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Formato de editais de incentivo à cultura dificulta acesso de agentes periféricos

Editais que, na teoria, deveriam democratizar o acesso de diferentes agentes sociais, ainda conta com uma estrutura que não dialoga com a realidade socio econômica dos participantes

Texto: Victor Lacerda I Edição: Lenne Ferreira I Imagem: Reprodução/PretaLab

Linguagem e formato de divulgação de editais de incentivo à cultura dificultam acesso de pessoas negras

3 de novembro de 2021

As leis de incentivo e editais que contam com sistema de cotas são os principais agentes na inserção e desenvolvimento de pessoas negras nas demais áreas da cultura do país. As ações têm como propósito reverberar realidades marginalizadas e democratizar o acesso e desenvolvimento de seus trabalhos. Entretanto, os processos de inscrição ainda são tidos como difíceis, seja pela burocracia das informações exigidas ou pelos formatos de difícil entendimento para quem não tem familiaridade com os sistemas.  

Relação com os processos seletivos traz à tona aspectos que colocam em questão se, de fato, os editais, em sua estrutura, horizontalizam as avaliações, tendo em vista as bagagens dos participantes e como isso altera no processo. Pontos como a região onde reside, grau de escolaridade, faixa econômica e até mesmo acesso à internet podem segregar a participação da população historicamente mais vulnerável. 

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Ramos Oliveira, 31 anos, pesquisador, produtor cultural e membro de comunidade tradicional, é morador da Zona da Mata Sul do Recife, uma região que foge do campo central dos editais. Ele relaa que, apesar de já estar inserido em um rede que possibilita o conhecimento de processos seletivos de incentivo, o local onde mora, região chamada de Sirinhaém,  distante da capital, dificulta a sua participação em algumas edições. 

“Isso não quer dizer que aqui e em demais regiões longe da capital não há cultura sendo produzida. O que dificulta, de fato, é a forma que os processos são divulgados e os canais que são utilizados para isso”, pontua

O pesquisador ainda aponta o uso da linguagem acadêmica dos editais, que foge da linguagem mais coloquial, adotada por produtores culturais populares, também dificultam o processo. Ele ainda atrela ao formato de informações solicitadas, que dialogam apenas com um modo de vida de quem atua e vive na zona urbana. 

“São várias as fichas cadastrais que não se adequam à população que não faz parte da malha urbana. A garantia de participação no processo depende, por exemplo, de um endereço fixo, mas como ficam as pessoas que moram em regiões de sítios e loteamentos? Fora a questão da comunicação e possibilidade de envio de inscrição em áreas que não contam com uma estruturação que tenha livre acesso à internet e que sejam familiarizadas com isso”, denuncia. 

Posicionamento é compartilhado pela diretora, roteirista, atriz e membro do Coletivo Negritude do Audiovisual de Pernambuco, Cíntia Lima. A profissional afirma acreditar que a segregação está presente desde questões voltadas à territorialidade – como nas periferias em regiões centrais como em interioranas – como na falta de construção de mecanismos políticos que dialoguem com todos os públicos desde a construção dos editais. 

“Tivemos avanços nos acessos, mas ainda está longe dos editais de incentivo serem dignos às pessoas negras e periféricas. Em 2019, por exemplo, escrevi meu primeiro longa-metragem, que inclusive foi premiado, mas por pouco eu não seria apta à submetê-lo por não ter um CNPJ nos moldes em que se era pedido. Quantas pessoas negras podem contar com uma empresa de grande porte, com registro, para disputar um recurso?”, questiona. 

Cíntia ainda reitera o discurso sobre a reestruturação dos formatos dos editais que, mesmo já dispondo de cotas para mulheres, negros e indígenas, em estatísticas, ainda apresenta um número mínimo de participações e efetivações de retorno por parte dos editais. 

A profissional da cultura conta que no ano passado fez parte de diversas reuniões para a construção do edital de incentivo à cultura do estado e se viu surpresa com os questionamentos levantados pelas demais pessoas consultadas. 

“Haviam pessoas questionando as políticas de participação e inclusão já existentes, ao ponto de terem pessoas brancas exigindo, por exemplo, aumento na pontuação com base nos currículos apresentados no processo seletivo do edital, um argumento que sabemos o quanto é elitista e racista. Situação tal que denuncia que quem está por trás das políticas de incentivo não sabe das nossas realidades”, aponta. 

Leia também: Nações de Maracatu cobram políticas públicas à gestão municipal

Para Ramos, as tentativas de aproximação das políticas de incentivo com às pessoas que em sua maioria não acessam e tem dificuldade para isto podem ser categorizadas como discursivas, em sua maioria, não práticas. 

“Há uma tentativa de apresentar a política de cotas como efetivas, mas, em sua maioria, na prática, são lidas por nós como propagandas de projeto. Não há como se fazer uma democratização no acesso sem reavaliar as exigências burocráticas, sem pensar que povos tradicionais não são aptos estruturalmente a mandarem um número grande de documentações para comprovação além da autodeclaração que deveria ser protegida por lei, por exemplo”, finaliza. 

Se aquilombar, entender da história do povo negro e da importância do repasse de informação para contribuição de mais pessoas negras nos editais são alguns dos pontos mencionados como estratégias para a realizadora Cíntia Lima. 

“Isso se faz necessário e, enquanto políticas públicas, é importante que estejamos atentos e participando da construção dos processos como consultores. Eu mesma só consegui aprender a escrever um roteiro por ter participado de uma oficina para mulheres negras, foi quando passei a aprovar meus projetos. O mesmo fiz submetendo projetos de formação para as demais pessoas. Entendi que a oportunidade é, sim, transformadora e representatividade apenas não basta”, finaliza. 

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