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ENTREVISTA: Ana Flor Rodrigues, 1ª travesti pedagoga da UFPE, não quer ser a única

“O que explica o fato de que, só depois de tantos anos, pude ser a primeira a me formar em uma universidade pública?”. O questionamento é de Ana Flor Rodrigues em conversa exclusiva com a Alma Preta Jornalismo; em entrevista, a pedagoga relata as dificuldades enfrentadas no ambiente acadêmico, os impactos de seu título para outras pessoas trans e travestis e quais serão seus próximos passos; confira!

Texto: Victor Lacerda / Edição: Lenne Ferreira / Imagens: Reprodução/Ana Flor Fernandes Rodrigues 

Ana Flor Rodrigues, 1ª travesti pedagoga da UFPE, não quer ser a única

20 de abril de 2021

Após cinco anos de dedicação quase integral aos estudos na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Ana Flor Fernandes Rodrigues, 25 anos, recebe o título de primeira travesti formada no curso de Pedagogia da instituição. Convidada a integrar a mandata da Deputada Estadual, também pernambucana, Érica Malunguinho, desde dezembro de 2020, Ana teve de conciliar seus afazeres como assessora parlamentar e a reta final de sua formação. Atualmente morando em São Paulo, a pedagoga ganhou manchetes de jornais por contrariar as estatísticas e concluir o curso superior. No entanto, o reconhecimento não anula a luta contínua para que outras travestis possam comemorar a mesma conquista.

Com a temática “Entre fotografia e estética – O ritual da primeira comunhão e questões de gênero”, Ana tirou nota máxima na avaliação do seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado na última semana. Como forma de agradecimento pelo fim de mais uma jornada, ela dedicou o trabalho às mulheres que a apoiaram ao longo do curso superior. “Dedico esse fim de ciclo às mulheres da minha família, à minha mãe, Sydia, minha irmã, Varna e minha avó, Valdelice. Três mulheres que me inspiraram a adentrar em uma universidade pública e também me trouxeram a compreensão da importância de estar em um ambiente acadêmico, em um curso de ensino superior. Sou uma das primeiras pessoas da minha família a estar na universidade e sei que isso vem muito de uma construção coletiva, a partir das conversas de incentivo, por exemplo, que tive com estas mulheres”, pontua Ana Flor.

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Sobre a escolha da área de atuação, Ana afirma que o desejo, desde o início de sua formação, foi buscar novas perspectivas de acesso ao ambiente acadêmico para pessoas trans e travestis. “Escolhi o campo da educação por ser uma área que, por muitas vezes, é cercada de forças e de constante disputa, um meio que se fecha para pessoas como eu. Com o tempo, consegui entender que estar não só em um ambiente acadêmico, como também, em escolas, realizando monitoria, sendo professora, iria de encontro ao que as pessoas não querem, que é nos ver atuando nesses lugares. Decidi, então, ser um meio de mudar essa visão”, conta. 

Com visibilidade notória nas redes sociais, o exercício de senso crítico reverberou em trocas sobre novas formas de pensar a Educação, Política e Gênero. Com mais de 50 mil seguidores em sua página oficial, Ana afirma explorar a compreensão coletiva da importância de construir novos espaços para pessoas que tiveram lugares historicamente negados perante à sociedade, principalmente a população LGBTQIA+ – defendendo mais diversidade, representatividade e direitos para a comunidade – e a população negra, pobre e periférica. 

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Ana afirma que o desejo, desde o início de sua formação, foi buscar novas perspectivas de acesso ao ambiente acadêmico para pessoas trans e travestis

Em conversa com a Alma Preta Jornalismo, Ana Flor conta um pouco sobre processos dentro do ambiente acadêmico, desde a escolha do tema do trabalho de conclusão de curso, os percalços durantes os anos dedicados à sua formação, até os impactos que espera com o título e seus próximos passos atuando na área da educação.

Confira: 

AP – Durante o período da graduação, quais foram os maiores percalços que você enfrentou para chegar até a conclusão do curso?

Ana Flor: Uma das coisas que mais dificulta estar em um ambiente acadêmico é compreender que ele não foi pensado para pessoas de baixa renda. Eu, além de travesti, sou muitas outras coisas, inclusive uma travesti de origem pobre. Adentrei a universidade pública já pensando na possibilidade de um mestrado e um doutorado, o que exigia de mim estar dedicada à graduação e vivê-la plenamente. Enquanto o mundo afirma que precisamos trabalhar, por toda uma ordem sistêmica, a universidade nos impõe que precisamos estudar. Por isso, é muito difícil conciliar as duas coisas. Com pouco tempo de graduação, entendi que não era fácil estar ali, principalmente por estarmos no Brasil. Nesse mesmo pouco tempo, também tive de pensar em estratégias para combater os mecanismos de uma instituição majoritariamente branca, que tem inúmeras questões sobre o acolhimento de pessoas negras e travestis. Nós sabemos que o ambiente acadêmico é, infelizmente, um espaço que reproduz o racismo, a transfobia, mas dentro das instituições também existem redes que lutam para que nós continuemos nestes espaços. Por isso, me coloquei à participar de iniciação científica, a ser bolsista de pesquisa, de realizar monitorias remuneradas que, ainda que fossem de baixo recurso, me faziam permanecer ali, além do esforço de amigos e professores que viabilizaram o meu acesso naquele espaço e compreendiam as minhas lutas diárias. 

AP – O que motivou a escolha do seu trabalho de conclusão?

Ana Flor: A escolha do tema veio, primeiro, de um projeto de pesquisa que a minha orientadora, a Professora Doutora Rosângela Tenório, já estava realizando no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, o PIBIC. O estudo inicial, desde o processo seletivo, tratava do ritual da primeira comunhão e as questões de gênero, de como esses ritos produzem determinados sujeitos. Por isso, para o meu projeto de conclusão, preferi não abordar temáticas que tenho proximidade maior no meu dia a dia e, como a causa LGBTQIA+ e questões raciais, mas, sim, dar continuidade à pesquisa que já vinha contribuindo com recorte de aspectos específicos que eu gostaria de analisar, como a estética e a fotografia. Com isso, fui pensar em como a primeira comunhão cria imagens, determina comportamentos e marcadores de gêneros. Um estudo que já estava imersa, o que foi bom para mim. Um processo onde pude entender, mais do que nunca, que a gente pode falar sobre muitas outras coisas além de questões que estão presentes em nossas vivências diárias.

AP – Tendo em vista que este marco mostra que o ambiente acadêmico também pode e deve ser ocupado pelas travestis e transexuais, quais serão os principais impactos que este título pode trazer? 

Ana Flor: Primeiro, é importante destacar que publicizar este título de ser a primeira também é uma forma de denunciar. O que explica o fato de que, só depois de tantos anos, pude ser a primeira a me formar em uma universidade pública? Se coloca em evidência que este feito significa muito para mim, para a comunidade, mas é preciso ter atenção a este questionamento do porquê só hoje Ana Flor é a primeira, sabe? Nós temos sido as primeiras em inúmeros lugares, como a própria Deputada Estadual Érica Malunguinho, que recebeu o título de primeira travesti eleita não só em São Paulo, mas em todo o Brasil. Isso também é muito importante para que a sociedade entenda que, se tantas outras pessoas podem, nós também conseguimos adentrar estes espaços. Vejo que, ao mesmo tempo que ser primeira é uma denúncia, ser primeira também é enxergar um novo caminho de possibilidade para meninas trans e travestis, de irem em busca da conquista de espaços que também devem pertencer à elas. É possível, não é fácil, mas é um convite. 

AP – Dentro da sua formação em pedagogia, o que você leva de aprendizado para o dia a dia?

Ana Flor: Durante a minha graduação, pude realizar muitas atividades. O próprio curso de Pedagogia proporciona isso, essa possibilidade de realizar vários estágios. Nesse processo, nos espaços em que estive, entre eles ambientes escolares e não escolares, pude aprender muito na escola interligada à Universidade Federal de Pernambuco, em um momento que pude aprender e trocar com crianças que, em sua maioria, eram negras. Lá, pude entender a importância da educação na vida das pessoas e os impactos que o ensino pode propiciar à vida delas.  Além disso, continuo compreendendo a importância da valorização dos profissionais da educação e a defesa de uma educação pública de qualidade. 

AP – Quais são os próximos passos de Ana Flor?

Ana Flor: Tenho pensado em como nós, educadores, podemos criar estratégias de convidar pessoas trans e travestis, principalmente mulheres e negras, por serem elas com quem conversei e me fortaleci durante meu tempo de formação, a adentraram ao ambiente de formação universitária. Acrescento ainda que pretende trabalhar as temáticas que tratam das diferenças, sejam elas dentro do espaço escolar, como fora, tudo para que a gente consiga estar em uma sociedade que respeite as pessoas. Sobre meu futuro dentro do espaço acadêmico, pretende seguir o desejo que está comigo desde que adentrei à universidade, de fazer mestrado e doutorado. Também pretendo continuar atuando, em algum momento, nas universidades públicas, tratando de temas que não falem só de gênero, sexualidade e raça. Eu falo disso, mas não sou só isso. Assim como não me incomodo quando me pontuam como ‘Ana Flor travesti’, desde que haja o entendimento de que não sou apenas isso. Por fim, espero que conquistas como a minha, de finalizar uma graduação e ocupar os espaços que ocupei sejam tão comuns que a gente não precise anunciar quando formos as primeiras. 

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