Cercas de arame ou elétricas, envenenamento do solo, queimadas, desmatamento e até búfalos. Esses são alguns dos obstáculos entre as quebradeiras de coco, como Marinalda Rodrigues, do Piauí, e as palmeiras de babaçu, que oferecem o coco, responsável por seu sustento.
De acordo com o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu do Piauí (MIQCB-PI), a região onde vive Marinalva passa por uma devastação ambiental desde julho, causada por agropecuaristas.
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Cerca de 300 hectares de terra foram desmatados no município de Campo Largo do Piauí, no norte do estado. O território faz divisa entre as cidades de São João do Arraial e Esperantina. Entre as diversas espécies de vegetações nativas, ocorre a derrubada das palmeiras de coco babaçu, que são protegidas pela Lei Estadual Babaçu Livre.
O Estado do Piauí e do Maranhão contam com a Lei do Babaçu Livre, que garante o direito das quebradeiras de coco babaçu a acessarem às áreas das palmeiras, mesmo em terras privadas, para coletarem os cocos. A extração, por parte das quebradeiras, é agroecológica, pois recolhem apenas os cocos que já caíram das palmeiras, respeitando seu ciclo de vida.
A lei também prevê a proteção da vegetação nativa ao proibir a derrubada das árvores, o uso de agrotóxicos, as queimadas ou o corte do cacho por inteiro, prática que compromete a reprodução das palmeiras.
De acordo com o movimento das quebradeiras, a derrubada dessas árvores em Campo Largo impede a atividade econômica de cerca de mil quebradeiras de coco da região pelo fato dos hectares estarem situados em uma região de divisa entre diversas comunidades.
A assessoria jurídica do movimento relata que as denúncias sobre o desmatamento foram encaminhadas para a Secretaria do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Semarh), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), entre outros órgãos competentes e os processos ainda estão em tramitação.
A expectativa é que os responsáveis sejam multados e o valor seja direcionado ao fundo para recuperação de áreas degradadas nos termos que prevê a Lei do Babaçu Livre.
Em nota, o Governo do Estado do Piauí alega que a Semarh se reuniu com o Movimento das Quebradeiras de Coco após a denúncia e aponta que ficou encaminhada a aplicação de multas cujos valores serão destinados às comunidades atingidas.
Impacto ambiental
Segundo a agrônoma Janaína Barros, além do impacto social drástico na vida das comunidades tradicionais de quebradeiras de coco babaçu, as derrubadas também geram danos ambientais.
“A palmeiras de babaçu estão presentes em zonas chamadas de matas ou florestas de babaçuais. Essas regiões são ecossistemas próprios, onde ocorre a interdependência de espécies vegetais, animais e microrganismos. O desmatamento dos babaçuais provoca a perda da biodiversidade, empobrecimento de solos e aumento da temperatura”.
O aumento das temperaturas têm sido recorrentes em todo o Brasil nos últimos. Estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), as ondas de calor saltaram de sete ocorrências para 32 nos últimos 30 anos.
Para a presidente do Conselho do Fundo Brasileiro de Educação Ambiental, Thaís Brianezi, a manutenção dos direitos das comunidades tradicionais são essenciais para avanços ambientais, uma vez que esses povos reivindicam a preservação da natureza.
“Existe uma relação estatística comprovada entre presença de comunidades tradicionais e preservação dos biomas. O próprio modo de vida dessas pessoas sugere uma relação diferenciada da natureza, que destoa da lógica ocidentalizada. A natureza é vista como um todo, no qual o ser humano se inclui. A terra não é vista apenas como recurso, mas como território e parte da identidade. É por isso que é necessário que existam políticas públicas de reconhecimento dos seus territórios.”, aponta.
De geração em geração
Quebrar coco é uma atividade que atravessa gerações no nordeste do país. Foi assim com Marinalda, que aprendeu com seus familiares. O pai trabalhava na roça, enquanto ela quebrava coco. Desde os sete anos, percorre quilômetros pelas matas, coleta os cocos que já caíram das palmeiras de babaçu e os transportam para o local onde serão quebrados. Com uma marreta, dá o golpe no pequeno coco com firmeza, força e precisão, para que seja repartido ao meio sem perdas.
Após a quebra, o mesocarpo pode ser utilizado para produzir farinha, utilizada em mingaus e biscoitos. Também é possível extrair o azeite de babaçu, que pode ser usado no preparo de diversos tipos de pratos, sobretudo peixes. Com a folha da palmeira seca, também se faz artesanato como bolsas, cestas e brincos. Todo o processo de extração é sustentável e depende dos ciclos naturais da palmeira para acontecer.
Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e de organizações que atuam junto às comunidades tradicionais, estima-se que existam cerca de 400 mil quebradeiras de coco babaçu no Brasil. O país é o maior produtor de coco babaçu do mundo. Em 2022, foram produzidas mais de 30 mil toneladas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Autonomia financeira para mulheres
A maior concentração das trabalhadoras do extrativismo do coco babaçu está no Maranhão, que lidera com mais de 70%. No estado, as palmeiras são tão famosas que compõe os versos de Gonçalves Dias, poeta do romantismo, em “Canção do Exílio”. Saudoso, ele diz: “Minhas terras tem palmeiras, onde cantam os sabiás”.
É do extrativismo agroecológico dessas palmeiras que vem o sustento de Rosa Gaspar, residente do Quilombo Boa Vista, no município de Rosário, no Maranhão. Com 400 anos, o quilombo Boa Vista é um dos mais antigos da região e reúne cerca de 97 famílias. Apesar da relevância histórica, ainda não é demarcado oficialmente pelo governo como área quilombola.
O estado do Maranhão tem a segunda maior população quilombola do Brasil, segundo o IBGE. O estado possui mais de 200 mil pessoas que se autodeclaram quilombolas. O extrativismo do babaçu é uma atividade bastante presente nesses quilombos.
Rosa é uma dessas quilombolas. Ela lidera um grupo de 21 mulheres quebradeiras de coco no projeto intitulado Sabor e Arte. Juntas, elas acordam cedo todos os dias e se embrenham pelas matas para coletar e quebrar o coco, que depois vira alimento para a comunidade a para o comércio.
Tudo começou quando Rosa percebeu que as mulheres, que sempre foram detentoras desse saber ancestral da produção do coco babaçu, não tinham protagonismo no negócio e na administração do dinheiro, que ficava majoritariamente à cargo dos homens.
“Eu fui até a assembleia do nosso quilombo, pedi a palavra e disse: nós precisamos formar um grupo de mulheres porque os maridos não distribuem o dinheiro. Muitas ficaram desconfiadas, mas aos poucos passaram a acreditar no meu sonho: conquistar a nossa liberdade financeira”, conta.
Atualmente, essas mulheres produzem bolos e biscoitos para a comercialização em feiras e eventos. O quilo do biscoito custa em torno de R$ 40.
O grupo também tem parceria com o SEBRAE e Governo de Rosário para a comercialização dos biscoitos na merenda das escolas públicas da região, além de servirem o quitute para grupos de turistas que visitam a sede do projeto no quilombo da Boa Vista em rotas promovidas por especialistas em turismo afro e de base comunitária.
Com a renda do comércio e do turismo, as mulheres sustentam suas famílias e ensinam suas famílias a seguirem a tradição e os costumes da comunidade.
“Para muitos é motivo de vergonha, mas hoje eu tenho muito orgulho de dizer que sou quilombola e quebradora de coco”, conta Rosa.