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Escolas de alto padrão ainda são ambientes hostis para pessoas negras

Professores, alunos e funcionários pretos ou pardos são minorias nestes espaços e precisam conviver constantemente com episódios de racismo
Ilustração mostra um estudante e uma faxineira, ambas pessoas negras. Há ao redor deles figuras de rostos com expressões hostis e o fundo é vermelho.

Foto: Dora Lia/Alma Preta Jornalismo

30 de agosto de 2023

Por: Gil Luiz Mendes

O sorriso que Edinho* carrega no rosto é uma mistura de timidez e espontaneidade. No começo do ano letivo de 2023 o semblante do jovem estudante de uma escola de alto padrão, localizada na zona sul da cidade de São Paulo, era outro. Fazia poucos dias que ele estava no novo ambiente e não demorou para que sua cor e a sua condição fosse motivo de chacota entre os outros alunos.

“Neguinho filho da faxineira”, ouviu o aluno.

A pedido da mãe, o nome dela, do filho e da escola na qual trabalha e a criança é bolsista não serão revelados nesta reportagem. Ela teme sofrer represálias e perder o salário, que considera bom após quase dez anos de prestação de serviços no local. “Ele é um menino esperto, inteligente e entende tudo que a gente fala. Conversei com ele antes dele começar a estudar na nova escola. Disse que os amiguinhos eram diferentes dele, mas não eram melhores em nada”, conta.

A mãe não levou oficialmente à coordenação, mas comentou com poucos colegas de trabalho e diretamente com alguns dos alunos que fizeram as ofensas contra o seu filho. “São meninos que eu conheço desde crianças. Falei que era muito errado o que eles tinham feito e eles pediram desculpas para mim e para ele”, diz ela, afirmando que não queria que o caso se estendesse. “Eu sei que é racismo, mas vamos superar isso”.

Quanto mais cara a escola, menos estudantes negros

O menino vítima dos ataques neste episódio faz parte de uma triste estatística onde crianças negras estão inseridas. Um estudo baseado no Censo Escolar de 2020 constatou que os alunos negros correspondem, em média, a 10% do corpo estudantil das insituições privadas de ensino.

A pesquisa, elaborada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), afirma também que quanto mais cara e melhor colocada no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é a escola, menor é o percentual de pretos e pardos em seu interior.

Para tentar entender melhor este fenômeno, a Alma Preta entrou em contato com 20 das 25 escolas mais caras do Brasil segundo a revista Forbes, onde as mensalidades podem chegar a R$ 12 mil. A reportagem perguntou quantos alunos, professores e funcionários negros cada instituição de ensino tinha, se havia algum programa para combate ao racismo e se a lei 10639/2003, que determina a obrigatoriedade do ensino história e cultura afro-brasileira, era aplicada. Nenhuma das escolas respondeu os questionamentos.

Pesquisar para entender

Por presenciarem quase que diariamente e por muitas vezes sentir na pele o que é ser uma pessoa negra dentro de um espaço majoritariamente branco, os professores Flávio Assis e Éllen Cintra passaram a pesquisar sobre o dia a dia de alunos e funcionários negros que trabalham ou estudam dentro de escolas particulares. A experiência dentro de ambientes escolares de alto padrão foi o ponto de partida para os estudos.

Após anos lecionando geografia, Flávio iniciou sua pesquisa de mestrado inspirado no livro “Peles Negras, Máscaras Brancas” do filósofo político martinicano Frantz Fanon. “O tema do meu estudo seria Escolas Negras, Professores Brancos, primeiro para entender a aplicação da lei 10.6639, de como o racismo à brasileira criou mecanismos para sabotar essa lei”, explica o professor.

Uma das principais dificuldades do pesquisador foi encontrar profissionais negros dispostos a compartilhar suas experiências dentro de escolas particulares. Para ele, por serem minoria e estarem inseridas em espaços majoritariamente brancos, essas pessoas sentem medo do desemprego.

“Existem diferentes razões para que essas pessoas escolham não falar. Há aqueles que, por conta do colorismo e por estarem tão inclusos dentro do pacto da branquitude, não se veem como pessoas negras. E tem aquelas que temem por seus empregos. Essas escolas são as que pagam os melhores salários para professores, por isso ninguém quer se indispor porque sabe que a concorrência é grande para estar naquele lugar”, comenta Flávio.

Voltada para alunas negras e as diferenças encontradas nas escolas públicas e particulares, a dissertação de mestrado da pesquisadora Éllen Cintra teve o tema “Jovens negras no Ensino Médio público e privado: leituras interseccionais sobre suas vivências e percepções do racismo”. O estudo, segundo a pesquisadora, buscou compreender a relação dessas jovens com a cidade e a família, sua trajetória escolar, as experiências de racismo e discriminação dentro e fora da escola.

“Em 2018, quando estava terminando a minha pesquisa, havia um incômodo muito grande. Eu dava aula à noite em uma das periferias mais negras de Brasília e a gente tinha um número muito grande de alunos expulsos da escola por diversos motivos. Me deixava muito triste porque esses jovens eram evadidos da escola em processos muito severos e perdíamos eles para o tráfico”, recorda.

Essa experiência ia de encontro com outra realidade que Éllen vivia ao dar aula de inglês dentro das escolas mais caras da capital federal, onde era raro ter contato com qualquer aluno de pele preta ou parda. Ela lembra que quando havia algum estudante negro dentro da unidade de ensino, havia uma discriminação velada.

“Me incomodava ver que em Brasília, que é um dos lugares do Brasil onde a população negra tem mais acesso à renda, por conta da mobilidade dentro do serviço público, poucos estudantes negros tinham acesso a estas escolas de alto padrão. Na escola onde eu fiz a minha pesquisa não havia mais do que quatro alunas negras em cada uma delas”, comenta.

Durante a conversa com as estudantes havia relatos fortes de episódios de racismo sofrido pelas estudantes. Éllen relembra a história que ouviu de uma aluna que é filha de uma funcionária do alto escalão do governo federal e estudava em uma das mais caras escolas de Brasília.

“Ela vinha de uma família de pessoas retintas e a mãe tinha muito cuidado em relação a problemas que ela pudesse ter na escola por conta da sua cor. Essa menina me contou que por diversas vezes foi chamada de urubu e outros termos racistas. E ela falava que só se sentia bem de verdade, como uma adolescente, quando saía da escola. Ela foi para uma escola pública e junto com isso deixou de alisar o cabelo e se aceitar mais como ela é, isso ficou muito marcado para mim”, conclui a professora.

Autoridade contestada

Além da invisibilidade imposta, pessoas negras que trabalham em ambientes predominantemente brancos, como no caso de escolas de alto padrão, precisam conviver constantemente com questionamentos sobre a sua qualidade profissional. Não são poucos os episódios que um professor negro é contestado por um aluno ou por seus pais.

“A violência racial chega aos professores de uma maneira muito sutil. Nenhum aluno vai chegar para mim e falar abertamente qualquer coisa com alguma conotação racial. Mas sempre há um questionamento do meu lugar de autoridade intelectual. Eu, como professor de geografia, levo para sala de aula as questões agrárias, de direito à moradia e a dignidade humana”, conta Flávio.

“Já houve casos de pais irem à escola e reclamarem das minhas aulas, alegando que os filhos deles estavam na escola apenas para passar no vestibular. Certamente não haveria esse questionamento se o professor em questão fosse uma pessoa branca”, completa.

A relação do ensino como produto faz com que essas práticas sejam comuns. A mãe de Edinho*, que trabalha como auxiliar de serviços gerais, afirma que por diversas vezes viu pais de outros alunos destratarem funcionários negros da escola justificando a ação por pagar uma mensalidade cara.

“Teve uma vez que uma mãe veio pedir que uma professora negra fosse demitida porque a filha não estava indo bem na matéria que ela dava aula. Ela ameaçou a direção dizendo que iria tirar os três filhos do colégio. Foi difícil convencer ela que o problema não era a professora. Hoje nem os filhos dela e nem a professora estão mais na escola”, relembra.

A escola é só uma parte de uma sociedade calcada no racismo. A professora Éllen entende que uma família que não tem nenhum tipo de relação com pessoas negras no dia a dia dificilmente saberá como lidar com a diversidade racial no ambiente escolar.

“Elas só socializam com pessoas negras que estão na condição de subalternas, isso é um resquício do período escravocrata. Eles lidam com o motorista, a diarista e não concebem que essas pessoas podem estar na mesma condição do que os seus filhos dentro de uma escola. Essas pessoas foram construídas, mobilizadas e mantidas em uma posição de não aceitar que outras pessoas, de outro tom de pele, possam ocupar os mesmos espaços”.

* Nome ficíticio usado para preservar a identidade da pessoa citada.

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