Há exatos 10 anos, a Organização das Nações Unidas (ONU) fez uma declaração pública de que o acesso à internet deveria ser enxergado pelo mundo todo como parte dos direitos humanos. Ferramenta de conexão, que “permite que indivíduos busquem, encontrem e compartilhem informações de todos os tipos, de uma forma instantânea”, segundo a organização, a internet hoje é um diferencial na realidade brasileira, em especial, nas periferias que puderam transcender sua bolha social e levar sua mensagem para além do estereótipos de paredes sem reboco, falta de saneamento básico e dificuldades nos mais diversos acessos.
A tese de doutorado “As Periferias Digitais: Mobilização para Além da Resistência”, de Marco Antônio Bin, explica que no decorrer dos anos e com a verticalização das cidades, em especial, São Paulo, as comunidades periféricas e favelas foram espremidas em regiões pouco favorecidas pela especulação imobiliária. Sua mensagem, entre as décadas de 1970, 1980, e 1990 se sobressaiam apenas ali, em espaços limitados.
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O autor explica que “os pobres viviam na periferia, em bairros precários e em casas autoconstruídas; as classes média e alta viviam em bairros bem equipados e centrais, uma porção significativa delas em prédios de apartamentos. O sonho da elite da Velha República foi realizado: a maioria era proprietária de casa própria e os pobres estavam fora do seu caminho”, avalia.
Com a comunicação concentrada apenas na oralidade até então, de acordo com Marco Bin, a facilidade de compra parcelada de smartphones, a partir de 2010, começou a gerar uma mudança nas periferias e em seus acessos à internet, por ora, pela rede móvel. Os grandes provedores do serviço ainda não dispunham de linhas para as regiões mais afastadas dos grandes centros, como ocorre até hoje. Um estudo divulgado pelo Cuponation compilou dados sobre o preço da internet ao redor do globo e constatou que o Brasil ocupa a 58ª posição ao pagar, em média, R$ 114 por um serviço de 60 Mbps (velocidade usada como base para todas as verificações), valor que pode comprometer muito a renda de uma família periférica.
Contudo, a juventude negra, em especial, passou a querer expandir seus horizontes e levar mensagens via internet para quem desconhecia sua realidade e também como forma de identificação com outras pessoas da mesma bolha social. O que era apenas diversão, segundo Bin, tornou-se um trabalho e um leque de possibilidades.
Comunicação nas periferias
“Quando você consegue políticas públicas que vão barateando o acesso aos equipamentos, em especial, os smartphones – pois 85% da população periférica acessa a internet diariamente por smartphones, segundo o livro ‘Um País Chamado Favela’, de Celso Ataíde – surge uma adequação dos conteúdo transmitido pelos jovens. Como o presente dessa juventude é mobile, esse conteúdo é mais sucinto, pensado no formato mobile”, é o que diz a jornalista e publicitária com mais de 16 anos de experiência em comunicação em territórios periféricos, Tássia Di Carvalho.
Tássia explica que a linguagem, o modus operandi de fazer conteúdo digital e o cenário periférico em que o jovem negro está inserido o leva a reconstruir sua forma de comunicar com o mundo lá fora. Marco Antonio Bin complementa o que diz a especialista em seu artigo, e afirma ainda que, no caso dos jovens, o acesso à internet e às plataformas digitais lhes “permitem entender quem são, como se definem socialmente e como é e funciona a sociedade em que vivem”.
Para o doutor, o protagonismo tecnológico se remete a uma interação social, com a promissora — e desejada — possibilidade de se romper com o círculo vicioso da informação patronal. “Também se rompe no processo a hegemonia do discurso, a hierarquia informacional substituída por uma comunicação horizontal, rica em suas experimentações, em suas conexões, onde a participação significa intervenção e cada vez mais livre, a partir dos espaços Wi-Fi e do acesso à portabilidade”, avalia.
Na transformação do acesso digital dos jovens negros periféricos em trabalho, ainda há um quê de criatividade, segundo a especialista em marketing digital Aretha Elisabeth. “As pessoas negras de periferia sempre foram criativas para conseguir fazer as coisas acontecerem e a democratização da internet e mundo digital nesses locais acabou por dar acesso de como divulgar isso. Ver referências de onde se quer chegar por meio da internet é uma forma de colocar isso em prática, de um modo que caiba no mundo do periférico”, pondera a especialista.
Juventude negra e mundo digital
Para Aretha Elisabeth, o local de fala é algo que o jovem influenciador digital negro deve se apropriar com dignidade. Mostrar o cotidiano das periferias é uma forma, segundo ela, de apoderar-se do próprio discurso e romper com barreiras de que a cultura e educação estão apenas do lado de fora das comunidades.
“Sempre ouvimos pessoas falando sobre a periferia, dando soluções ou até mesmo criticando situações que ocorrem ali, mas sempre de um lugar que não era deles: a visão do colonizador. Hoje, ter pessoas que vieram da periferia, possibilita a demonstração de uma nova perspectiva de futuro”, ressalta.
Tássia Di Carvalho salienta que a voz do jovem periférico está para além do estereótipo de que só se fala do morro. Ela destaca que por ter uma realidade diferente de um jovem classe média alta, o preto pobre utiliza de inteligência social para abordar os mais diversos assuntos: moda, beleza, cultura, música, finanças, educação, etc.
“Existem muitos criadores de conteúdo negros que mostram na internet que não é necessário ter dinheiro para fazer as coisas. E isso agrega valor à mensagem. Isso é inclusão social. O jovem influenciador negro mostra que não é necessário se enquadrar no padrão estereotipado de qualquer coisa para abordar os assuntos e educar quem está ao seu redor”, avalia.
Quando há dificuldade, a favela se reinventa
As periferias de São Paulo concentram o acesso à internet realizado com conexão de baixa velocidade (56%) e com uso exclusivo de celulares (84,8%). Os dados são do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), responsável pelo monitoramento de tecnologias de informação no país, em conjunto com a Fundação Seade, agência de estatísticas do governo estadual.
“A dificuldade de acesso a grandes provedores de internet é uma das reclamações mais recorrentes nas periferias. Então, cada favela acaba tendo seu provedor próprio, mas que infelizmente cai muito. Ainda falta um ‘click’ para que as empresas enxerguem as favelas como potenciais consumidores. A monetização do conteúdo também é um desafio”, comenta Tássia.
Aretha, no entanto, pontua que é necessário se reinventar para driblar essas dificuldades. Ela salienta que a falta de equipamentos adequados para criar conteúdo digital na internet normalmente é contornada pelo uso de smartphones de familiares, por exemplo. Segundo ela, os jovens criadores de conteúdo devem estar atentos às ferramentas disponíveis, bem como a melhor maneira de utilizá-las dentro de suas possibilidades.
“É pensar que você está sendo pioneiro e está inspirando outras pessoas. A comunicação e o trabalho são feitos por proximidade”, destaca.
Inspiração e legado
“Se trata de ‘eu me vejo naquele espaço’. A representatividade abre muitas portas para a gente. Isso acaba inspirando outros jovens. Portanto, comece. A dica mais importante é começar”, recomenda Tássia Di Carvalho.
Marco Antônio Bin pontua que a mobilização dos movimentos e coletivos periféricos, ao denunciar as contradições vividas na internet, oferece uma discussão do processo histórico e social com a interação ativa dos indivíduos por meio das práticas sociais e culturais realizadas nas quebradas, “nos territórios da precariedade, onde estão concentradas as carências de equipamentos públicos e privados”, diz.
Portanto, para ele é essencial dar o pontapé inicial para que essa herança histórica de pensamentos agregados a partir da oralidade seja passado adiante com o auxílio da internet, a fim de alcançar mais pessoas.
Para a sociedade participar ativamente, Aretha Elisabeth acredita que é necessário disseminar a mensagem e se envolver com o conteúdo. Dessa forma, o trabalho na internet de jovens influenciadores negros é valorizado, o que possibilita aumento no alcance e oportunidades de crescimento pessoal.
“A gente precisa fortalecer esse movimento. Hoje a internet nos possibilita conhecer pessoas e fazer parte desse movimento e de histórias, mas isso só vai acontecer se a gente compartilhar esses conteúdos e valorizar da maneira certa”, finaliza a especialista.
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