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Guerra às drogas gera prejuízo de R$ 14 milhões a apenas duas favelas cariocas

Estudo aponta perdas significativas no orçamento de moradores e comerciantes como consequência da violência provocada por agentes do Estado nas favelas do Rio de Janeiro

Texto: Redação | Foto: Tania Rêgo/Agência Brasil

Imagem mostra viatura de polícia em favela do Rio de Janeiro

Foto: Foto: Tania Rêgo/Agência Brasil

18 de setembro de 2023

O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) lançou nesta segunda-feira (18) a pesquisa inédita “Favelas na Mira do Tiro: Impactos da Guerra às Drogas na Economia dos Territórios”. O estudo revela perdas causadas pelos tiroteios envolvendo agentes de segurança do Estado aos moradores e comerciantes em favelas no Rio de Janeiro.

Quase 90% dos moradores relataram a ocorrência desses episódios nos complexos estudados, evidenciando a rotina de violência nesses territórios, que são historicamente criminalizados, e sujeitos a diversas restrições, como acesso a meios de transportes, ao trabalho, interrupção no fornecimento de serviços essenciais, como o de água, energia e internet, além de provocar o fechamento temporário do comércio local.

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“A guerra às drogas afeta toda a sociedade brasileira. Mas são os moradores de favelas, pobres e negros os mais prejudicados, inclusive financeiramente, por essa política do Estado. Com a pesquisa, queremos chamar atenção da sociedade para essa realidade”, diz Julita Lemgruber, coordenadora do CESeC e do projeto “Drogas: Quanto Custa Proibir”.

“Nesta lógica, predomina uma visão racista e estereotipada desses territórios que naturaliza uma série de violações de direitos aos moradores, o que não seria tolerado nas áreas ricas da cidade. Os dados coletados nesta pesquisa evidenciam os impactos individual e coletivo da violência policial”, completa.

Para o estudo, foram selecionados dois territórios com a maior incidência de tiroteios decorrentes de ações policiais entre junho de 2021 e maio de 2022, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado. A pesquisa foi realizada em duas etapas. A primeira teve como objetivo mensurar o impacto desses episódios na vida dos moradores. Para tanto, foram identificados os territórios mais afetados por esses tiroteios: o Complexo da Penha e o Complexo de Manguinhos. Já na segunda, foram avaliados os impactos para comerciantes e prestadores de serviços dessas localidades.

Foram selecionadas as duas favelas mais afetadas por tiroteios de ambos os Complexos: Vila Cruzeiro, que registrou 8 tiroteios no período estudado, e Mandela de Pedra, afetada por 10 episódios de violência armada, considerando um raio de até 400 metros a partir do centro dos territórios. Originado a partir de um quilombo, o Complexo da Penha está localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro e tem uma população de 36.273 habitantes, sendo 9.020 moradores na Vila Cruzeiro, segundo o Censo de 2010. Já o Complexo de Manguinhos, também situado na Zona Norte da capital carioca, teve seu processo de ocupação iniciado por funcionários do antigo Instituto Oswaldo Cruz, atual Fiocruz. O Complexo reúne 21.846 habitantes sendo 2.439 moradores na Mandela de Pedra, segundo dados do Censo 2010.

A pesquisa entrevistou 800 moradores maiores de 18 anos dos Complexos da Penha e de Manguinhos, sendo 400 em cada, e mapeou todos os pontos de comércio existentes nas favelas Vila Cruzeiro e Mandela de Pedra. Dos 367 estabelecimentos identificados, 303 estavam em funcionamento no momento da aplicação dos questionários.

Segundo o estudo, 80,4% dos entrevistados se autodeclararam pretos e pardos, parcela bem superior aos 47,4% que fizeram essa autodeclaração em toda cidade do Rio de Janeiro.

O impacto dos tiroteios provocados por agentes de segurança para os moradores

Mais da metade dos moradores dos complexos da Penha e de Manguinhos (56,6%) ficou impedida de utilizar meios de transporte nos 12 meses anteriores à pesquisa. Dentre os moradores que afirmaram exercer atividades remuneradas (69%) e souberam de uma ou mais operações policiais no período, a maioria ficou impedida de trabalhar por causa dessas ocorrências (60,4%), que também impossibilitaram 54% dos moradores de realizarem atividades como lazer (42,8%), receber encomendas (33,3%), comparecer a consultas médicas (32,3%) e estudar (26%).

Os moradores impedidos de trabalhar em decorrência de ações policiais perderam, em média, 7,5 dias de trabalho, o equivalente a uma semana e meia ou 2,8% de um ano com 264 dias úteis. Considerando a renda média por adulto de R$ 1.652 mensais, a população com 18 anos ou mais dos complexos da Penha e Manguinhos (39.717 moradores), o trabalho que deixa de ser realizado por causa das ações policiais gera uma perda anual de R$ 9,4 milhões.

Os prejuízos decorrentes da reposição ou reparo de bens danificados pelas ações violentas chegam a R$ 4,7 milhões por ano nos dois complexos. Ou seja, estima-se um prejuízo anual de aproximadamente R$ 14 milhões em consequência das ações policiais relatadas por moradores dos complexos. Em ambos os complexos também foram identificados impactos diretos na prestação de serviços fundamentais: 44,9% dos moradores ficaram sem energia elétrica em casa em decorrência de ações policiais nos 12 meses anteriores à pesquisa, resultando em 35 horas, em média, sem esse serviço; 32,1% relataram ficar sem internet, cerca de 28 horas sem acesso ao serviço devido a tiroteios; e 17,3%,sem água.

A interrupção no fornecimento desses serviços pode ocasionar o apodrecimento de alimentos, a impossibilidade de cozinhar e de ter acesso a determinados tratamentos de saúde, além de ser um empecilho para o estudo ou trabalho remoto. A pesquisa ainda revela que 4,8% dos moradores afirmaram ter sido roubados ou furtados durante as incursões policiais. Sobre o impacto coletivo causado pelos tiroteios envolvendo agentes de segurança, o estudo também aponta estragos significativos nos bens comunitários: 39,4% dos entrevistados afirmaram que houve danos desse tipo nos complexos da Penha e Manguinhos nos 12 meses que antecederam à pesquisa.

As avarias em equipamentos públicos, como postes de energia elétrica, tubulações e transformadores provocam a interrupção de serviços essenciais. Sobre isso, 41,4% dos moradores responderam que a comunidade ficou sem energia elétrica; 19,3% sem abastecimento de água; e 34,5% mencionaram a suspensão do fornecimento de internet no mesmo período. A coleta de lixo das comunidades também é afetada por esses episódios violentos: 32,8% dos moradores relataram que o serviço foi interrompido em função das ações policiais.

Ilustração: Renato Cafuzo/CESeCIlustração: Renato Cafuzo/CESeC

Comerciantes e prestadores de serviços também são afetados pela guerra às drogas

Na Vila Cruzeiro, 72% dos empreendimentos tinham como função principal a venda de mercadorias e 28% se dedicavam à prestação de serviços. Em Mandela de Pedra esses percentuais eram 69% e 31%, respectivamente. A maioria dos entrevistados nas duas favelas era dono ou sócio do estabelecimento (77,5% na Vila Cruzeiro e 95,5% na Mandela de Pedra). Na Vila Cruzeiro, 12,3% eram funcionários em tempo integral e 6,4%, gerentes ou supervisores.

A categoria “Alimentação e bebida” – que inclui bares, lanchonetes, mercados, lojas de sorvete, açaí e sacolé/picolé, entre outros – representa 52,4% de todos os comércios da Vila Cruzeiro e 48% dos estabelecimentos em Mandela de Pedra. Salões de beleza, barbearias, espaços especializados em unhas, sobrancelhas e outros da categoria “Beleza e cuidados pessoais” aparecem em segundo lugar com 19,3% dos estabelecimentos na Vila Cruzeiro e 18,2% em Mandela de Pedra.

A maior parte dos empreendimentos nos dois territórios está em locais próprios (55,9% na Vila Cruzeiro e 53,7% em Mandela de Pedra) e não estão agregados à residência (70,9% na Vila Cruzeiro e 60,6% em Mandela de Pedra); 44,9% dos estabelecimentos na Vila Cruzeiro e por 46,2% dos de Mandela de Pedra têm faturamento mensal de até R$ 1 mil.

Com a participação dos moradores, a pesquisa mapeou todos os 367 estabelecimentos das duas favelas. Destes, 303 seguiam em funcionamento no momento da aplicação dos questionários — 236 na Vila Cruzeiro, em que 71,1% dos comerciantes e prestadores de serviços relataram ter havido ações policiais nos 12 meses anteriores à pesquisa; e 67 em Mandela de Pedra, onde todos os entrevistados afirmaram que houve ações no mesmo período.

Na Vila Cruzeiro, 21,6% dos comerciantes e prestadores de serviços relataram problemas na circulação para entregar mercadorias ou receber encomendas; em Mandela de Pedra, foram 34,3%. Já em relação aos serviços essenciais para manter as atividades, 25% dos entrevistados na Vila Cruzeiro ficaram sem luz nos 12 meses anteriores à pesquisa; 12,3% ficaram sem água e 19,1% sem internet. Em Mandela de Pedra, em contrapartida, 6% deles relataram ficar sem energia elétrica e 3% sem internet no período em função dessas ações.

Os tiroteios com agentes de segurança causaram o fechamento temporário de 51,3% dos estabelecimentos da Vila Cruzeiro e 46,3% de Mandela de Pedra nos 12 meses anteriores à pesquisa. Em ambas as favelas, 51,2% dos empreendimentos tiveram diminuição em suas vendas e/ou atendimentos, perdendo, em média, 54,8% do faturamento, o que gerou um prejuízo aproximado de R$ 2,5 milhões por ano.

Na Vila Cruzeiro, 18,7% dos comerciantes tiveram bens danificados ou destruídos em decorrência de ações policiais nos 12 meses anteriores à pesquisa. Em Mandela de Pedra, esse percentual foi de 9%. Dentre os itens danificados estão: eletrodomésticos (geladeira e freezer), eletrônicos (notebook), estrutura das residências (paredes, janelas, telhados, portões, caixas d’água), meios de transporte (bicicletas e motos), móveis e mercadorias. Os prejuízos com a reposição ou reparo de bens danificados ou roubados em ações violentas chegam a R$ 63 mil por ano considerando todos os estabelecimentos comerciais das duas comunidades. Somadas as perdas com a diminuição das vendas e atendimentos e os custos de reparo e reposição, o prejuízo total representa 34,2% do faturamento, que equivale a uma perda estimada de R$ 2,5 milhões por ano.

“Os dados do relatório demonstram as consequências de séculos de exploração e violação de direitos para população pobre e preta. As favelas são quilombos urbanos, que resistem dia a dia, apesar do racismo estrutural e das mortes e perdas econômicas provocadas por ele”, destaca a coordenadora da pesquisa, Rachel Machado.

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