“Um caderno, uma agenda, são mais que meros materiais de escrita, é uma memória afetiva. Nele, registramos o que iremos resgatar em anos, até décadas depois. Receber, dar ou permitir que uma criança se veja naquilo é um ato motivacional e de valorização aos seus traços, à sua intelectualidade e à sua autoafirmação”, acredita a afroempreendedora Ana Cláudia Silva, pioneira no segmento de papelaria étnica no Brasil e detentora da Afra Design.
Educadora formada há 18 anos, mulher preta e mãe de três filhos, Ana se tornou afroempreendedora por essência, segundo ela. A menina negra retinta, nascida e criada na periferia da cidade de Guarulhos, na grande São Paulo, foi uma estudante bolsista de escola particular até o ensino fundamental. Filha mais velha e única mulher dentre três irmãos, Ana Cláudia relembra o quanto foi desconfortável não encontrar materiais escolares que pudessem causar identificação com seus filhos.
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“Me recordo, como se fosse hoje, minha indignação quando fui comprar os materiais da lista do meu filho e queria que fossem cadernos com a capa do Pantera Negra. Para minha surpresa, não achei nada. Isso impacta não só nossa autoestima como em nosso senso de auto afirmação, que perpetua o mito da desigualdade racial no país”, aponta a empresária, que também é pós-graduada em gestão escolar e especializada em História e Cultura Afro-Brasileira pela Universidade de São Paulo.
“Aprendi cedo a negociar”
Desde muito jovem, a afroempreendedora foi incentivada a prestar concursos públicos, seguindo o exemplo de seus pais. “Crença esta que me levou a ser concursada durante minha atuação como docente e que me impediu por diversas vezes, durante minha trajetória como empreendedora, de exonerar e investir somente à minha meta de empreender”, comenta.
Contudo, Ana relembra que seus pais precisavam se envolver com maneiras criativas de complementar a renda, a fim de manter o conforto da família. Com essas atividades, a empresária começou a perceber a aptidão que possuía para os negócios.
“Ficávamos aguardando as caixas de legumes e frutas que, em seguida, venderíamos nas feiras. Cresci aprendendo ainda mais sobre empreendedorismo, vendo meu pai fazer compra de produtos sazonais na zona cerealista e de comércio popular da capital. Produtos que depois ele venderia para os colegas de trabalho ou em grêmios. Aprendi cedo a negociar”, pondera Ana Cláudia.
O pai dela não foi o único que a inspirou a seguir os caminhos para o próprio negócio. Pelo contrário: sua mãe sempre foi uma figura que lhe causou admiração pela inteligência e organização. “Admirava minha mãe gerenciando eventos, assumindo a direção de lanchonete aos finais de semana, sendo a criativa e administrando as ideias do meu pai. Minha ascendência me ensinou a ter ambição, enxergar oportunidades em tudo e realizar”, ressalta a afroempreendedora.
“Empreender veio para mim como uma necessidade de cura”
De acordo com Ana Cláudia, a papelaria étnica Afra Design surgiu a partir de diversas percepções: a diversidade em sala de aula, local em que ela atuou por anos, a falta de materiais com temática negra, o impacto da Lei 10.639/03 – voltada à desconstrução da educação eurocêntrica – e a vontade de ter um empreendimento inclusivo.
“Criei o termo: Papelaria Étnico Inclusiva, exatamente para que haja inclusão dos nossos ao mercado tradicional. Para que tenhamos acesso e opção em nossos hábitos de consumo. Empreender veio pra mim como necessidade de cura. Precisei me afastar da sala de aula por doenças psicossomáticas que se desencadearam ao longo da profissão e do acúmulo de funções que desempenhava na época”, explica.
Segundo a afroempreendedora, o início da empresa foi totalmente familiar, com atividades realizadas na sala de sua casa. No decorrer do tempo, Ana buscou uma base sólida de conhecimentos, estudou empreendedorismo por meio de iniciativas como AfroHub e Afrolab.
Atualmente, a papelaria étnica Afra Design elabora e comercializa cadernos, agendas, planners, blocos de notas, bolsas, mochilas, pochetes e malas. Tudo a partir do processo criativo de Ana Cláudia, que idealiza os projetos e repassa para as ilustradoras e designers parceiras.
“Toda peça de papelaria e moda da Afra Design é autoral, não há plágio. Personalizamos a parte interna e externa de todo produto da papelaria, que é a única do mercado a fazer esse trabalho em escala gráfica”, salienta.
Inspiração e conselhos
“Sigo com parceiros que adquiri no princípio de tudo, quando eu era apenas uma professora com uma ideia: Feira Preta, Afrobusiness, Facebook-Meta, Mulheres Com Propósito entre outros. Sou mulher negra retinta, mãe, penso que toda interseccionalidade deve ser contemplada quando traçamos paralelos para nos espelharmos”, pondera.
“Minha mãe e minha avó paterna são o reflexo mais próximo e mais perfeito que tenho de mulheres que transformam a realidade. Não quero ser menos do que isso para humanidade”,complementa.
A afroempreendedora aconselha as mulheres negras, que estão no início de seus negócios, a ter iniciativa e coragem de se dedicar ao projeto. Para Ana, a importância de empreender está para além da “cartilha”.
“Nós, mulheres negras, precisamos sair do afroempreendedorismo de subsistência e ser gestoras de negócios de alto potencial de escalabilidade. Não se diminua como dentro do seu potencial de líder, de dona de um negócio, de CEO. Almeje sempre o topo do mercado e seja estratégica, inovadora e segura do seu tempo de seguir, estacionar ou desistir por motivos sóbrios”, finaliza a empresária.
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