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‘Decisão já’: indígenas presos no Pará aguardam julgamento há três meses

Em Belém, povos tradicionais aproveitaram o Dia dos Povos Indígenas para protestar contra a prisão das lideranças
Imagem mostra indígenas reunidos em protesto pedindo por decisão judicial sobre a prisão de lideranças Tembé. Eles seguram cartazes e faixas.

Foto: Fernando Assunção/Alma Preta

26 de abril de 2024

Os indígenas Paratê e Marquês Tembé estão presos preventivamente há três meses, sem data definida para julgamento e sem previsão de análise do pedido de liberdade provisória pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1). Eles foram detidos no dia 29 de janeiro deste ano, em operação da Polícia Federal no Pará, que teve apoio da Polícia Civil do estado.

Em Belém, povos tradicionais da cidade de Tomé-Açu aproveitaram o Dia dos Povos Indígenas para protestar contra a prisão das lideranças. Cerca de 80 indígenas Tembé e Turiwara realizaram uma manifestação pacífica durante a abertura da programação da Semana dos Povos Indígenas, no Hangar Convenções e Feiras da Amazônia. 

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No protesto, os indígenas entoaram cânticos e gritos tradicionais e fizeram danças, enquanto seguravam cartazes com frases como: “Decisão já”, “O silêncio do juiz é violência contra os indígenas”, “Parem de criminalizar nossas lideranças”, “Liberdade aos líderes indígenas” e “Libertem Marquês e Paratê Tembé – Pela soberania indígena”.

De acordo com os manifestantes, os indígenas estão sendo criminalizados por resistir à atuação do Grupo Brasil BioFuel (BBF) na região. A empresa, gigante na produção de óleo de palma na América Latina, é alvo de inúmeras denúncias de irregularidades por parte das comunidades, em um conflito que se estende há mais de 15 anos.

“O motivo do protesto é que o nosso povo, que luta para defender o nosso território, está sendo martirizado pela BBF, que plantou dendê dentro das nossas áreas. Hoje, as lideranças estão sendo presas, porque a empresa tem dinheiro e o indígena não tem”, dispara o cacique Edvaldo de Souza, liderança em Tomé-Açu e primo de Paratê.

“Nós não temos dinheiro para combater com a empresa, mas temos força para lutar pelo nosso território. Prendeu uma liderança, nasce quatro, porque esse é o nosso povo, nós já nascemos lutando”, complementa o manifestante. 

O ato foi um dos marcos da Semana dos Povos Indígenas. O evento, organizado pelo Governo do Estado, por meio da Secretaria de Povos Indígenas do Pará (Sepi), contou com a presença do governador Helder Barbalho, da secretária estadual de Povos Indígenas, Puyr Tembé, da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e de outras autoridades e artistas, além de mais de 600 indígenas de 50 povos.

“Aqui estão todos os nossos parentes, de todas as etnias, pedindo a mesma coisa: liberdade para estar no nosso território, para mais tarde os nossos filhos, os filhos dos nossos filhos terem direito à terra. E se não preservar, o que tu vai deixar para os teus filhos?”, questiona o cacique do povo Turiwara.

Segundo dados do Censo Demográfico 2022 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Pará tem 80.974 pessoas autodeclaradas indígenas, sendo 41.819 em terras indígenas e 39.155 em áreas urbanas. O número representa 1% da população paraense. 

Prisões ocorreram em meio à organização do Pará para receber evento ambiental

Cartazes segurados pelos indígenas também destacavam, em tom de protesto, que Belém será sede da COP-30 em 2025, fórum ambiental considerado o mais importante do planeta dentro da temática. Para o cacique Edvaldo de Souza, os indígenas precisam ser reconhecidos como atores fundamentais na proteção do meio ambiente e para o equilíbrio climático.

Isso é confirmado por um levantamento do MapBiomas, divulgado em setembro de 2023, que mostra que as terras indígenas perderam menos de 1% de sua área de vegetação nativa nos últimos 38 anos, enquanto nas áreas privadas, a devastação foi de 17%. Segundo o estudo, as terras indígenas ocupam 13% do território brasileiro.

“Nós preservamos a natureza, mas quem preserva nós? Ninguém. Dizem que a COP vem beneficiar os povos indígenas, nossa cultura, nossas etnias, que vem para nos proteger, mas não é isso que está acontecendo. Nós estamos sendo aprisionados por um governo que está nos massacrando”, protesta a liderança.

Ele continua: “Quem mandou o delegado ir para dentro de Tomé-Açu foi nosso governador. Quer dizer que o governador que quer a COP-30 é o mesmo governador que está mandando prender nós? É isso que eu vejo. Quer dizer que a COP-30 é uma lavagem de alma para ele?”.

“Nós estamos perdendo o nosso território para empresas que invadem nossas terras, passam dentro da nossa natureza. E o estado, onde se encontra? Mandando polícia prender o indígena? Colocando o indígena como marginal? Nós não somos marginais, nós somos protetores da natureza”, conclui Edvaldo de Souza. 

Cartazes segurados pelos indígenas destacavam, em tom de protesto, que Belém será sede da COP-30 em 2025. Foto: Fernando Assunção/Alma Preta

Operação Guaicuru: indígenas são investigados pela Polícia Federal

As lideranças Paratê e Marquês Tembé foram presas há três meses, em 29 de janeiro deste ano, no âmbito da Operação Guaicuru, da Polícia Federal. Segundo a investigação, os detidos são suspeitos de crimes de tentativa de homicídio, associação criminosa, milícia privada e posse ilegal de arma de fogo. 

De acordo com a Polícia Federal, os presos se valiam da condição de liderança para cometer os crimes, inclusive contra a própria comunidade indígena, motivados pela disputa por terras produtivas de dendê.

Mas a versão é contestada pelos indígenas, que afirmam que as prisões são retaliação à luta contra o Grupo BBF. Isso porque os detidos atuam na denúncia de supostos crimes da empresa, que incluem invasões, formação de milícias rurais e fraudes no registro de posse para expandir o próprio território sobre terras indígenas. 

Para a defesa dos indígenas, a demora na decisão judicial sobre a manutenção ou não da prisão das lideranças, beneficia as empresas do dendê e silencia a resistência indígena. 

“As empresas enfrentavam a oposição de indígenas que defendiam suas comunidades. Com a prisão, a oposição foi substituída pelo aliciamento, promessas de indenização e compra direta do dendê de outras comunidades. Essa estratégia visa enfraquecer a luta indígena pela preservação de seu território, sua cultura e seu modo de vida, além de gerar conflitos internos entre as famílias que aceitam ou não se submeter aos interesses econômicos das empresas”, analisa um dos advogados dos indígenas, que optou por não se identificar para preservar sua segurança.

Fepipa: ‘Quando um está preso, toda a comunidade está presa junto com ele’

A mobilização pela manifestação da justiça sobre a manutenção das prisões dos líderes indígenas foi fortalecida pela secretária de Povos Indígenas do Pará, Puyr Tembé. Sem citar diretamente o caso, a gestora abriu a programação cultural da Semana dos Povos Indígenas, no domingo (21), com o protesto: “Senhor juiz, tenha a coragem de dar a decisão que os indígenas precisam. Chega de violência contra os nossos territórios!”.

Organizações dos povos originários também ecoam as reivindicações. À Alma Preta Jornalismo, a presidente da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), Concita Sompré, afirma que o movimento exige a manifestação do juiz sobre as prisões: “Estamos querendo que ele tome uma posição e não fique mornando o assunto”.

“Os indígenas demandam que a justiça tome uma posição para que a gente possa reagir. E reagir não com violência, mas no conhecimento da escrita, porque existem as leis e, se os indígenas são culpados, a justiça precisa dizer pelo quê. É isso que a família está pedindo: ‘juiz, dê a sua decisão para que a gente possa recorrer’”, continua Concita.

Segundo Sompré, as prisões afetaram a rotina da comunidade. “A comunidade não tem mais atividades culturais, não tem mais roça, paralisou tudo, vivemos em função de um processo que está nas mãos do juiz. Porque a gente é coletivo: quando um morre, todos ficam de luto; quando um está preso, toda a comunidade está presa junto com ele”, finaliza.

A presidente da Fepipa, Concita Sompré, afirma que o movimento exige a manifestação do juiz sobre as prisões. Foto: MRE Galvão/Mídia Indígena

Defesa dos indígenas diz que lideranças sofrem violações na prisão

Paratê e Marques Tembé estão custodiados provisoriamente na Central de Custódia Provisória de Santa Izabel, em uma cela comum, no mesmo pavilhão de outros presos. Esse tratamento viola a legislação específica que trata sobre os direitos dos indígenas no sistema penitenciário, apontam os advogados.

Além da 3ª Vara do Juízo Federal, a defesa dos indígenas já ajuizou pedido de habeas corpus no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Três meses após a prisão, nenhum magistrado se manifestou sobre a manutenção ou não da prisão, ou sobre a possibilidade de liberdade com medidas cautelares ou domiciliares na aldeia até o julgamento. 

No STJ, o pedido foi impetrado na sexta-feira (19), Dia dos Povos Indígenas. Entretanto, à Alma Preta Jornalismo, a assessoria de imprensa do tribunal informou que o relator, ministro Messod Azulay Neto, não analisou a possibilidade de habeas corpus, porque o pedido de revogação da prisão cautelar ainda não foi analisado pelo TRF1.

A defesa afirma também que os indígenas foram alvo de violência na prisão por parte de policiais penais. “Os policiais lançaram spray de pimenta neles e propagaram ameaças de que ali seriam tratados iguais a todos os outros presos sem nenhuma diferença. Esse fato já está sendo investigado e apurado pelas autoridades locais. Estamos aguardando o fim das apurações”, disse.

Sobre esse assunto, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) esclareceu, por meio de nota, que os indígenas custodiados não tiveram contato com os demais presos. A Corregedoria Geral Penitenciária (CGP) informou ainda que instaurou sindicância para apurar o tratamento ofertado aos indígenas e que, após a conclusão, as informações serão remetidas ao Ministério Público Federal.

Já a Secretaria de Estado dos Povos Indígenas (Sepi) disse que a ouvidoria do órgão ouviu os familiares dos indígenas detidos e visitou os custodiados para a apuração das denúncias. A Sepi também afirmou estar em diálogo com a Seap para garantir o bem estar dos presos indígenas.

O que diz a legislação sobre os direitos dos povos indígenas no sistema penitenciário?

A legislação que garante os direitos dos indígenas no sistema prisional brasileiro é composta por diversos instrumentos, tanto nacionais quanto internacionais. Entre os principais, estão:

Nacionais:

1. Constituição Federal de 1988: Artigo 231: reconhece a autonomia dos povos indígenas e garante seus direitos sociais, culturais e políticos. § 1º: determina que os indígenas sejam julgados e punidos em seus próprios territórios, segundo seus costumes.

2. Estatuto do Índio (Lei Nº 6.001/1973): Artigo 9º: garante a liberdade de locomoção dos indígenas, inclusive para o cumprimento de pena. Artigo 20º: determina que a pena privativa de liberdade seja cumprida em local próximo à sua comunidade, considerando seus usos, costumes e tradições.

3. Resolução CNJ Nº 287/2019: Estabelece diretrizes para o tratamento de pessoas indígenas no sistema prisional, desde a investigação até o cumprimento da pena. Define medidas para garantir a tradução e interpretação de atos processuais, o acesso à saúde e à educação diferenciada, e a possibilidade de cumprimento da pena em regime alternativo.

Internacionais: 

4. Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Artigo 27: reconhece o direito das pessoas privadas de liberdade à liberdade de religião e à assistência religiosa de sua escolha.

5. Convenção Nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais: Artigo 10: garante o direito dos povos indígenas de não serem discriminados em razão de sua condição indígena, inclusive no sistema prisional.

A reportagem da Alma Preta Jornalismo solicitou posicionamento do TRF1 acerca da manifestação sobre as prisões das lideranças Marquês e Paratê Tembé, e aguarda um retorno.

  • Fernando Assunção

    Atua como repórter no Alma Preta Jornalismo e escreve sobre meio ambiente, cultura, violações a direitos humanos e comunidades tradicionais. Já atua em redações jornalísticas há mais de três anos e integrou a comunicação de festivais como Psica, Exú e Afromap.

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