser autista. Esses exemplos podem e são facilmente compreendidos como desacatos à autoridade que sustentam a costumeira brutalidade na reação da força policial quando estas pessoas também são pretas”, diz Zig.
Segundo o ativista, é preciso um olhar mais atento para os debates interseccionais dentro da luta anticapacistista e antirracista para evitar que casos como o do Genilvado voltem a acontecer.
“Enquanto a sociedade se relacionar com as pessoas com deficiência reduzindo-as às suas deficiências e não como pessoas, enquanto as discussões sobre interseccionalidades não contemplarem as humanidades das pessoas com deficiência elas, nós, pcd’s, continuaremos sofrendo em profunda invisibilidade as violências que não são identificadas em nossos corpos com deficiência por não sermos acolhidos como pessoas humanas”, finaliza.