“A cultura ballroom é o inverso de tudo o que a nossa sociedade é: misógina, transfóbica, racista e podre”. É assim que Pietra Fellipa, performer e criadora do coletivo ‘House of Astra’, define o movimento criado pela população LGBTQIA+ negra e latina em Nova York, considerada um dos principais espaços de política e acolhimento de corpos historicamente marginalizados na sociedade, como travestis, pessoas trans, gays e lésbicas.
Criada em meados dos anos 70, nos Estados Unidos, as ‘ballrooms’ eram bailes voltados para a população LGBTQIA+, negra e latina que se expressavam através de performances, intervenções artísticas, desfiles e danças. Com a explosão de casos do HIV/Aids por volta de 1980, as comunidades também passaram a abrigar pessoas que viam nesses espaços um refúgio para as violências sociais.
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O movimento teve como percussora a drag queen e travesti negra, Crystal Labeija, que passou a fazer protestos contra os padrões racistas e transfóbicos dos concursos de beleza, que excluiam corpos negros, travesti e trans. A partir disso, Crystal criou a ‘House of Labeija’ (Casa da Labeija, em tradução livre), e deu início às primeiras ‘ballrooms’.
“A sociedade coloca pessoas pretas em lugares de não pertencimento, de não bonitas, de não amadas… Pessoas trans também são colocadas nesse lugar e a ballroom vem para acolher essas pessoas, não só a população LGBTQIA+, mas também pessoas que não são vistas como possibilidade de estar na sociedade”, comenta Pietra Fellipa, uma das pioneiras na formação de um coletivo ‘ballroom’ em Salvador.
Crystal Labeija | Foto: Reprodução/ Documentário ‘The Queen’ (1968)
Na capital baiana, o movimento passou a ganhar força em 2019, quando coletivos se reuniram em busca de difundir e resgatar a cultura que faz parte da luta política da comunidade LGBTQIA+.
A performer e dançarina Pietra Fellipa foi uma das primeiras a formar um coletivo em Salvador, a ‘House of Padam’, atual ‘House of Astra’. O coletivo, que originalmente surgiu em Brasília, hoje conta com 18 membros também organizados em unidades em Manaus e Rio de Janeiro.
Atualmente, Pietra Fellipa ocupa a posição de “Mother” da ‘House of Astra’, termo que na cultura ballroom representa a figura da mãe das casas, ou seja, a responsável pelas(os) integrantes do coletivo.
“Quando a gente fala de acolhimento, de amor, a gente não tem como falar outra coisa a não ser a mãe. E o termo “mother” vem para suprir todas as necessidades. É a pessoa que abre mão das suas coisas pelos seus filhos e não só dos seus filhos, mas pelas pessoas que ela gosta”, diz Pietra.
Pietra Fellipa | Foto: Arquivo Pessoal/Pietra Fellipa
Na cultura ballroom, as ‘Houses’ (Casas) eram uma espécie de “aquilombamento”, ou seja, espaços físicos liderados por uma “mãe” ou um “pai” que acolhiam e forneciam cuidados para jovens negros e latinos da comunidade LGBTQIA+ que viviam em situação de vulnerabilidade ou haviam sido expulsas(os) de casa.
Divulgação/Chantal Regnault
Com o passar do tempo, as Casas passaram a ganhar novas configurações, sem necessariamente se estabelecer como um espaço físico, como conta o dançarino e um dos fundadores da ‘House of Tremme’, Lip Moreira.
“As Casas não necessariamente existem enquanto um espaço físico. A galera se une pela vida, pelos interesses, afetos, pelas necessidades de estudo, trabalho, e cada Casa adota os filhos de uma maneira”, conta Lip Moreira.
O performer Ian Tremme, “father” da ‘House of Tremme’ destaca a importância das travestis na criação de um espaço de acolhimento e cultura para a comunidade LGBTQIA+.
“É uma comunidade que surge em conjunto com a comunidade LGBTQIA+ preta e latina, mas o primeiro grito foi das travestis, foi um espaço que elas criaram para poder existir e a gente precisa entender sobre quem é essa comunidade”, afirma o artista.
“Fathers” da House of Tremme | Foto: José Bittencourt
‘Todo mundo quer os nossos corpos, mas a gente não tem valor de mercado’
Além de desfiles e performances, a dança é um dos principais elementos da cultura ballroom. Dentre uma variedade de estilos, um dos movimentos mais populares é o ‘Vogue’, uma dança que surgiu baseada nas capas de revista da marca e teve como um dos pioneiros o performer e dançarino Willi Ninja.
Willi Ninja | Foto: Chantal Regnault
Mesmo com a contribuição mundial da cultura ballroom para o cenário da música pop, da moda e comportamento, integrantes ainda apontam uma desigualdade no reconhecimento e investimento nas produções feitas pela comunidade LGBTQIA+.
“O que a ballroom precisa hoje, no Brasil e no mundo, é de investimento. Todo mundo quer o ‘voguing’, todo mundo quer grandes modelos que tenham estéticas diferentes, todo mundo quer os nossos corpos, mas a gente nunca tem esse valor de mercado”, destaca Lip Moreira.
A insegurança, a falta de políticas de proteção e de investimento na potência cultural LGBTQIA+ também são apontadas como umas das principais barreiras para os coletivos em Salvador.
Segundo último relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), Salvador é a capital mais perigosa para a população LGBTQIA+, sendo a Bahia o segundo estado com maior número de assassinatos da comunidade.
Em 2021, a capital baiana registrou 12 mortes de pessoas LGBTQIA+, seguida por São Paulo, com 10 ocorrências. Os números apontam que o risco de uma pessoa LGBT da Bahia ser vítima de morte violenta é 75% maior ao de um paulistano.
Em relação ao perfil das vítimas, o GGB aponta que os homens gays são os mais vitimizados pela violência letal, o que representa 51% das pessoas assassinadas no ano passado. Em seguida estão as travestis e transexuais, com 36,67% dos casos. Quanto à cor das vítimas assassinadas, 28% eram brancas, 25% pardas, 16% pretas e uma pessoa era indígena.
“Ainda existe um estereótipo em relação a gente, principalmente por ser a maioria pessoas trans, travestis, pessoas pretas e estamos sempre nesse lugar, de corpos dissidentes. Somos pessoas que a sociedade chama como pessoas perigosas e que não merecem afeto”, diz Pietra Fellipa.
“A gente (mulheres trans) está à frente da movimentação e somos o alvo principal. Somos um colete à prova de balas da nossa própria comunidade”, finaliza Pietra.
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