Era madrugada do dia 1º de março de 2022, terça-feira de Carnaval em Salvador, quando a dona de casa Silvana Santos, de 44 anos, recebeu a notícia: “Seu filho está na mão da polícia”.
Desesperada, saiu de casa às pressas e parou em frente a um imóvel abandonado na Gamboa, de onde ouviu os gritos de socorro do filho, Alexandre Reis, de 20 anos.
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Se apresentou como mãe do jovem a um policial armado que fazia uma espécie de escolta em frente ao imóvel. Silvana tinha esperança de levar o filho de volta para casa, mas o que recebeu da polícia foi hostilidade e violência:
Quando deu as costas, ouviu os disparos fatais.
“Eu me tornei vítima duas vezes. Primeiro por ser recebida com arma na cabeça. E depois por eles terem arrancado meu filho da forma que arrancaram”, desabafa a mãe de Alexandre.
Chacina da Gamboa
Alexandre Reis foi um dos três jovens assassinados por policiais militares na comunidade da Gamboa, em Salvador. Ele e dois amigos, Cléverson Guimarães, de 22 anos, e Patrick Sapucaia, de 16 anos, voltavam de uma festa quando foram surpreendidos e mortos a tiros por policiais militares.
A versão dos policiais é que eles receberam uma denúncia de homens armados na localidade e, ao chegarem na região, foram recebidos a tiros. Já as testemunhas, maioria moradora da Gamboa, contam que os rapazes não portavam armas nem drogas.

O dia 1º de março de 2022 era uma data de celebração na família de Silvana, em que ela comemorava o aniversário de um dos seus cinco netos. Mas há três anos a data relembra a perda do filho.
“Nessa data eu morri. Foi um pedaço de mim, porque meu filho sempre me respeitou, sempre me tratou como mãe e amiga”, lamenta Silvana.
‘Heroína’
Mãe solo de oito filhos e avó de cinco netos, Silvana tem mais um título: a super heroína da família. É daquelas que defende a cria com unhas e dentes, beija, pega no pé, no colo e dá o carinho que não recebeu dos pais durante a infância marcada pela pobreza.
Mesmo após três anos da perda do filho, até hoje a dona de casa se sente impotente pela morte de ‘Léo’, apelido de Alexandre para familiares e amigos.
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“Eu fui no local e não consegui ser para o meu filho a heroína como ele me imaginava. Isso me dói muito porque eu sempre protegi, sempre defendi meus filhos de tudo e de todos. Mas nesse dia eu não fui ninguém pra defender ele, para ter ele até hoje”, lamenta.
Filho do meio, Alexandre era o “anjo da guarda” de Silvana e sempre estava ao lado da mãe quando ela enfrentava crises por causa de problemas de saúde. “E hoje, quando eu passo pelos mesmos problemas, eu não vejo meu anjo de guarda ali para me proteger”.
“É doloroso saber que você vai acordar e não vai ouvir mais ‘bença, minha mãe’, ‘te amo, minha rainha’ — era assim que ele me chamava”, relembra Silvana.

Mudanças
Quando as coisas apertavam dentro de casa, Alexandre era o suporte de Silvana. Dizia para ela: “Minha mãe, as coisas vão melhorar, a senhora vai ver’.
“E realmente melhorou, mas não com ele aqui. Eu queria que ele visse hoje a mulher que eu me tornei: lutando, estudando, correndo atrás”.
Desde que perdeu o filho, muita coisa mudou na vida de Silvana. Ela se tornou pesquisadora, passou a integrar um grupo de mães vítimas da letalidade policial e, atualmente, faz um curso de pesca oferecido para moradores da Gamboa.
Vaidosa, também resolveu mudar de dentro para fora: renovou o corte de cabelo, mantém as unhas sempre impecáveis e passou a frequentar outros lugares. Mas nada disso é capaz de preencher o vazio que sente do filho.
“Hoje me tornei melhor porque estou lutando pela justiça. Não vou trazer meu filho de volta, mas ele nunca vai ser esquecido”.
A falta de provas e o sonho por justiça
Os policiais militares Tárcio Oliveira, Thiago Leon e Lucas dos Anjos são réus por homicídio qualificado por motivo torpe e fraude processual.
Nenhum dos jovens tinha partículas de chumbo nas mãos, o que indica que eles não apertaram o gatilho de suas supostas armas.
Duas das três armas que os policiais disseram ser dos jovens não tinham condições de disparo. A perícia também não encontrou substâncias ilícitas no sangue das vítimas.
“Hoje um sonho que foi destruído me fez acender outro — e eu creio que esse sonho daqui a uns anos vai ser realizado — que é ver justiça, é ver eles presos”, pede a mãe.

De três anos para cá, não foi só a vida de Silvana que mudou. A morte deixou marcas em outras pessoas da família.
A neta de seis anos não é mais a mesma: acumula no olhar uma tristeza profunda. A filha mais velha se mudou para o interior, abalada pela morte do irmão.
“É um desfalque quando eu vejo que está faltando alguém e esse um nunca vai voltar para completar a minha equipe, que são meus oito filhos e uma mãe no meio”, reflete.
“Naquela época a gente falava ‘Quem tem sua mãe que a beije e a abrace’, porque quem enterra as mães são os filhos. Hoje são as mães que têm que enterrar os filhos”, desabafa.