PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

‘Enquanto eu não achar o corpo, acredito que meu filho está vivo’

O apelo de uma mãe para que o Estado assuma a responsabilidade pelo desaparecimento do filho.
Osmar Fernandes Pereira de Azevedo estava indo para Juatuba, antes de voltar para o Complexo Penitenciário Doutor Pio Canedo, em Pará de Minas, quando falou com a mãe pela última vez.

Osmar Fernandes Pereira de Azevedo estava indo para Juatuba, antes de voltar para o Complexo Penitenciário Doutor Pio Canedo, em Pará de Minas, quando falou com a mãe pela última vez.

— Ilustração: Lucas Silva

20 de abril de 2025

No dia 20 de março de 2019, Osmar Fernandes Pereira de Azevedo se despediu da mãe, a aposentada Maria Antônia Pereira, em um barraco de favela no bairro Goiânia, em Belo Horizonte.

Ele retornava para o Complexo Penitenciário Doutor Pio Canedo, em Pará de Minas, na região metropolitana de Belo Horizonte, onde cumpria pena. Beneficiado com a “saidinha”, deveria se apresentar ao presídio até 17h do dia seguinte. 

Quer receber nossa newsletter?

Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!

Osmar estava há cinco dias ao lado da mãe e dos três filhos. Depois de 15 anos preso, ele estava a apenas 15 dias de ganhar a liberdade condicional e cumprir o restante da pena em casa.

Com um sorriso no rosto, dona Antônia, aos 61 anos de idade, revisita as memórias dos dias com Osmar.

“Ah, ele fez uma faxina na minha casa, meu filho, que eu nunca vi a casa limpa daquele jeito”, relembra. “Ele ficava vendo filme na televisão, buscava pão na padaria… Onde ele ia, os meninos iam atrás”. 

Essas são as últimas lembranças que dona Antônia tem de Osmar.

Depois de deixar a casa da mãe, Osmar disse que ia encontrar uns amigos em Juatuba, cidade vizinha, antes de voltar à prisão.

No trajeto, dona Antônia fez duas ligações para o filho. Na primeira, ele disse que já estava na cidade. Na segunda, por volta de 15h, Osmar respondeu “tá, tá, mãe” aos questionamentos preocupados da dona Antônia e encerrou a ligação em seguida.

“Ele falou que estava chegando em Juatuba. Eu disse: ‘Osmar, conversa comigo direito’. Ele disse: ‘Tá, tá, mãe’, e desligou”.

Nas tentativas seguintes de entrar em contato com o filho, o telefone dele já estava desligado. “Eu senti que estava acontecendo alguma coisa”, conta dona Antônia.

A busca por Osmar

Seguindo seus instintos, dona Antônia foi atrás do filho poucas horas depois. Colocou uma foto de Osmar na bolsa e enfrentou uma hora de ônibus até Juatuba.

Entre os locais mais visitados por ela estavam os hospitais e os pontos de vendas de droga da cidade. 

“Rodei a cidade toda com a foto dele na mão. As pessoas me diziam que eu estava procurando problema para mim, que iriam me matar e jogar meu corpo na vala. Eu falei que não tinha importância, porque onde corre o sangue de um filho, tem que correr o sangue de uma mãe”. 

Durante esse período, a única informação que recebeu foi de que Osmar teria comprado um cigarro de maconha em um bairro da cidade. O relato foi de um usuário de drogas, com quem dona Antônia conversou e para quem mostrou a foto do filho.

Mas Dona Antônia rejeita essa versão. “Ele não ia sair de Belo Horizonte só para comprar um cigarro de maconha em Juatuba”.

Para facilitar as buscas, ela decidiu deixar a vida em Belo Horizonte e se mudar definitivamente para Juatuba, onde mora até hoje junto aos três netos, filhos de Osmar. Atualmente, eles têm 17, 19 e 21 anos.

“Até hoje eu não me acostumei aqui. Passei por muitas dificuldades, só não passo fome porque sou uma mulher abençoada e Deus manda para mim os vizinhos abençoados, que me ajudaram. Aqui não tem emprego. Eu sou aposentada por invalidez, mas lá em Belo Horizonte tinha uma passação de roupa, uma lavação, aqui não acho isso”.

Seis anos de ausência

A tentativa solitária de dona Antônia de resolver o paradeiro de Osmar já dura seis anos. Ela relata que se sente desamparada pelas instituições competentes e luta para que o Estado de Minas Gerais assuma a responsabilidade pelas buscas de Osmar.

“É pior do que você enterrar um filho, porque quando você enterra, a dor é grande, mas acaba ali. Agora, quando está desaparecido, você não sabe se a pessoa está comendo, bebendo, dormindo… Aí você imagina tudo de ruim. Não pensa nada bom”.

Sem localizar Osmar, dona Antônia foi no mesmo dia 20 de março de 2019 à delegacia na tentativa de registrar um boletim de ocorrência pelo desaparecimento. Mas o registro foi negado sob o argumento de que Osmar estaria foragido, já que ele não havia retornado ao presídio. 

Na insistência para registrar o B.O., ela ainda buscou a Ouvidoria da Polícia e a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, mas foi informada de que Osmar já era considerado foragido no sistema da justiça.

Ela não considera a possibilidade de que Osmar tenha fugido. “Quem ficou 15 anos preso não vai ficar foragido faltando 15 dias para ganhar a condicional. Só se fosse doido”.

Investigação solitária

Sem o apoio das autoridades, dona Antônia passa a investigar sozinha o desaparecimento de Osmar. Nessas buscas, recebeu a informação de que o filho havia sido morto e o corpo jogado na mata do Vereda, em Juatuba, próximo ao rio Paraopebas. 

Dona Antônia foi até o Instituto Médico Legal (IML) para tentar fazer o reconhecimento do corpo e oferecer material genético para exame de DNA. A mostra foi colhida, mas ela nunca teve acesso ao cadáver ou ao resultado, mesmo com idas e vindas ao IML. 

A luta de dona Antônia para registrar um boletim de ocorrência por desaparecimento se estendeu até maio de 2019 e só foi concluída com a intervenção do Ministério Público.

Um ofício da 18ª Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos e Igualdade Racial direcionado à 2ª Delegacia de Polícia Civil de Mateus Leme pediu a elaboração de boletim de ocorrência de desaparecimento. 

O documento também solicitou a quebra do sigilo telefônico de Osmar para rastrear onde ele estava quando falou com dona Antônia pela última vez e as imagens das câmeras dos transportes públicos em que ele transitou, mas esses pedidos foram negados.

No dia 16 de novembro de 2020, ela protocolou no Tribunal de Justiça de Minas Gerais uma carta de próprio punho ao então presidente do órgão, Nelson Missias de Morais, onde relata o drama sofrido e pede à justiça providências para localizar Osmar. 

Entre os pedidos também estavam a mudança do status de “foragido” para “desaparecido” no sistema operacional da justiça para que isso facilite as investigações. 

Porém, em novo contato com a Defensoria, foi informada que não havia nenhuma investigação em andamento para localizar Osmar. 

Dona Antônia diz que as autoridades brasileiras não se esforçam nas buscas por Osmar. Ela acredita que o filho é tratado com preconceito pelas instituições em razão de estar cumprindo pena.

A aposentada nasceu em São José do Goiabal, interior de Minas, e criou os seis filhos com o dinheiro que conseguia a partir da venda de bebidas e outros serviços informais e com o salário de motorista de ônibus do marido. 

“Não aceito que os outros falam que meu filho é bandido. O filho é meu, eu sei o que passei para sustentar ele, quantos tanques de roupa eu lavei na casa dos outros, quantas noites que eu virei na porta do [estádio] Mineirão vendendo cerveja e refrigerante para criar ele e os irmãos. Fala mal de mim, mas não fala do meu filho que eu viro o cão”.

Com uma jornada marcada por negligências, dona Antônia diz não acreditar mais nas instituições. “Eu não saio de casa para votar em ninguém mais, eu prefiro ir lá e pagar a multa”, protesta.

Dona Antônia ainda afirma que foi alvo de ironias durante as tentativas de buscar respostas para o caso na delegacia. “A delegada disse que a hora que os cachorros desenterrarem as ossadas de Osmar, ela mandaria a ‘rapa’ (viatura) ir lá em casa me buscar para reconhecer os restos mortais”. 

Procedimento não é padrão para casos de foragidos

A advogada abolicionista Dina Alves, presidente da Comissão da Diversidade Racial e de Gênero da OAB/Iguapé-SP e assessora jurídica do movimento Mães de Maio, explica que o procedimento descrito pela dona Antônia sobre a atuação das autoridades no caso Osmar não é o padrão para casos de foragidos. 

De acordo com ela, para ser considerado foragido, as instituições deveriam expedir mandado de busca e captura. Isso não aconteceu. O processo está arquivado.

Alves diz que a responsabilidade do Estado é redobrada caso Osmar seja, de fato, considerado foragido, o que torna ele um tutelado do Estado.

“Se o Osmar desapareceu em um trajeto urbano, o Estado tem que dar conta desse desaparecimento. Já se Osmar estiver foragido, ele é um tutelado do Estado. Então, de uma forma ou de outra, as instituições de Minas Gerais precisam responder o questionamento de dona Antônia”.

Dina classifica Osmar como “desaparecido político por motivações raciais e de território”. No Brasil, 54,3% das pessoas desaparecidas são negras, mas apenas 45,1% são encontradas. A maioria dos encontrados é da cor branca, cerca de 54,1%, de acordo com dados da Universidade São Paulo (USP).

“O tratamento das instituições de Minas Gerais em relação à dona Antônia, à família dela, ao próprio Osmar, é um tratamento racista, já que são pessoas negras. E ainda tem as questões territoriais em razão deles serem de bairros periféricos”, avalia Alves.

A advogada, que acompanha o caso desde 2024, disse que vai protocolar uma denúncia na Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos contra o Estado de Minas. 

“É preciso que o Estado diga: onde está Osmar? O que a gente faz com as consequências do desaparecimento de Osmar à família? Ele é um desaparecido ou ele realmente é um foragido? E por quê?”.

‘Eu acredito em milagre’

A trajetória de dona Antônia para que o Estado reconheça a sua responsabilidade nas buscas por Osmar dura seis anos. Ela relata que acumula doenças físicas e mentais em razão do cansaço, da preocupação e da negligência que sofre.

“A cabeça parou de funcionar porque eu só fico pensando no que aconteceu com ele. Eu ponho a panela no fogo e esqueço, queimo a comida. Um outro agravante é que eu estou sentindo muita dor no corpo. O médico fez os exames, mas não deu nada, então ele disse que é por causa da depressão profunda que estou tendo”.

Os filhos de Osmar também sentem sua ausência. “Todo dia o mais velho fala para mim: ‘ô Antônia, você não teve nenhuma notícia do meu pai? Você já achou o corpo, enterrou e não quis falar para nós’. Eu digo: ‘não, mas o dia que eu achar eu vou mostrar pra vocês’”.

Mas a esperança de Antônia é achar Osmar vivo. “Enquanto eu não achar o corpo, acredito que meu filho está vivo. Todo dia eu falo para Deus: ‘o Senhor não me deu um dedo dele. No dia que o Senhor me der um dedo, eu vou saber se ele está vivo ou não’”. “Eu tenho muita esperança que ele esteja vivo, eu acredito em milagre”.

A esperança de dona Antônia caminha ao lado das lembranças que traz de Osmar. Ela relembra que ele era um filho e pai cuidadoso. “Apesar dele ter sido preso, era um bom filho. Eu não posso me queixar. Me ajudava muito, brigava com os irmãos dele, dizia: ‘Gente, vocês têm que ajudar mamãe, mamãe não dá conta’”. 

“Era um filho muito apegado e um pai muito apegado. Ele ligava para os filhos e dizia que ia sair da cadeia e melhorar para dar uma vida melhor para os meninos. Por isso que eu falo que ele não está foragido. Ele não ia deixar os filhos dele pra trás”, finaliza.

O que dizem as instituições?

A Alma Preta procurou as assessorias de imprensa do Tribunal de Justiça, da Polícia Cívil e do Ministério Público do Estado de Minas Gerais para falar de que forma estão acompanhando o caso Osmar.

Em nota, a Polícia Civil de Minas Gerais informa que instaurou um inquérito para apurar as circunstâncias do desaparecimento de Osmar, em Juatuba. De acordo com a PC, o registro da ocorrência é de junho de 2019.

A instituição afirma que que realizou oitivas para coletar informações sobre o paradeiro, mas ressalta que não descartou nenhuma linha de investigação.

“Cumpre salientar, que as diligências para elucidar o caso estão em andamento e com a conclusão dos trabalhos investigativos, outras informações serão divulgadas. Quem tiver informações sobre o paradeiro do desaparecido pode ligar no 0800-2828197. O sigilo é garantido”, conclui a nota.

Já o Tribunal de Justiça de Minas Gerais esclareceu que investigações sobre o desaparecimento ou sobre a situação de foragido no caso Osmar não são atribuições do órgão. “A Justiça estadual de Minas, quando provocada em relação ao caso, irá atuar”, destaca.

O Ministério Público não se posicionou até a publicação desta reportagem.

Apoie jornalismo preto e livre!

O funcionamento da nossa redação e a produção de conteúdos dependem do apoio de pessoas que acreditam no nosso trabalho. Boa parte da nossa renda é da arrecadação mensal de financiamento coletivo.

Todo o dinheiro que entra é importante e nos ajuda a manter o pagamento da equipe e dos colaboradores em dia, a financiar os deslocamentos para as coberturas, a adquirir novos equipamentos e a sonhar com projetos maiores para um trabalho cada vez melhor.

O resultado final é um jornalismo preto, livre e de qualidade.

  • Fernando Assunção

    Atua como repórter no Alma Preta Jornalismo e escreve sobre meio ambiente, cultura, violações a direitos humanos e comunidades tradicionais. Já atua em redações jornalísticas há mais de três anos e integrou a comunicação de festivais como Psica, Exú e Afromap.

Leia mais

PUBLICIDADE

Destaques

Cotidiano