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‘Não tem Natal’: o período de festas das mães que perderam mais de um filho assassinado

Mães entrevistadas pela Alma Preta relatam utilizar remédios para conseguir passar por esse período do ano, no qual sentimentos familiares vêm à tona; solidariedade entre grupo de mães é fundamental para superar esse momento, segundo os relatos
Os irmãos Thomas Jefferson Pales Ribeiro Oliveira Nascimento (na ponta esquerda) e Gabriel Pales Ribeiro Oliveira Nascimento (no centro, à esquerda); os irmãos Davi de Lima (no centro, acima); Daniel Martins (no centro, abaixo); e os irmãos Eno Antoni, à esquerda, e Roberto Michel, à direita (na ponta direita).

Foto: Reprodução/Acervo Pessoal

24 de dezembro de 2023

Por: Dindara Paz, Pedro Borges e Solon Neto

Mesa cheia, família reunida e troca de presentes geralmente são símbolos que marcam as festas do final de ano. No entanto, para mães que perderam seus filhos, esse período é marcado pela saudade e pelo sofrimento, ainda mais para aquelas que viram mais de um ser vítima da violência urbana no país.

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Mães entrevistadas pela Alma Preta contam que tomam remédios para conseguir dormir, não ver a festividade e deixar esse período passar. Outras relatam não conseguir celebrar e há também aquelas que ainda têm filhos e, apesar da dor, tentam encontrar forças para participar da celebração. Todas contaram que a rede de mulheres que tiveram filhos executados é fundamental como forma de apoio.

Uma das mães ouvidas pela reportagem, Joseane Martins, graduanda em Serviço Social e integrante do grupo “Filhos nos Braços do Pai”, conta que o Natal deixou de fazer sentido desde 2021, o último em que ela esteve com o filho Davi de Lima. Nove meses depois, ele seria morto pela violência policial, aos 21 anos.

No dia 26 de setembro de 2022, Lima estava em um baile funk no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, com alguns amigos quando, ao sair do evento, foi surpreendido com uma operação realizada por policiais do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) na comunidade. Ele foi atingido e faleceu.

Na época do ocorrido, Joseane participava da gravação do documentário “Desova”, filme que aborda o desaparecimento forçado de pessoas na Baixada Fluminense e o processo de superação das mães que perderam seus filhos. Em maio de 2018, ela já tinha perdido o seu primeiro filho, Daniel Martins, morto pela milícia no Km 32, em Nova Iguaçu.

“Eu estava aprendendo a me acostumar. Cinco anos após, perdi o meu outro filho, o Davi de Lima”, conta Joseane, que faz terapia duas vezes na semana, em entrevista à Alma Preta.

Para ela, que realiza ações de Natal para pessoas em situação de vulnerabilidade, a festividade não existe para as mães que perderam seus filhos. “Eu transformei o meu luto em luta para não morrer e essa época é a pior da minha vida e de todas as outras mães”, descreve. A data, que para muitos é uma das mais especiais do ano, tornou-se sinônimo de dor para ela. “É a pior data do ano”, conta.

‘Não posso me abater porque tenho mais quatro filhos’

Há cinco anos, a morte do primeiro filho da estudante de direito e integrante da Rede de Mães e Familiares da Baixada Fluminense Marília Pales abriu uma ferida em toda a sua família. No dia 21 de dezembro de 2018, Thomas Jefferson, de 23 anos, foi morto com um tiro de fuzil disparado por policiais que faziam uma operação na comunidade da Vila Ruth, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense.

Moradora da comunidade, Marília Pales conta à Alma Preta que nesse dia acontecia a final de um campeonato de futebol quando, por volta das 23h30, o seu filho foi para a esquina da casa da ex-namorada, na mesma localidade, quando foi surpreendido por policiais com um tiro de fuzil. Ele chegou a ser socorrido pelos policiais, no entanto, Marília diz que o filho já chegou morto ao hospital.

Quatro anos depois, o seu segundo filho, de 19 anos, foi morto no mesmo contexto. Gabriel Nascimento tinha 19 anos quando estava com amigos em uma comunidade próxima de onde morava. Por volta das 11h da manhã do dia 9 de março de 2022, policiais invadiram a comunidade para fazer uma operação. Assustado, Gabriel Nascimento correu para tentar se esconder, mas foi atingido por um tiro no abdômen.

Ainda ferido, ele tentou se esconder dentro de uma casa, mas foi perseguido pelos policiais e morto com um tiro de fuzil à queima-roupa, no peito. O fato de ser um jovem negro correndo foi a sentença de morte do jovem de 23 anos.

“Mais uma vez eu tive uma perda assim porque ele não era envolvido com nada e foi assassinado porque correu. Porque preto correndo é algo que não presta”, comenta Marília.

Mãe de seis filhos, sendo dois, vítimas da violência policial, ela define o Natal como um período difícil para a família. “É um período muito difícil, primeiro pela perda deles dois, mas eu também não posso deixar com que isso me abata porque eu tenho mais quatro filhos”, afirma.

Apesar de seguir com a comemoração, a dinâmica com os demais filhos mudou. O medo de ter de lidar com a morte de mais um familiar fez ela alterar as relações com os quatro que estão com ela.

“Eu não deixo meus filhos viverem mais, porque a gente sabe que não é só quem é envolvido que pode morrer porque aconteceu duas vezes com a gente, sem meus filhos terem qualquer envolvimento. Eu tenho muito receio de tudo, não deixo meu filho de 19 anos fazer nada”, relata.

À Alma Preta, Marília Pales afirmou que as consequências da tragédia na família têm refletido na saúde emocional dos demais filhos. O mais velho, de 19 anos, está com diabetes emocional e um dos seus filhos, de sete anos, tem tido dificuldades de aprendizado na escola.

“Estamos todos passando por um momento muito difícil emocionalmente, do maior ao menor. Os meus filhos sentem muito e não conseguem aprender na escola, têm problemas emocionais. Meu filho de sete anos tem problema emocional e toda hora fala que está sentindo falta dos irmãos. É muito difícil”, reflete.

Integrante da Rede de Mães e Familiares da Baixada Fluminense, Marília Pales fala sobre a importância do acolhimento para as mães que perderam os filhos para a violência. “Sobreviver depois da perda de um filho é muito complicado. Então essa ajuda faz com que nós consigamos sobreviver”, finaliza.

‘A gente não tem Natal’

Renata dos Santos, moradora do município de Queimados, na Baixada Fluminense, tem 50 anos e três filhos vivos. Dois também foram vítimas da violência urbana no Brasil.

Há sete anos, ela perdeu o primeiro filho, Antoni Wladimir. Endividado, ele e um grupo de amigos tentaram cometer um assalto para levantar a quantia de R$ 2 mil. Durante a ação, houve um tiroteio e os colegas foram mortos. Antoni recebeu um tiro na cabeça, mas foi o único sobrevivente, conseguiu resistir aos ferimentos e fugir para casa e encontrar a mãe.

O assalto incomodou o tráfico da região, que chamou os familiares de Roberto Michel para prestar explicações, em mais de uma oportunidade. Em uma das ocasiões, o jovem foi assassinado pelos traficantes.

A partir deste momento, Renata dos Santos iniciou um caminho para conseguir enterrar o filho. Ela precisou, por diversas vezes, pedir isso para o tráfico, até que conseguiu a autorização e a possibilidade de localizar o filho. Para isso, contudo, teve que ir com a filha, ir até a vala clandestina onde ele havia sido enterrado e recolher os ossos do filho em uma sacola.

A ferida, que nunca se fechou, foi alargada no dia 23 de novembro de 2023, quando o segundo filho, Roberto Michel, também foi executado. Desta vez, ele sofreu uma emboscada por policiais milicianos. Sem envolvimento com o crime organizado, ela conta que encontrou o jovem com a perna e os braços queimados.

As duas mortes tiraram qualquer possibilidade de celebração dentro de casa, relata. “A gente não tem Natal, não tem Ano Novo, não tem nada. Como você comemora alguma coisa?”, conta Renata dos Santos. Ela tem uma filha e três netos.

Renata toma remédios para não ver os fogos de artifício e as comemorações. “Eu só acordo no dia seguinte, espero a data acabar logo, que é muito ruim”.

Para ela, algo importante para se manter de pé tem sido a Rede de Atenção a pessoas Afetadas pela Violência de Estado (RAAVE), que reúne mulheres que passaram por situações como a dela.

“É fundamental. Eu, meu esposo e a minha filha estamos desempregados, então a gente não tinha R$ 1 para nada e a rede se movimentou, me ajudou em todo sentido, tanto financeiro, quanto moral e psicológico”, relata.

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