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Não é a mesma coisa: como reconhecer assédio moral e sexual?

Mulheres negras são as principais vítima de assédio e de suas sequelas, como tristeza, insegurança e ansiedade; durante a pandemia, denúncias de práticas desta natureza no ambiente de trabalho cresceram 187% 

 

Imagem representa tristeza por ter sofrido assédio

Foto: Imagem representa tristeza por ter sofrido assédio

25 de fevereiro de 2022

Assédio moral e sexual são consideradas infrações na legislação brasileira. No entanto, apesar das punições, o número de ocorrência de ambas as violências cresce anualmente, em especial, contra mulheres negras.

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021 mostram que 51% das mulheres vítimas de estupro são negras. De acordo com dados de 2019, das mulheres que sofrem mais assédio 40,5% são pretas, 36,7%, pardas e 34,9%, brancas. Das mulheres agredidas – verbalmente ou fisicamente – na rua, 32% são negras e 23%, brancas.

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A pesquisa ‘Percepções sobre segurança das mulheres nos deslocamentos pela cidade‘, realizada pelos institutos Locomotiva e Patrícia Galvão, com apoio da ONU Mulheres e Uber, mostra que a sensação de insegurança não é a mesma para todos. Mulheres – especialmente, as negras – população de baixa renda, comunidade e LGBTQIA+ e as pessoas com deficiência declaram maior sensação de insegurança e vulnerabilidade quando se deslocam pela cidade.

Além disso, um dos legados da pandemia de Covid-19 foi uma nova epidemia: a do assédio moral e sexual, especialmente no ambiente de trabalho. Durante o período de restrições, as denúncias de práticas desta natureza cresceram 187%, segundo um levantamento da ICTS Protiviti, consultoria de gestão de riscos, que administra canais de denúncias em companhias de diversos portes e segmentos no Brasil. A pesquisa tomou por base as 106 mil denúncias registradas em 347 empresas ao longo de 2020.

Falta de limites

Na legislação, para que determinadas condutas sejam entendidas como práticas de assédio moral, é necessário uma relação hierárquica, o que explica o porquê de as denúncias virem principalmente de subordinados contra lideranças. No art. 483 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), é citado o assédio moral cometido por superiores em um ambiente de trabalho, por exemplo. No entanto, a infração não está incluída no Código Penal.

O professor de Direitos Humanos da Estácio São Paulo, Douglas Galiazzo, explica que o assédio moral se caracteriza pelo ato de humilhar e constranger. Toda conduta praticada pelo empregador, seja ele o chefe ou um superior hierárquico, ou pelos colegas de trabalho, que visem tornar o ambiente de trabalho insuportável por meio de ações repetitivas que atinjam a moral, a dignidade e a autoestima do trabalhador, se enquadra na infração.

Créditos: I'sis Almeida/Alma Preta JornalismoCréditos: I’sis Almeida/Alma Preta Jornalismo

“O assédio moral não virou lei ainda, mas há o Projeto de Lei 4742/2001. Se aprovada, a pena seria detenção de um a dois anos e multa. Mas ainda não está em vigor”, explica o educador. Até o momento, segundo informações oficiais, o projeto aguarda apreciação do Senado Federal.

A assessora jurídica e líder nacional do projeto Justiceiras – voltado para a defesa de mulheres em situação de violência –, Daniele Campos, ressalta que o assediador tenta obter vantagens através de favores e facilitações. 

“Não há limites para um assediador. Ele costuma exercer essa postura, não somente uma vez mas muitas vezes. É aquele cara que todos tem medo de falar com ele ou, por algum motivo, se sente acima de outras pessoas”, ressalta.

Marcela Cardoso, advogada, analista de projetos do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN) e especialista em Criminologia, explica a vítima pode identificar que está sofrendo assédio moral a partir de vários exemplos, como brincadeiras constrangedoras, atos, gestos e falas que visam diminuí-la.

“Trabalho excessivo, xingamentos e agressões verbais, brincadeiras que causem desconforto, ameaça de punições, dano à dinâmica de trabalho – retirando, por exemplo, instrumentos necessários para o exercício da função –, falta de instruções necessárias para a execução de uma tarefa, o que ocasiona um erro, ou obrigar o colaborador a fazer algo que representa um risco são alguns exemplos”, pondera.

No entanto, não apenas no ambiente de trabalho é possível ser vítima de assédio moral, segundo Marcela Cardoso. O ambiente escolar ou acadêmico também pode servir de palco para essa violência, com trabalhos extenuantes e repetitivos sem fins educativos durante as aulas, prazos impossíveis de o aluno cumprir e que sejam incisivamente exigidos pelo professor, o que pode causar danos psicológicos ao estudante, por exemplo. “A intenção do assédio moral é mostrar um exercício de poder, de manipulação”, completa a jurista.

Segundas intenções

O assédio sexual também depende de uma relação hierárquica e está tipificado no Código Penal, no art. 216-A. A punição para quem pratica o crime é reclusão – de um a dois anos. O crime parte da premissa de constranger alguém no intuito de receber vantagem ou favorecimento sexual.

Qualquer tipo de toque que cause desconforto na vítima (como beijo, abraço, carícia); qualquer ato que seja feito após a vítima dizer “não (com coerção/coação, mesmo de forma verbal); atentado ao pudor (como exposição da nudez ou pornografia); tirar fotos ou divulgá-las sem autorização; pedir favores sexuais em troca de qualquer tipo de benefício; a prática de steathing (tirar a camisinha durante o ato sexual sem que o parceiro ou a parceira saiba); além do estupro são algumas situações que caracterizam o crime.

Créditos: I'sis Almeida/Alma Preta JornalismoCréditos: I’sis Almeida/Alma Preta Jornalismo

A advogada Marcela lembra que o assédio sexual é classificado em duas categorias. A primeira é a chantagem, que ocorre quando aceitação ou a rejeição de uma investida sexual é determinante para que o assediador tome uma decisão – prejudicial ou favorável – contra a vítima.

“Isso seria aquele tipo de prática onde o agressor diz à vítima ‘se você fizer determinado ato sexual eu posso te dar uma promoção ou você pode perder o seu emprego’, por exemplo”.

Além disso, existe o assédio sexual por intimidação, que são atos que tornam o ambiente hostil para a vítima. “Comentários de cunho sexual, bilhetes, gestos, palavras, comportamentos, mensagens com esse teor, que causem danos à dignidade física e psicológica da vítima”, exemplifica.

Dois crimes, mesmo alvo

“Mulheres negras estão mais vulneráveis, com subtrabalhos e pouco estudo. São as mesmas que vemos no projeto Justiceiras serem vítimas de violência doméstica. O que acontece muito, por medo, é que essa mulher desiste de continuar a denúncia ou ela é desacreditada com perguntas do tipo: ‘com que roupa você estava?’. Ou seja, ela se sente acuada e julgada mais uma vez”, pontua Daniele Campos.

Para o professor Douglas Galiazzo, a questão histórica escravagista é mais um agravante para que a mulher negra seja o principal alvo das violências, bem como o machismo e a misoginia.

Leia também: ‘Após denunciar racismo, professora é vítima de assédio moral e sexual por diretor da escola’

“O homem quer subjugar, quer ser o senhor. Quer decidir quando e onde ele vai ter prazer. E a mulher negra, infelizmente, é a pessoa mais vulnerável a esses comportamentos cirminosos”, avalia o educador.

Marcela Cardoso pontua que os mecanismos de proteção que o Estado fornece não são suficientes para que as vítimas dos crimes não sofram as violências de ambos os tipos de assédio.

“O Direito nunca vai alcançar a pacificação social e inexistência de crimes. Mas é possível trazer uma discussão profunda sobre o assunto, pois a questão em si não é a lei. A questão é que estamos inseridos numa sociedade machista e racista, que hipersexualiza corpos negros, que considera mulheres negras como ‘quentes na cama’. Então, a discussão mais efetiva é na busca do letramento racial e as consequências do racismo estrutural”, avalia a advogada.

Reconhecer, trabalhar e acolher

A psicóloga e fundadora do Grupo Reinserir – clínica de psicologia especializada no atendimento a mulheres, negros e negras e comunidade LGBTQIA+ –, Natália Silva, comenta que normalmente as vítimas de assédio, seja ele moral ou sexual, buscam o auxílio psicológico com o questionamento acerca da veracidade da violência que sofreram. A dúvida frequente que essas mulheres relatam sempre gira em torno da pergunta “será que estou sendo inflexível ou realmente fui vítima?”.

“O nosso trabalho na psicoterapia, em um primeiro momento, é apontar para essa mulher que sim, ela foi vítima, e que algo precisa ser feito a respeito”, afirma a psicóloga.

Ela explica ainda que depois de identificar o assédio, normalmente as mulheres passam a se culpabilizar pelo ocorrido e questionar se não fizeram algo que levasse o agressor a tal atitude. O isolamento faz parte deste processo, segundo Natália, por medo, principalmente. A soma de todas essas reações causam ansiedade, crises de pânico e depressão nas vítimas, de acordo com a psicoterapeuta.

Créditos: I'sis Almeida/Alma Preta JornalismoCréditos: I’sis Almeida/Alma Preta Jornalismo

A fundadora do Grupo Reinserir ressalta que é fundamental o acolhimento, o reconhecimento e a validação da violência sofrida, para que, em conjunto com a vítima, o psicólogo possa trabalhar o manejo de culpa e responsabilização. Nestes casos de assédio, Natália afirma que trabalhar a autoestima e autoconfiança são pontos chave para o alívio emocional das pacientes.

“A partir do momento que uma mulher sofre este tipo de violência, acende um alerta, e relações podem se tornar gatilhos e aversivas para tal. Pensar suas relações e possibilidades de troca se faz fundamental, bem como fortalecer esta vítima com ferramentas, repertório, informações, acessos, a fim de que a mesma possa reconhecer violências, agir e tomar decisões com discernimento e segurança”, destaca.

A psicóloga completa que engajar a vítima a buscar e se fortalecer em sua rede de apoio e em espaços coletivos que fomentem discussões acerca das violências vivenciadas também podem ser caminhos que resultem na melhora.

“Quem deve ter vergonha é o assediador, não a vítima”

A líder nacional do projeto Justiceiras, Daniele Campos, ressalta a importância da denúncia em casos de assédio moral e sexual. A advogada ressalta que a vítima deve registrar a ocorrência em uma delegacia comum ou especializada, se possível, na companhia de um advogado.

“Denunciar sempre, mesmo que seja difícil. Muitas vezes tem um trabalho envolvido e até mesmo a vergonha, que deveria ter é o assediador”, comenta.

O professor Douglas Galiazzo recomenda que em ambos os casos de assédio – moral e sexual – é ideal levar a ocorrência ao conhecimento da empresa, instituição, ou superior do assediador de maneira formal, para que desta forma haja conhecimento de que um processo será aberto acerca da violência.

A Prefeitura de São Paulo orienta que em caso de assédio, seja ele qual for, é essencial que a vítima peça ajuda a quem estiver por perto e acione a polícia. Depois, é recomendado registrar um boletim de ocorrência na delegacia mais próxima. O assédio moral permite o registro online, mas o sexual deve ser presencial.

Segundo a gestão municipal, também é interessante que a vítima guarde todas as informações que conseguir referentes ao assédio: “anote o dia, horário e local, nome e contato de testemunhas, características do agressor, tire fotos, filme etc”.

“Verifique também se há câmeras no local do crime, pois, a partir disso, as imagens poderão ser solicitadas. Quando fizer o boletim de ocorrência ou qualquer outro tipo de denúncia, é importante levar o maior número de provas do ocorrido. Isso inclui vídeos e fotos no celular, testemunhas, conversas em redes sociais, entre outras”.

As autoridades policiais precisam de material para conduzir a investigação e a depender do caso, repassar para o Ministério Público. Outro alerta é que, em caso de assédio sexual, é comum o uso de drogas como ‘Boa Noite Cinderela’ para que a vítima fique sonolenta e mais suscetível.

“Caso o abuso tenha ocorrido através desta prática, é importante que a vítima faça o Exame Toxicológico (por meio de exame de sangue e urina) em no máximo cinco dias após a ingestão”, finaliza.

Leia também: ‘Crime tem nome: as diferenças entre injúria, injúria racial e racismo’

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