PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

Lei Maria da Penha: ‘Encarceramento não altera a hierarquia de gênero’, diz professora de direito penal

7 de agosto de 2020

Após 14 anos de criação, legislação segue sem combater agressão doméstica e familiar; mulheres negras são 61% das vítimas de violência

Texto: Edda Ribeiro | Edição: Nataly Simões | Imagem: Reprodução

Quer receber nossa newsletter?

Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!

Em entrevista com mulheres que visitavam presos no Complexo Penitenciário Advogado Antônio Jacinto Filho (COMPAJAF), em Aracaju (SE), a professora de Direito Penal e Criminologia Aline Passos relembra relatos sobre o “preso Maria da Penha”, como eram chamados os enquadrados na Lei 11.340/06. “Me deparei com longos históricos de violência doméstica, violência familiar e violência contra a mulher, inclusive ainda por parte do sujeito que está preso. O encarceramento não altera significativamente a hierarquia de gênero que a gente vive num contexto social em liberdade”, conta.

Neste dia 7 de agosto, a Lei Maria da Penha completa 14 anos de criação e ainda é alvo de discussões sobre efetividade, tanto na responsabilização dos agressores quanto nas políticas de combate à violência doméstica e familiar. Pesquisadoras da área do Direito e Sociologia desnudam ao Alma Preta os pilares, possíveis avanços e estagnações impostas pela origem da lei.

Para a advogada integrante da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher – OAB/SE, Letícia Rocha, a legislação abriu caminhos e processos para que as vítimas pudessem percorrer após a agressão, já que a lei prevê uma garantia estatal para lidar com os casos de violência. Porém, no âmbito de reparação e punição na prática, ela cita que “alguns eixos se desenvolveram mais que outros”. “Não se trata de uma lei que visa apenas a punição da pessoa que comete a violência doméstica e familiar contra mulheres. Envolve assistência à mulher, responsabilização para o agressor e prevenção”, explica.

Letícia usa como exemplo a necessidade de grupos de reflexivos para os homens autores de violência. Segundo ela, os resultados são positivos, com índices de reincidência baixos. “É uma medida que ajuda a combater a reincidência e sai do registro apenas punitivo. É difícil ter reflexão a partir da via criminal. Ao ser processado e sentenciado, muitas vezes o homem não tem possibilidade de refletir adequadamente sobre sua atitude e acaba repetindo o comportamento”, analisa.

A criação de casas abrigo, que se tratam de lugares isolados para mulheres que estão em perigo, e de grupos de apoio para homens acusados de agressão são políticas existentes em estados como Rio Grande do Norte, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Distrito Federal, são os tópicos importantes para avançar na concretização da Lei, defendidos pela advogada. “Existe aí um vasto campo de intervenções, desde a execução penal, com programas que trabalham com presos que cometeram violência doméstico-familiar. Então, intervenções localizadas de trabalho com esses presos”, completa a advogada e pesquisadora Aline Passos.

Raça e classe

“A diminuição no índice de violência revela uma das faces que estão presentes na maioria das políticas públicas: a ineficiência em relação ao alcance de todas as mulheres. Não há alcance igual, pois as mulheres são diferentes, contextos e necessidades diferentes. Houve uma diminuição em relação a mulheres brancas e em paralelo um aumento em relação a mulheres negras”, explica Letícia. Segundo pesquisa do site Gênero e Número, 61% das mulheres que sofreram algum tipo de violência domésticas são negras.

O processo de colonização brasileira dá pano para manga ao se discutir a resposta penal à violência a que mulheres são acometidas. “Todo mundo já deve ter ouvido que se não tiver uma lei que sancione, que penalize, as coisas não acontecem. O autoritarismo é resultado de um processo de colonização, que inclusive é estruturado por questões de raça e classe, (…) e nos tornaram uma sociedade com uma sociabilidade muito autoritária. Então aqui tudo se resolve com uma lei penal. Ou melhor, não se resolve”, garante Aline.

Raça versus classe versus gênero, embora sejam debates inconclusivos e em tentativa de consolidação, são elementos essenciais ao discutir não somente a Lei Maria da Penha, mas a própria violência contra a mulher. Todas as mulheres, segundo Letícia, sofrem violência, qualquer que seja seu contexto social – cor, classe, raça, idade. Porém a vivência sobre a agressão é dessemelhante. “O estado tenta colocar políticas específicas para mulheres de forma universalistas, como se todas fossem iguais, e não são”, considera.

O trato, ao enquadrar os tais agressores, é também diferente, no que aponta Aline. “Essa lei se abate sobre um contingente de homens negros, na sua maioria homens negros e jovens. Não porque é a Lei Maria da Penha, é que há um recorte da seletividade do sistema de justiça criminal. Não se pode hierarquizar a questão de gênero sobre a questão de raça. Ainda mais porque nós vivemos em tempos de encarceramento em massa. E a maior parte dos ‘presos maria da penha’ são provisórios”, explica.

Entre os processos da lei, uma das discussões se deu pelo trato dos agentes de polícia na hora de materializar o boletim de ocorrência. Segundo Aline, o argumento era que as mulheres retiravam a queixa por medo ou coação por conta do agressor. A pesquisadora rememora um fator determinante nessa etapa da busca por justiça, mas o questionamento vinha na própria delegacia sobre essa “certeza de denúncia”.

“As mulheres iam às delegacias e lá passavam por um longo e penoso processo de constrangimento para não chegarem a fazer o boletim de ocorrência. A equipe da delegacia falava ‘Mas você quer mesmo? Tem certeza que você quer? Se desincentiva a própria produção do boletim de ocorrência, antecipando esse medo. Quando o assunto é uma intervenção penal sobre produção de violência, e aí aqui violência marcada pelo gênero, a gente tá sempre num movimento pendular entre o que é horrível e o que é pior ainda”, afirma a advogada.

Em Aracaju, ao entrevistar vítimas, Aline se deparou com histórico de violência. Entre as histórias, havia controle por parte do indivíduo preso, seja exigindo imagens, vídeos do que está fazendo do lado de fora da prisão; cartas de filhos ameaçando mães para os tirarem dali. Segundo a pesquisadora, “violências que não são próprias do universo carcerário”.

Para ela, o ponto de vista imediato da aplicabilidade da lei, que ‘oferece saída imediata’, não contempla de fato o combate à violência de gênero. “A não ser que alguém imagine que o sujeito desaparece no momento em que ele é encarcerado, ele retorna. Em geral, o sujeito que é preso retorna para sua família de origem, para seu bairro de origem, para sua comunidade de origem. E o problema vai estar lá. Se não estiver lá com a mesma mulher, vai estar com outra”, alerta.

Apoie jornalismo preto e livre!

O funcionamento da nossa redação e a produção de conteúdos dependem do apoio de pessoas que acreditam no nosso trabalho. Boa parte da nossa renda é da arrecadação mensal de financiamento coletivo.

Todo o dinheiro que entra é importante e nos ajuda a manter o pagamento da equipe e dos colaboradores em dia, a financiar os deslocamentos para as coberturas, a adquirir novos equipamentos e a sonhar com projetos maiores para um trabalho cada vez melhor.

O resultado final é um jornalismo preto, livre e de qualidade.

Leia Mais

PUBLICIDADE

Destaques

AudioVisual

Podcast

papo-preto-logo

Cotidiano