Em 9 de janeiro de 2003 foi sancionada a lei federal 10.639, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para tornar obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nos currículos das escolas públicas e privadas do Brasil.
Considerada uma vitória do movimento negro e um marco para a educação nacional, a lei visava romper com um currículo eurocêntrico e promover uma educação que refletisse a diversidade cultural do país.
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Passados 22 anos, a celebração dessa legislação vem acompanhada de um olhar crítico sobre os avanços e, principalmente, os obstáculos ainda presentes na sua plena implementação.
Dados divulgados pelo Instituto Alana apontam que 71% das cidades brasileiras não cumprem as diretrizes da lei, mantendo um ensino que ignora ou marginaliza a contribuição africana na formação social, cultural e econômica do Brasil.
Obstáculos para implementação da lei 10.639
Para a pedagoga e doutoranda em Educação Luiza Mandela, o principal entrave à implementação da legislação é o racismo estrutural, que permeia todas as esferas da sociedade, inclusive o sistema educacional.
“Pensar na inclusão da história e da cultura afro-brasileira e africana nos currículos é algo que o Brasil precisa repensar profundamente. O país precisa se rever como nação e enfrentar essas questões de forma séria”, afirma em entrevista com a Alma Preta.
Além disso, a ausência de formação docente específica, falta de monitoramento da aplicação da lei e insuficiência de recursos financeiros tornam o cenário ainda mais desafiador.
Um levantamento repercutido pelo portal Geledés revelou que apenas 8% dos municípios destinam verba específica para ações voltadas à implementação da lei, evidenciando sua baixa prioridade no planejamento educacional.
Embora os obstáculos sejam numerosos, algumas iniciativas municipais mostram que mudanças são possíveis. Macaé, no Rio de Janeiro, é um exemplo. O município conta com uma Coordenadoria de Igualdade Racial, que oferece formação contínua para educadores, cursos de letramento racial e verba específica para a implementação de políticas públicas voltadas à diversidade étnico-racial.
No entanto, práticas como essas são raras. A ausência de políticas efetivas em larga escala contribui para a manutenção de currículos eurocêntricos, ignorando a pluralidade cultural brasileira e perpetuando desigualdades educacionais e sociais.
O impacto do tema no Enem e o papel da educação Infantil
O Enem de 2024 trouxe visibilidade ao tema ao abordar a omissão no cumprimento da lei 10.639 na redação. O impacto foi significativo, ainda que momentâneo.
Luiza relata que muitos professores se sentiram pressionados a abordar o tema, mas a falta de formação e de materiais adequados dificulta a continuidade do debate de forma estruturada.
“O impacto do tema no Enem foi momentâneo, mas precisamos garantir que ele se traduza em políticas públicas. É essencial que os professores tenham acesso a formações contínuas e que a lei seja integrada de forma natural ao currículo escolar, não limitada a datas específicas”, destaca Mandela.
Para a pedagoga, a educação infantil é uma etapa estratégica para transformar esse cenário. “É nela que ocorre a construção da identidade e da subjetividade das crianças. Se tratarmos a diversidade desde cedo, o impacto será significativo no desenvolvimento das próximas gerações”.
Ela destaca a importância de materiais pedagógicos que reflitam a diversidade – como bonecos negros, histórias afro-referenciadas e jogos inclusivos – aliados à formação contínua dos educadores.
“Não se trata de parar para trabalhar uma educação antirracista, mas de entender que ela é parte intrínseca da educação”, afirma.
Propostas para avançar
Para superar os desafios da implementação da Lei 10.639, Mandela sugere a obrigatoriedade de disciplinas sobre relações étnico-raciais em todos os cursos de nível superior e um fortalecimento do judiciário para tratar crimes de racismo com seriedade.
“O letramento racial é urgente em todos os âmbitos das políticas públicas, para que o crime de racismo não seja banalizado nem tratado como algo normal nas relações sociais”, defende.
Atualmente, Luiza Mandela está à frente do Mandela Pod, um podcast que aborda temas como educação, saúde, arte, empreendedorismo e intolerância religiosa sob a ótica das relações étnico-raciais. Para ela, o podcast é um espaço essencial para demonstrar a presença e relevância da população negra na sociedade brasileira.
“O podcast não apenas sensibiliza sobre a importância de uma educação antirracista, mas também evidencia que somos produtores de intelectualidade. Ele mostra que o antirracismo não é apenas um tema; é um aspecto central da sociedade. Nós, intelectuais, produzimos conhecimento em diversas áreas, e temos muito a dizer”, conclui a pedagoga.