PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

Disseram para eu prender o cabelo de forma discreta, conta vencedora de processo de racismo institucional

22 de dezembro de 2020

Após passar por seleção e treinamento, superiores da Fleury alegaram que o cabelo da ex-recepcionista chamava atenção pelo volume e sugeriram que ela o alisasse

Texto: Flávia Ribeiro | Edição: Nataly Simões | Imagem: Acervo Pessoal

Quer receber nossa newsletter?

Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!

Foi por meio de um anúncio na internet que Mayara Oliveira chegou ao local de trabalho. Fez o processo de seleção. Passou. O treinamento para assumir o cargo foi tranquilo, embora percebeu de cara a ausência de representatividade negra no espaço. No primeiro dia de trabalho na empresa, no entanto, começaram os problemas e as críticas em relação aos cabelos crespos da nova funcionária. Depois de passar por várias etapas, a jovem, negra, com cabelos black power, foi comunicada que a sua aparência não se adequava ao padrão da empresa, que detinha um documento Institucional chamado “guia de padronização visual”, no qual não possuía pessoas negras.

O caso foi parar na justiça e se tornou emblemático uma vez que os ministros da 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) decidiram condenar o laboratório Fleury a pagar uma indenização por danos morais de R$ 10 mil à ex-recepcionista por racismo institucional, um ato histórico.

Mayara trabalhou por seis meses na empresa. Nesse período, tentou se ajustar “ao padrão”, mas para isso teria que passar por processos químicos. “Mantive o cabelo natural, mas sempre preso no estilo abacaxi. Mesmo assim, quase todo dia era chamada atenção para prender o cabelo “da forma mais discreta possível”. Chegaram a sugerir que eu alisasse”, afirma a jovem, pontuando que no período em que esteve lá, não haviam funcionárias negras na recepção além dela. O relato vai ao encontro da decisão dos ministros do TST, por maioria, de condenação da empresa por discriminação, pela falta de diversidade racial no guia de padronização visual da companhia.

Além de ser a única negra no cargo, da unidade, segundo a ex-funcionária, o manual de padronização visual não refletia a imagem de pessoas negras. A regra era muito objetiva: se o cabelo for abaixo dos ombros, deve estar preso. Quem tivesse franja deveria prender para trás, para não cobrir o rosto. “Mas muitas colegas da recepção que tinham o cabelo abaixo dos ombros utilizavam eles soltos sem problema nenhum, sem nunca serem advertidas por isso e outras colegas que possuíam franja também deixavam as franjas soltas no rosto. Meu questionamento sempre foi: por que elas, com seus cabelos lisos ou alisados, podem utilizá-los soltos e com franja, descumprindo o manual de padronização, e eu não posso usar meu cabelo amarrado no perfil abacaxi, como sempre utilizei?”, conta Mayara.

“A resposta era que mesmo preso meu cabelo chamava atenção por ser volumoso, por isso eu deveria sempre o deixar preso para atrás, da forma mais discreta possível ou fazer algum tipo de alisamento ou progressiva”, complementa.

Depois de meses enfrentando essa situação, veio a demissão. A alegação foi de corte de funcionários, mas isso só aconteceu dias após Mayara ter proposto o projeto “Pigmentando Igualdade”, focado em como combater o racismo nas relações dentro das empresas. “Eles me demitiram sob a justificativa de que eu não me enquadrava nos critérios pré-estabelecidos pela empresa, sendo que eu já havia passado do período de 90 dias de experiência. Eles dizem que não, mas senti que a demissão aconteceu porque eu já estava falando sobre as situações de racismo, já havia encaminhado o projeto para análise e eles não me ouviam, decidiram ‘cortar o mal pela raiz’.”, frisa Mayara.

Incomodada, ela reclamou na justiça e por duas vezes a empresa foi inocentada. Até que, no início de dezembro, o tribunal entendeu que a trabalhadora deveria ser indenizada por danos morais, pela ausência de representatividade negra no guia de padronização visual. “Pensei que eles sairiam ilesos porque são muito ricos e têm uma boa fama no mercado. Mas assim que saiu a condenação pelo TST fiquei muito feliz porque meu caso abre precedente para outros casos, o que significa que outros casos de racismo institucional podem ser julgados a partir do meu”, comemora Mayara.

Vitória do movimento negro

Para Monique Prado, advogada que defendeu o caso, a decisão em favor da trabalhadora representa uma vitória do movimento negro, que tem fomentado a discussão racial no âmbito não só das relações sociais como também de forma estrutural. “No caso da minha cliente, o que há de inédito é o reconhecimento do racismo institucional na esfera trabalhista, uma vez que a ministra reconheceu no guia de padronização visual a ausência de representatividade negra, abrindo precedente para que outras trabalhadoras negras não tenham os seus direitos cerceados dentro das organizações, sejam elas públicas ou privadas”, analisa.

Em primeiro grau, a Justiça do Trabalho julgou improcedente, por falta de provas, o pedido de indenização de R$ 40 mil. No segundo grau, a empresa também foi inocentada. No entanto, o TST, apontou que a falta de diversidade no guia de padronização já é uma discriminação e que, portanto, a ex-funcionária deveria ser indenizada.

Outro lado

A agência Alma Preta entrou em contato com a Fleury por meio das redes sociais a fim de buscar um posicionamento oficial da empresa para a reportagem. Até a publicação deste texto, não houve resposta.

Em nota à imprensa no dia 9 de dezembro, a Fleury afirmou que em seus 94 anos de existência, possuem um “comportamento rigorosamente ético e de respeito no relacionamento com todos que atuam na empresa e com as pessoas que procuram os seus serviços, e repudia com veemência qualquer tipo de discriminação”.

Segundo a empresa, o quadro de colaboradores é “marcado pela diversidade”, “composto por 11 mil pessoas, das quais 50,6% são pessoas negras e 80% são mulheres”. Além disso, o grupo destacou manter um Canal de Ética e Conduta independente para apurar denúncias de práticas e posturas contrárias ao seu Código de Confiança, que veta qualquer ato discriminatório. “Vale dizer que o documento a que se refere o acórdão não é vigente, nunca se orientou por qualquer tipo de discriminação e sua versão atual reforça ainda mais a política de diversidade e inclusão da companhia”, disse o comunicado.

Apoie jornalismo preto e livre!

O funcionamento da nossa redação e a produção de conteúdos dependem do apoio de pessoas que acreditam no nosso trabalho. Boa parte da nossa renda é da arrecadação mensal de financiamento coletivo.

Todo o dinheiro que entra é importante e nos ajuda a manter o pagamento da equipe e dos colaboradores em dia, a financiar os deslocamentos para as coberturas, a adquirir novos equipamentos e a sonhar com projetos maiores para um trabalho cada vez melhor.

O resultado final é um jornalismo preto, livre e de qualidade.

Leia Mais

PUBLICIDADE

Destaques

AudioVisual

Podcast

papo-preto-logo

Cotidiano