“Os processos tão caindo para mim”, afirmou o autônomo Milton Jorge da Silva, de 29 anos, durante mais uma audiência no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Milton é um homem negro que está preso desde 13 abril de 2020, no dia do seu aniversário de 25 anos. Ele foi alvo de oito acusações de crimes que aconteceram principalmente na região da Pavuna, Zona Norte do Rio de Janeiro. Em cinco delas, foi absolvido por falta de provas. Em outras três, foi condenado.
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As acusações ocorreram depois de as vítimas dos crimes, quase sempre de roubos, prestarem queixas em delegacias de polícia. Os policiais então apresentaram um álbum de fotos de suspeitos e as vítimas reconheceram Milton Jorge.
A maioria das ocorrências foi registrada na 39ª Delegacia de Polícia (DP), na Pavuna. A defesa contesta o modo as delegacias encaminharam os processos de reconhecimento dos responsáveis do crime.
As acusações começaram, segundo o próprio Milton, após uma detenção no sistema socioeducativo quando ele tinha 17 anos, ou seja, ainda na adolescência.
Os cinco casos em que Milton foi inocentado foram de roubo. Em todos eles, as testemunhas o acusaram com base em fotografias apresentadas em delegacias.
A Alma Preta questionou a Polícia Civil do Rio de Janeiro se a fotografia dele está presente no álbum de fotos da delegacia desde o período, se a unidade ainda tem um álbum de fotografia de suspeitos e se Milton permanece nele. O órgão não se posicionou até a última atualização desta reportagem.
O Ministério Público e o Tribunal de Justiça do estado também não responderam sobre como o reconhecimento por álbuns fotográficos de suspeitos afeta suas decisões.
O espaço continua aberto para a manifestação das autoridades.
Pedido de anulação em condenação de assalto
A defesa de Milton Jorge está recorrendo em um dos três casos em que ele foi condenado. O autônomo foi reconhecido como um dos suspeitos de assaltar um ônibus na Pavuna em janeiro de 2020.
A condenação já aconteceu na primeira e segunda instância da justiça do Rio de Janeiro.
Uma das vítimas contou em audiência que um homem e uma mulher entraram em um ônibus na Pavuna e anunciaram o assalto. O homem era negro de tom de pele mais clara, com 1,83m de altura.
A vítima foi à 39ª DP três dias depois do assalto e reconheceu Milton Jorge em um álbum fotográfico. Um ano e seis meses depois, aconteceu o reconhecimento pessoal. Nenhuma outra pessoa que estava no ônibus prestou depoimento.
A descrição feita do criminoso não coincide com as características de Milton Jorge, que é um homem negro de pele escura com 1,95 m de altura.
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Agora, já na terceira instância, a defesa optou por apresentar um habeas corpus para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. A expectativa é sobre o retorno dos ministros do STJ acerca do pedido.
A defesa de Milton Jorge é feita por advogados indicados para o caso pelo Instituto de Defesa do Direito à Defesa (IDDD).
“A gente está no momento crucial de ver ou não a ilegalidade em um dos casos dele”, afirma Pamela Villar, coordenadora do Grupo de Trabalho de Reconhecimento de Pessoas do IDDD.
“Esse é o caso mais gritante, porque além de todas as ilegalidades e toda a contrariedade à lei, a descrição que a vítima faz na hora do depoimento dela não bate em absoluto com as características de Milton Jorge”, completa.
A defesa dele conta também com os advogados Fernando Henrique Cavalcante, Catarina Bussinger e Gabriel Aparecido Moreira da Silva.
A reportagem questionou os motivos de o Ministério Público e o Tribunal de Justiça terem apresentado denúncia e condenado Milton Jorge da Silva, mesmo com as diferenças entre o que foi descrito pela vítima e as características físicas do acusado.
Até o fechamento da reportagem, os órgãos não responderam às perguntas.
Ilegalidades do reconhecimento
Pamela Villar afirma que o reconhecimento de Milton Jorge não ocorreu conforme a legislação brasileira.
“No caso dele foi um reconhecimento fotográfico que não obedeceu ao que prevê a lei. Ou seja, que ele seja descrito antes, que a descrição bata e que ele seja colocado ao lado de várias pessoas que se parecem fisicamente com ele. Então, nada disso foi respeitado e ele foi condenado com base nessa ilegalidade”, explica.
Para ela, a situação é um exemplo da seletividade do sistema jurídico brasileiro contra pessoas negras e pobres.
“Quando estamos falando de pessoas pretas e pobres, o sistema massacra, passa por cima mesmo”, afirma.
Além do assalto ao ônibus, Milton foi condenado outras duas vezes por reconhecimento fotográfico: uma após outra acusação de roubo; e outra por latrocínio (roubo seguido de morte).
Problemas do reconhecimento por álbum fotográfico
Outra advogada do caso, Catarina Bussinger, conta que o álbum fotográfico pode induzir a vítima do crime a apontar uma pessoa que não necessariamente tenha visto antes.
“O reconhecimento que ocorreu durante audiência, embora tenha apontado Milton Jorge, não elimina o vício inicial. A memória é falível por sua natureza e, nesse processo de recuperação, a depender de uma série de fatores dos processos cognitivos, a memória pode induzir ao erro”, afirma.
Milton Jorge ainda relatou para a juíza que, no dia do assalto, trabalhou com entrega de gás das 8h da manhã às 22h.
Por ser um trabalho informal, a defesa dele não conseguiu comprovar sua presença no trabalho no momento do crime.
Caso na adolescência
Com 17 anos, Milton Jorge foi acusado de participar de um sequestro relâmpago. Na época, ele e um amigo teriam roubado um carro e tentado levar a vítima para sacar dinheiro em um caixa eletrônico.
Segundo boletim de ocorrência, o caso ocorreu na Avenida Martin Luther King Jr., uma via extensa que passa por seis bairros na Zona Norte do Rio, ligando Del Castilho à Pavuna.
Os policiais contaram que, depois de ouvir uma testemunha, perseguiram um carro e atiraram em um dos pneus. Os dois adolescentes pararam o automóvel e a polícia, então, resgatou a vítima, segundo o boletim de ocorrência.
Milton Jorge da Silva ficou pouco mais de um mês detido no sistema de medidas socioeducativas do Rio de Janeiro.
Nas audiências, ele afirma que antes das oito acusações por reconhecimento fotográfico, essa tinha sido a única passagem dele pelo sistema de justiça.
“Tem muitos processos. Eu não sei explicar, mas tem muitos processos que caíram para mim”, afirmou durante a audiência de uma das acusações.
Situação comum nas delegacias do Brasil
Para Pamela Villar, não é possível afirmar de maneira categórica que Milton Jorge tenha sido fichado desde esse episódio da adolescência. Mas, de maneira geral, ela afirma que o sistema penal no Brasil tem essa característica de punir as pessoas de maneira contínua.
“Isso acontece em todos os distritos policiais. Quando uma pessoa passa, de alguma maneira, pelo sistema, ela é fotografada, tem seus dados ali apresentados e tudo isso pode ser usado contra ela”, conta.
Para ela, é fundamental que isso pare, porque prejudica essas pessoas por muito tempo.
“Porque se dessa maneira for, as fotografias continuarão sendo apresentadas e ele vai continuar sofrendo outras acusações, mesmo sem ter praticado nenhum crime”, explica a advogada.
Villar ainda conta que, por causa dessa perseguição, a defesa tem duas atuações nesse caso. “Uma é tentar consertar o erro que já foi cometido. A outra é evitar erros futuros”, conta Villar.
Uma das absolvições de Milton Jorge
Em 25 de abril de 2023, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro inocentou Milton Jorge de uma acusação de roubo, que ocorreu em 10 de julho de 2019.
As vítimas foram um motorista de van e outras pessoas que estavam nos arredores. Em depoimento na 39ª DP — a mesma que registrou outras acusações contra Milton Jorge —, uma dessas pessoas afirmou que eram quatro assaltantes dentro de um carro.
Segundo ela, dois estavam armados e um deles era “pardo, magro, alto, com cerca de 25 anos”. Ela também disse que ele “vestia casaco cinza de capuz, bermuda estampada, boné preto”.
Como em outros casos, a vítima reconheceu Milton Jorge da Silva “depois de verificar o álbum de fotos” da 39ª DP, que foi a responsável por investigar o caso.
Outra testemunha afirma que um dos ladrões “era negro e bem alto” e uma terceira reconheceu, também pelo álbum de fotos, Milton Jorge como um dos autores.
O reconhecimento foi a principal prova apresentada pelo Ministério Público para denunciá-lo, mas a juíza Daniela Barbosa de Souza entendeu que não havia provas suficientes para condená-lo.
“Ao final da instrução, cumpre reconhecer, na forma da manifestação das partes, que não resultou comprovada a autoria do fato delituoso descrito na denúncia, no entender deste Juízo, impondo-se a absolvição do réu”, afirmou.