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Após denunciar racismo, professora é vítima de assédio moral e sexual por diretor da escola

Professora de geografia criticou a utilização de imagens de pessoas negras escravizadas e sofreu chacota por parte de diretor, segundo boletim de ocorrência

Ilustração exemplifica o momento da discussão entre a professora Jacqueline e o diretor

Foto: Ilustração exemplifica o momento da discussão entre a professora Jacqueline e o diretor

15 de fevereiro de 2022

No dia 14 de novembro, a professora de geografia Jacqueline dos Santos foi vítima de injúria racial e assédio moral por parte do diretor da Escola Municipal Maria Aparecida de Oliveira Pedroso, em Cotia-SP, Vaguiner Farias. O caso aconteceu em 2019.

A professora questionou o diretor Vaguiner Farias depois de se deparar com imagens de pessoas negras em condição de escravizadas no pátio do colégio. “Sem qualquer contextualização, as imagens animalizavam as pessoas negras, e isso durante a semana da Consciência Negra”.

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Imagens retratando a escravidão | Créditos: Acervo PessoalImagens retratando a escravidão | Créditos: Acervo Pessoal

Diante dos questionamentos de Jacqueline, Vaguiner disse: “Não, está certo. A história de vocês negros começou aqui. Foi onde tudo começou”. Depois de Jacqueline refutar a afirmação, o diretor riu e disse que a professora era “burra, ignorante e que não sabia do que estava falando”.

O diretor da escola também entrou na sala de Jacqueline, enquanto a professora lecionava para o sétimo ano, e a ofendeu novamente. “Você é burra, você não sabe o que você está falando. Quem você pensa que você é? Você não respeita ninguém, eu sou uma autoridade aqui”, disse o diretor.

 

“Eu fiquei muito constrangida com os alunos. Porque os alunos nunca me viram passar por uma situação como essa”, relata Jacqueline dos Santos. Alguns estudantes declararam à reportagem que era nítido o embaraço da educadora durante a atitude do diretor. Além disso, nas redes sociais, mães e membros da comunidade se mostraram solidários à indignação de Jacqueline com as imagens expostas.

A professora deixou a sala de aula, foi para a direção da escola, onde foi novamente insultada pelo diretor. Ela diz que ele tentou intimidá-la. Depois de responder às ofensas e dizer que não ficaria quieta diante das ações do diretor, se dirigiu às demais mulheres da sala. “Vocês deveriam fazer isso quando ele grita com vocês”.

Em resposta às acusações, o diretor Vaguiner Farias afirmou que as imagens colocadas nas paredes da escola não foram expostas por nenhum membro da gestão escolar. Segundo ele, a professora de artes havia designado esse tipo de trabalho a seus alunos.

Vaguiner explica que a prosposta do trabalho era mostrar o negro desde o princípio, inicialmente como reis e rainhas. Depois, a atividade visava destacar as condições que o mundo deu à população negra, “tirando suas oportunidades”. Por fim, o trabalho escolar, segundo o gestor da escola, iria exemplificar as celebridades negras da atualidade, “a fim de que as crianças pudessem ver que todos têm o seu valor”.

“Também tínhamos a ideia de comparar a escravidão negra com o judeu e tentar entender porque o negro ficou com estigma de escravo enquanto o judeu não, sendo que o judeu ficou por muito tempo cativo. Queríamos fazer as crianças pensarem no porquê disso, seria um motivo político por trás”, complementa o diretor.

Vaguiner disse ainda que não houve discussão com a professora Jacqueline. De acordo com o diretor, “discussão é quando duas pessoas falam, e não ocorreu isso. Ela falou tudo que quis, eu só disse a ela assim: discordo do que você disse, mas é um direito seu dizer”.

A servidora registrou Boletim de Ocorrência no dia 5 de dezembro de 2019, no DHPP, Decradi, na Luz, São Paulo. A delegada Daniela Branco e a escrivã Juliana dos Santos foram as responsáveis pelo Boletim de Ocorrência.

O caso foi encaminhado para a Delegacia de Polícia de Cotia. Jacqueline foi convidada para ir à delegacia para confirmar a história meses depois, no dia 2 de Março de 2020. Ela nunca mais foi chamada, e nem recebeu qualquer novidade sobre as investigações.

Assédio sexual

Depois de registrar o boletim de ocorrência por injúria racial e passar pela situação de assédio moral, Jacqueline teria ainda de lidar com difamações, de cunho sexual, estimuladas pelo diretor, Vaguiner Farias.

De acordo com ela, o diretor da escola comentou com outros colegas de trabalho que mantinha relações sexuais com a professora de geografia. Jacqueline nega qualquer relação que não a profissional com o diretor.

O art. 216-A do Código Penal Brasileiro configura como assédio sexual o ato de “constranger alguém, com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”, o que inclui insinuações explicitas ou veladas e uso de expressões de cunho sexual.

Além disso, segundo a vítima, outras professoras da mesma unidade sinalizaram o comportamento inadequado do diretor da Escola Municipal Maria Aparecida de Oliveira.

Uma professora foi chamada para a sala de Vaguiner Farias para explicar uma situação, de que havia um comentário de que os dois eram “amantes”. Ela relatou, no boletim de ocorrência, ter se incomodado com um abraço dado pelo diretor, e a partir de então decidiu por manter maior distância para evitar qualquer contato físico.

Fachada da Escola Municipal Maria Aparecida de Oliveira Pedroso, em Cotia (SP) | Créditos: DivulgaçãoFachada da Escola Municipal Maria Aparecida de Oliveira Pedroso, em Cotia (SP) | Créditos: Divulgação

A professora também disse que, ao chegar na escola, quando foi cumprimentar o diretor, recebeu um beijo próximo da boca, o que a deixou desconfortável. A situação mais grave ocorreu quando a ela precisou imprimir um material didático e a única impressora estava na sala dele. A docente disse que foi agarrada pelo diretor da escola e, naquele momento, ficou sem reação.

O diretor Vaguiner Farias, por sua vez, afirma que não teve nenhum tipo de comportamento desta natureza com as colegas de trabalho. “Nunca houve denúncias desse tipo, jamais falaria algo sobre a vida de alguém, muito menos com conotação sexual. Tenho um convívio saudável com todos, profissional. Estou há três anos na escola, sempre tratando cada pessoa como da família, atendendo as necessidades de todos quando possível”, ressalta.

Secretaria de Educação

A servidora Jacqueline Santos, após todo o episódio ocorrido na escola, se dirigiu à Secretaria de Educação de Cotia, a fim de realizar uma denúncia contra o diretor Vaguiner Farias.

Ela conta que, em um primeiro momento, o secretário Luciano Corrêa dos Santos lhe prestou apoio e explicou como ela deveria proceder. Era necessário que a professora escrevesse um relato de próprio punho, contando em detalhes de como se deram os fatos. Segundo ela, Luciano lhe garantiu que iria pessoalmente à escola apurar o episódio no outro dia, e que também abriria uma sindicância contra o diretor Vaguiner.

No entanto, Jacqueline se sentiu desamparada pela entidade. Segundo ela, no dia subsequente à visita à secretaria, a servidora esperou pelo secretário, que não foi à escola. Ela afirma ainda que não chegou ao seu conhecimento se houve investigação do órgão para apurar o ocorrido.

Como consequência, a geógrafa relata que sua saúde – física e mental – foi afetada, o que a fez ficar internada por um período. Ela afirma que durante este período de afastamento, seus atestados médicos não foram aceitos, logo, os dias foram descontados de sua folha de pagamento, prejudicando sua renda mensal.

Questionada pela reportagem da Alma Preta Jornalismo, a Secretaria de Educação de Cotia não justificou o motivo da não aceitação dos documentos fornecidos pela servidora ou se uma sindicância foi efetivamente aberta.

O diretor Vaguiner Farias, no entanto, afirmou que foi convidado a prestar depoimento na secretaria sobre o ocorrido e que membros do órgão estiveram presentes no evento promovido pela escola, o qual as imagens sobre a escravidão estavam expostas. Segundo ele, a mostra causou comoção na comunidade.

“Muitas crianças choraram e pessoas da comunidade também, foi um marco positivo na escola Maria Aparecida. Trocaria minha vida para dar de novo uma oportunidade dessas às crianças e às pessoas que ali estavam”, disse ele.

Agressões

No dia 12 de janeiro, a professora de Geografia diz ter sido agredida na Secretaria de Educação de Cotia. Segundo ela, um homem branco, identificado como Bruno e advogado do órgão, a ofendeu, gritou e lhe deu uma peitada para expulsá-la do prédio, localizado na Rua Jorge Caixe, 306. A agressão foi registrado na Delegacia de Polícia de Cotia como injúria real, ou seja, “quando a lesão corporal empregada não é de natureza grave ou gravíssima”. O delegado responsável se chama Adair Marques Ferreira Júnior.

Jacqueline recebeu via Whatsapp uma mensagem de André Oliveira, diretor da escola municipal Samuel da Silva Filho, solicitando à servidora a comparecer ao prédio da Secretaria de Educação com “máxima urgência” até o dia 14 de janeiro. A professora foi ao prédio no dia 12 de janeiro, com o filho e o sobrinho, de 10 e 9 anos, respectivamente.

Os documentos recebidos na secretaria sinalizavam a necessidade de Jacqueline comparecer na delegacia de Cotia no dia 18 de Janeiro, às 10h, para responder perguntas sobre um inquérito de falsificação de documento e falsidade ideológica. Jacqueline pediu para ver os demais documentos da mesma pasta para entender do que se tratava a acusação.

“Passei a questionar o que significava aquilo. Não sei sobre o que se trata essa acusação. Eu não queria assinar algo que eu não sei sobre o que se refere”, explica a professora.

A professora teve o acesso negado aos documentos por parte da secretaria e ligou para o advogado, que reiterou a importância de ela ter conhecimento do que se tratava. Sem a possibilidade de visualizar as denúncias, Jacqueline ligou para a polícia para relatar o fato.

Depois da ligação, um rapaz, que se apresentou como advogado do órgão e de nome Bruno, passou a encostar no ombro da professora e a chamar de “mal-educada”, “descontrolada” e pediu para ela abaixar o tom de voz. Jacqueline disse que não mudaria seu tom de voz e pediu para ele parar de encostar nela.

Bruno então colocou os braços para trás, deu uma peitada na professora, que foi para trás e depois saiu do prédio. “Se eu não recuo, ele me daria mais peitadas”. Ela saiu do prédio antes da chegada da polícia e se dirigiu para a delegacia.

Outros problemas junto à gestão municipal

Além dos percalços que a servidora enfrenta a respeito do ocorrido na escola e na Secretaria de Educação de Cotia, a professora de geografia ainda foi acusada de falsidade ideológica pela prefeitura no ano passado. Formada na Universidade Estadual Paulista em Marília (Unesp), Jacqueline ascendeu na trajetória acadêmica, tornou-se mestre pela Universidade de São Paulo (USP), e atualmente cursa dois doutorados – um na USP e outro internacional, em Bogotá.

Segundo ela, devido às notas altas e ao número de cursos com certificação que possui, a prefeitura passou a acusá-la de que seus diplomas eram falsos. A gestão municipal de Cotia ainda solicitou o envio de documentações já entregues pela servidora, com a justificativa de que outros professores já haviam entregado diplomas falsos ao órgão.

Jacqueline, então, em 18 de Janeiro de 2022, acompanhada do advogado Anivaldo dos Anjos, abriu um Termo de Declaração a respeito da veracidade de seus diplomas e certificados acadêmicos na Delegacia de Polícia Municipal de Cotia, sob responsabilidade no momento do delegado Gilson Leite.

Em um trecho do documento, a professora afirmou: “tive muita dificuldade para apresentar meus diplomas, pois sofro perseguição racial do diretor da escola. Apresentei os diplomas à Secretaria de Educação, contudo, não recebi até o momento progressão funcional por meus cursos”.

Enquanto o processo ainda está em andamento, a professora afirma – e diz que é possível comprovar com documentos – que não está recebendo o valor compatível com o que deveria receber de acordo com a sua formação e especializações.

Outro ponto que está sendo discutido neste processo é que Jacqueline afirma ter trabalhado na escola em todas as noites do ano letivo de 2021, mas que não recebe adicional noturno nem qualquer outro benefício, como licença prêmio e plano de carreira, desde a acusação.

“Fui injustiçado por ela”, diz diretor

Em resposta ao relato da professora Jacqueline Santos, o diretor Vaguiner Farias afirmou o seguinte à reportagem da Alma Preta Jornalismo:

“Triste pensar que existem pessoas que não vivem tentando perseguir o outro. Mas Deus ou o mundo, como preferirem, é justo em suas ações. Eu durmo todos os dias tranquilo, pois Deus conhece meu coração. Oro para que ele perdoe a maldade da pessoa que tentou inverter tudo que foi feito”.

“Foi uma coisa chata, mas não tenho nem mágoa dela [Jacqueline]. Na verdade, quero que ela seja feliz, pois eu durmo em paz com tudo. Sei que não fiz nada de errado, nem falei. No fim, fiquei até orando por ela, que sofreu por uma coisa que saiu dela mesma, não de mim, tanto que fiquei quieto, ouvindo.”

“Estamos abertos e com vontade de mudança sempre. Hoje mesmo estava ouvindo Protesto do Olodum e pensando em quanta coisa poderia ser feita de social para impactar as pessoas. Uma canção que mostra luta, uma luta da qual faço parte pelas minhas origens e que sempre vou levar comigo”.

“Minha mãe é negra, e o engraçado de tudo é que, quando eu era criança, eu ficava muito tempo no sol, pois achava que assim ficaria da cor da minha mãe, era um sonho pra mim, mas Deus tinha outro plano, claro”.

“Infelizmente, eu fui injustiçado por ela [Jacqueline] nessa situação, mas tranquilo. Vida que segue. Eu acredito na bondade do homem, na honestidade, no respeito, na igualdade, e que nada fica impune nesse mundo”.

Desdobramentos das denúncias

Todos os documentos acerca do caso podem ser acessados de modo digitalizado. Segundo Jacqueline dos Santos, o diretor rasgou todos os documentos físicos presentes na escola.

No dia 3 de dezembro, ela procurou a Defensoria Pública para conseguir algum posicionamento acerca das denúncias apresentadas. O Núcleo de Igualdade Racial da Defensoria Pública pediu uma posição em até 20 dias acerca do boletim de ocorrência e providências sobre as denúncias. O caso é acompanhado pelo defensor Vinicius Silva.

Depois, no dia 25 de Maio de 2020, foi realizada nova reunião com a Defensoria Pública e a Secretaria Municipal de Educação de Cotia para recomendar que o diretor participe de um curso de formação de História e Cultura afro-brasileira com carga horária mínima de 60 horas. O documento também exige a criação de uma nova atividade, com a presença obrigatória de todo corpo docente, para abordar a história positiva de diversas pessoas negras na história brasileira. O prazo de respostas é de 90 dias.

O defensor público Vinicius Silva explicou à Alma Preta Jornalismo que o caso ainda está em andamento, mas que as solicitações já foram enviadas à Secretaria de Educação de Cotia. A Defensoria Pública comunicou que já foram adotadas providências para o atendimento da professora de forma remota.

A Secretaria de Educação de Cotia, por sua vez, foi contatada diversas vezes, mas não se pronunciou, bem como a Prefeitura Municipal. A reportagem questionou quais foram as diretrizes adotadas pelo órgão para apurar o caso que envolve o diretor Vaguiner Farias e qual o respaldo que a servidora está recebendo da secretaria.

Além disso, a secretaria foi questionadas sobre as razões que fizeram duvidar da veracidade dos diplomas apresentados pela professora de geografia e também se o órgão poderia relatar o que houve na data em que Jacqueline disse ter sido agredida por um dos advogados do local. Até a publicação deste texto, o órgão não se pronunciou. Caso responda, a matéria será atualizada.

Já a Secretaria de Segurança Pública (SSP) afirmou que a ocorrência registrada em dezembro de 2019 na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) foi encaminhada à Delegacia de Polícia de Cotia, que instaurou inquérito policial e, em 2020, ouviu todas as partes relacionadas a ocorrência, inclusive a vítima.

“No mesmo ano, a unidade concluiu a investigação e relatou o inquérito para análise do Poder Judiciário, que arquivou o caso. Já o registro feito em janeiro deste ano junto à Delegacia de Polícia de Cotia, sob a natureza injúria real, depende do oferecimento de representação criminal por parte da vítima, conforme a legislação”, diz a SSP.

Segundo o órgão, a autoridade policial tenta contatar a professora a fim de verificar se há interesse ou não na adoção de tal providência e prosseguir com as apurações.

No mesmo dia em que a reportagem recebeu esse retorno da Secretaria de Segurança, a professora Jacqueline foi notificada por um e-mail da Delegacia de Polícia de Cotia sobre o caso envolvendo o suposto advogado Bruno, da Secretaria de Educação. No texto, a delegacia explica como a servidora deve proceder e que o prazo para ela entrar com a solicitação de Queixa Crime é até julho deste ano.

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