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O efeito das drogas K: o que se sabe e o que é mistério

Usuários encontram intenso relaxamento, euforia e alucinações ao usar canabinoides sintéticos, mas falta informação sobre crises de abstinência e risco de morte; Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo investiga pelo menos oito óbitos só em 2024
Ilustração de uma pessoa deitada, nas cores preto e laranja.

Foto: Nathi de Souza/Alma Preta

3 de setembro de 2024

K é o nome popular para uma grande variedade de canabinoides sintéticos com efeitos muito diferentes. A composição química desse grupo de substâncias, que representa 45% das novas substâncias psicoativas apreendidas no estado de São Paulo, traz intenso relaxamento, distúrbios de sono e apetite, alucinações e pode afetar a rotina de quem faz o uso problemático dela. No Brasil e no mundo, já causou centenas de mortes. Mas há mais perguntas do que respostas sobre o que se tem chamado de K2, K4, K9, Spice e outras variáveis.

Diferentemente do que a cobertura midiática faz parecer, o maior número de notificações de intoxicação por drogas K não é registrado na Cracolândia, no centro de São Paulo, mas nas periferias da cidade. Das 600 intoxicações registradas na Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo de janeiro a julho de 2024, 23,8% vieram da Vila Jacuí e 8% de Itaquera, no extremo leste; 8,3% no Jabaquara e 5% em Pedreira, no extremo sul; e temos 9,6% na Vila Maria e no Jaçanã juntos, na zona norte.

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Também é na periferia onde está grande parte dos laboratórios clandestinos que produz a droga, segundo o Departamento Estadual de Investigações sobre Entorpecentes (Denarc), da Polícia Civil de São Paulo. 

Nesses bairros, é possível encontrar tanto usuários em situação de rua, quanto usuários que são trabalhadores e mantêm laços familiares, mas que enfrentam, do mesmo modo, o uso problemático da substância e sentem os efeitos da abstinência. No caso de quem está nas ruas, o sintoma mais visível dos efeitos do uso de drogas K é a paralisia dos usuários em posições não convencionais, como dormir em pé, ou se contorcer durante os efeitos do uso — o que tem sido chamado o “efeito zumbi” por grande parte da imprensa.

Na rua ou não, o perfil dos intoxicados é parecido: a maioria é de homens cis negros, adolescentes e jovens adultos. Eles, contudo, não são os únicos a experimentar a droga, que também têm adeptos na classe média.

Pinos de drogas K expostos no Museu da Droga, no Denarc-SP. Foto: Pedro Borges/Alma Preta.
Pinos de drogas K expostos no Museu da Droga, no Denarc-SP (Foto: Pedro Borges/Alma Preta).

Essa substância química, feita em laboratórios clandestinos, age sobre o corpo humano a partir dos mesmos receptores que a maconha, mas com efeitos muito mais intensos. Ela é produzida em estado líquido costuma ser consumida de duas formas: borrifada em folhas de papel para ser dissolvido na boca, embaixo da língua; ou borrifada em ervas ou tabaco, para ser fumada como um cigarro qualquer.

Durante reunião de um grupo de apoio de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) na periferia de São Paulo, criado exclusivamente para troca de experiências de usuários de K, os sintomas mais mencionados foram graves distúrbios de sono, impaciência e “fissura”. Mas, antes de chegarem ao uso problemático, usuários e ex-usuários têm uma memória positiva dos contatos iniciais com as drogas K.

“Eu fui para Nárnia”, conta o motoboy Francisco* sobre a primeira experiência com a droga K. O homem, que tinha um trabalho com carteira assinada e hoje recebe auxílio do INSS por afastamento de saúde em decorrência do tratamento do K, afirma que depois do primeiro trago voltou para casa como se tivesse “bebido um litro de pinga”. Outro usuário fala que viu paredes derreterem e animais imaginários.

“Às vezes eu até penso, não vou tirar a droga desse menino, se a única coisa que ele tem de boa na vida dele é a droga”, diz Myro Rolim, pesquisador da área de política de drogas e redutor de danos. Ele acredita que as drogas, em geral, não podem ser enquadradas somente no campo dos efeitos negativos, das doenças, problemas ou morte. “Porque a droga também é pulsão de vida, não é só pulsão de morte. Ela move as pessoas, faz as pessoas existirem no mundo”, problematiza.

No terminal de ônibus de Itaquera, um importante centro de transportes da zona leste de São Paulo, onde se encontram trabalhadores, seguranças, funcionários do terminal e usuários de K, Wellington* deu um depoimento para a Alma Preta e disse que a substância o deixa “mais calmo”. Bruno*, da região do Tremembé, na zona norte da cidade, relata a sensação de relaxamento, “fumando um K9, eu dou um trago e já durmo”. Para Rubens*, da região central da cidade, a sensação foi outra, de adrenalina e depois relaxamento. “Nossa, o bagulho foi louco, hein? É muito forte a sensação, o corpo amolece todo”.

Drogas K nada têm a ver com maconha

Os canabinoides sintéticos são oferecidos em algumas biqueiras da cidade como uma “maconha mais forte”. Não todos, mas alguns usuários ouvidos pela Alma Preta, contam que toparam experimentar a droga a partir dessa oferta, sem saber exatamente o que estavam consumindo. O problema é que, apesar de serem ofertadas de forma semelhante à maconha, as diversas drogas K têm centenas de composições químicas diferentes e, consequentemente, efeitos colaterais distintos e não previsíveis. 

O artigo “Farmacologia e Toxicologia dos Canabinoides Sintéticos, ‘Drogas Emergentes’, e os seus impactos na Saúde Pública“, de 2022, cita dados do Centro de Controle de Envenenamento do Texas, nos EUA, que contabilizou 464 registros de efeitos sobre os canabinoides sintéticos. A predominância foi de sintomas neurológicos (61,9%) e cardiovascular (43,9%), mas também detectaram sintomas gastrointestinais (21,1%) e respiratórios (8%). O estudo não registrou nenhuma morte, apesar de contabilizar que 59,9% dos pacientes demonstraram nível de toxicidade moderada ou grave.

No Reino Unido, contudo, estudo mostram que os canabinoides sintéticos causaram 50 mortes nas prisões do país apenas em 2018, além de causarem ataques cardíacos e deixaram sujeitos psicóticos. Tais efeitos fizeram com que fossem necessárias equipes de paramédicos nas prisões britânicas para atender possíveis efeitos dessa substância.

Em São Paulo, há tanto relatos quando registros de mortes por canabinoides sintéticos. Durante uma reunião do Fórum Intersetorial de Drogas e Direitos Humanos na Cidade Ademar, zona sul da cidade, uma das familiares de usuários presentes recebeu a notícia da morte de um vizinho por conta do uso de K.

Em outra reunião similar, em Itaquera, uma jovem de 18 anos também compartilhou a história de um amigo que morreu de parada cardíaca associada ao uso de K. Profissionais que trabalham nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) também relataram à reportagem conhecer meninos que morreram por conta do uso da droga, principalmente de parada cardíaca.

Isso porque alguns efeitos comuns dos canabinoides sintéticos, como crise de pânico, taquicardia e delírios, podem gerar parada cardiorrespiratória e, por vezes, o usuário pode morrer.

Rubens*, que viveu por seis meses em situação de rua e rodou a cidade de São Paulo, contou de seis amigos que teriam morrido, por supostamente usar o K. “Tem gente que tá morrendo dormindo, fumando isso daí. Seis amigos morreram dormindo”.

Em 2023, foram registradas pelo menos 12 mortes suspeitas por canabinoides sintéticos e, neste ano, até 3 de agosto, oito mortes suspeitas foram notificadas pela Secretaria Municipal de Saúde São Paulo, que tem publicado relatórios semanais com informações epidemiológicas sobre os canabinoides sintéticos. Dos oito mortos, sete foram identificados como pardos e um como branco; seis homens e duas mulheres, com idades de 22 a 29 anos.

As mortes suspeitas são analizadas por médicos legistas da Superintendência da Polícia Técnico Científica (SPTC) que, durante a necrópsia, coleta o sangue do corpo e encaminha para análise do Núcleo de Toxicologia Forense do Instituto Médico Legal (IML). O IML, em nota, afirmou que, atualmente, consegue identificar cerca de 50 substâncias conhecidas como “drogas K”.

O estigma do piripaque do Chaves

O sintoma mais conhecido dos efeitos do K é a paralisia dos usuários em posições não convencionais, como dormir em pé, ou se contorcer durante os efeitos do uso — o que tem sido chamado de “piripaque do Chaves” ou “efeito Zumbi” por grande parte da imprensa. Um exemplo é uma reportagem do “Domingo Espetacular” da Record, veiculada em abril de 2023. O vídeo começa com a afirmação do apresentador de que a droga K tem o poder de transformar os “usuários em verdadeiros zumbis”, com a transmissão de imagens de pessoas adormecidas em posições incomuns, sob efeito da droga.

A alusão ao personagem da série de TV se refere ao momento em que o usuário perde parte da coordenação motora e tem dificuldade de se comunicar durante o efeito da droga. Segundo relatos de usuários a profissionais de diversos CAPS, eles escutam o que se passa ao redor, mas não conseguem responder ou reagir. Além disso, eles dizem que esse momento visualmente estranho pode ser de profundo relaxamento. 

Redutor de danos, Myro Rolim. Foto: Pedro Borges/Alma Preta.
Redutor de danos Myro Rolim (Foto: Pedro Borges/Alma Preta).

Redutores de danos entrevistados foram unânimes ao afirmar que nomear os usuários dessa forma não ajuda a informar sobre a droga – apenas estigmatiza os jovens que utilizam a substância em locais públicos. “Não existe uma droga que deixe você com sintomas de um zumbi. Isso é discurso midiático. E esse discurso é mais uma forma de matar essas pessoas simbolicamente e justificar as diversas intervenções do Estado a que esses jovens estão submetidos”, esclarece o redutor de danos Myro Rolim.

Usuário de K diz ter ficado até sete dias sem sentir sono

O “piripaque do Chaves”, contudo, não é o principal problema para os usuários, em particular para aqueles que desenvolvem uso problemático, o que pesquisadores vão entender como uso com “prejuízo pessoal, social e ou sanitário relacionado ao padrão de consumo dessas substâncias”. A reclamação mais frequente é a dificuldade de ter um sono tranquilo.

“Eu não durmo se eu não fumar”, conta Thobias*. Ele fala de ficar, em alguns casos, três ou até sete dias sem sono. Só consegue dormir com o uso do K9 e de outras substâncias. Antes, quando fazia o uso da maconha, tinha uma rotina regular, com os horários de trabalho e da vida pessoal bem determinados. Agora, convive com a indisposição. “O cansaço físico é enorme. Vivo cansado”, relata.

A droga não impacta apenas o sono de quem usa, mas também de quem está mais próximo. Casada há quatro anos com um usuário, Roberta* teve a rotina de descanso alterada desde que o companheiro criou uma relação problemática com o K.

“A gente já chegou a sair de casa de madrugada pra descer na UPA [Unidade de Pronto Atendimento], pra ele tomar remédio, porque a crise de abstinência dele era fortíssima. Hoje, se ele levanta da cama, eu já tenho que ir atrás”, conta.

Segundo o médico psiquiatra e pesquisador da área de drogas Dartiu Xavier, os efeitos de calafrios no corpo, suor e tremedeira estão relacionados a receptores canabinoides existentes no cérebro, alguns com a capacidade de sedar a pessoa. 

“Vamos dizer que esse receptor acaba induzindo o sono. Daí, na hora que não tem mais a droga K, o organismo fala, ‘ué, cadê?’ Então, ele entra em estado de abstinência. Não consegue mais dormir. O mesmo acontece com as pessoas que tomam muito calmante: no dia que param, não dormem mais, porque o organismo se habituou a reagir daquela forma”, explica.

Em alguns casos, nem os sedativos receitados pelos psiquiatras do CAPS são suficientes, conta Francisco. Ele, que costuma tomar oito comprimidos para dormir, relata que isso não resolve o problema do sono todas as noites. “Tem dia que não faz efeito. Muitas das vezes que eu acordo no meio da noite eu tenho que fumar um para voltar a dormir”, relata.

O sistema endocanabinoide

Tanto as drogas K quanto a maconha agem sobre um importante sistema de neurotransmissores do corpo humano, chamado sistema endocanabinoide. Ele é composto por receptores canabinoides espalhados por todo o corpo humano, que podem ser do tipo CB1 e CB2. Os receptores CB1 estão principalmente no cérebro e no sistema nervoso central. Os CB2 estão mais presentes nas células do sistema imunológico, como na figura abaixo:

Arte: Nathalia de Souza/ Alma Preta Jornalismo.

Grosso modo, esse sistema tem como objetivo regular diversas funções do corpo humano, como apetite, dor, controle muscular, qualidade do sono, resposta a estresse, humor e memória. Esses receptores se conectam com enzimas que o próprio corpo produz, chamados endocanabinoides, e com substâncias que são consumidas, como a maconha e os canabinoides sintéticos. O THC da maconha e as diversas substâncias que estão contidas nos canabinoides sintéticos se encaixam nesses receptores endocanabinoides como “chave em uma fechadura”.

Ou seja, as substâncias das drogas K se conectam com os mesmos receptores onde o THC da maconha faz efeito. A diferença é que o THC ativa os CB1 ou CB2 parcialmente, enquanto as drogas K tendem a ativar esses receptores ao máximo, causando efeitos muito mais fortes e danos incomparáveis à maconha. Um estudo de 2020, feito por pesquisadores da Universidade de Coimbra e da Universidade da Madeira, afirma que um canabinoide sintético chamado HU-210, por exemplo, pode ser de 100 a 800 vezes mais potente que a cannabis.

Arte: Nathalia de Souza/ Alma Preta Jornalismo

Outro efeito das drogas K é metabolizar e criar compostos ativos que também atuam nos receptores canabinoides, mantendo seus efeitos de forma duradoura e potente, explica o biomédico neurocientista Renato Filev, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.

“Mas, em geral, não sabemos exatamente os efeitos por não conhecer a composição, nem a concentração de substâncias nas diversas drogas K que se vende. Podem estar associadas duas ou três moléculas presentes no mesmo preparo”, reforça Filev.

A comparação é mais explícita quando se compara a letalidade da maconha e dos canabinoides sintéticos. Nunca houve nenhum registro de morte causada por cannabis no mundo, enquanto muitos países registram mortes por canabinoides sintéticos na última década. Além do Brasil e do Reino Unido, citados anteriormente, na Turquia, 564 pessoas morreram por uso de canabinoides sintéticos só em 2017.

O desequilíbrio causado pelo K também atua na produção de neurotransmissores importantes, como a dopamina. “Por causa da enorme afinidade com os autoreceptores, ela vai promover uma descarga muito grande de dopamina. Isso faz o indivíduo ter sintomas psicóticos, ou seja, ouvir vozes, ver coisas, ficar paranoico, sair da realidade, não saber bem onde está. Ou seja, todos esses sintomas de psicose tem a ver com o efeito agudo da droga, na hora que você está sob efeito dela”, explica Xavier.

O psiquiatra também explica que a droga K afeta também a produção de serotonina, mais relacionada ao prazer, e de noradrenalina, que afeta as dinâmicas do sistema cardíaco e a qualidade do sono.

A maior afinidade do K com os receptores canabinoides e os demais neurotransmissores estimulantes da droga criam uma maior irritabilidade no sujeito e podem provocar espasmos musculares, diz Xavier. “Então é isso que é o ‘piripaque’. Você fica com esses tiques, com esse tipo de reação muscular rápida, que tem a ver com a irritabilidade muscular pelo efeito estimulante da droga”.

Diversidade de composições do K

Apesar de se saber que as drogas K atuam no sistema endocanabinoide, o grande desafio clínico é que drogas K é um nome genérico para um grupo muito heterogêneo e numeroso de substâncias. Mais de 350 canabinoides sintéticos foram mapeados pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime nos seis continentes. Só em São Paulo, 87 canabinoides diferentes foram mapeados entre julho de 2022 e dezembro de 2023, segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.

As diferenças estão para além dos nomes dos produtos vendidos, sob o nome de K2, K4 ou K9. O Denarc entende o K4 como a fórmula vendida em papel, com o K2 e o K9 em ervas, para serem tragados. João*, usuário da substância, contudo, afirma que todas podem ser fumadas, independentemente da composição.

Cartaz informativo sobre Maconha Sintética no Museu da Droga do Denarc, em São Paulo. (Foto: Camila Rodrigues da Silva/Alma Preta)

Toda essa diversidade torna os efeitos da substância imprevisíveis, segundo o psiquiatra Dartiu Xavier. “A gente vai encontrar pessoas tendo efeitos completamente diferentes. Um vai ficar completamente fora de si, o outro vai dormir profundamente, um vai ficar esquisitíssimo, o outro vai ouvir vozes. Não tem um padrão porque a gente não está falando de uma única droga”. Além disso, o corpo e o contexto do usuário também fazem com que uma mesma substância tenha efeitos diferentes nas pessoas.

A diversidade das drogas nas diversas biqueiras e, às vezes, até no mesmo ponto de venda, faz com que os efeitos sejam imprevisíveis a cada uso, conforme discute o artigo “Canabinoides sintéticos: farmacocinética, farmacodinâmica e implicações clínicas e forenses”. João*, por exemplo, tem 17 anos, e conta que não conseguia superar a abstinência de K porque não comprou a droga na mesma biqueira onde costumava frequentar.

Outros efeitos da substância ainda foram relatados para a reportagem, como a redução do apetite. Francisco*, que foi para “Nárnia” e lida com problemas de sono, perdeu cerca de 25 kg desde que começou a usar, em 2021. “Eu pesava 100 kg, hoje eu estou com 75kg. Emagreci de uma tal maneira que é assustador”.

Desenvolvimento de psicose e tentativas de suicídio

Médicos psiquiatras ainda sinalizam para a possibilidade do K influenciar no desenvolvimento de psicose ou esquizofrenia nos usuários. Dados do Hub de Álcool e Drogas, equipamento do governo estadual de São Paulo na região da Luz, sinalizam que 14% dos pacientes atendidos por conta do K apresentam sintomas psicóticos, contra 0,5% das demais substâncias.

“Alguns pacientes chegam com alucinações, delírios, o que pode induzir a um quadro crônico psiquiátrico que a gente chama de esquizofrenia. Os quadros psicóticos também vêm chamando bem a nossa atenção”, diz a psiquiatra do CAPS de São Miguel, na zona leste da capital paulista, Mayara Domingos.

O desenvolvimento da esquizofrenia com o uso do K não está restrito às pessoas com predisposição, conta o artigo “Canabinoides sintéticos: farmacocinética, farmacodinâmica e implicações clínicas e forenses”. O texto ainda aponta que uma das explicações apontadas como motivo para os produtos sintéticos desenvolverem isso mais do que a maconha natural é a ausência de canabidiol nos produtos sintéticos, que atua como antipsicótico e até inibe a intensidade da conexão com os receptores.

O Hub de Álcool e Drogas ainda registra que 15% dos usuários atendidos por conta de uso do K tem risco de suicídio. As tentativas de autoextermínio também têm sido relatadas por funcionários da Fundação Casa. Neemias Souza, agente socioeducativo que hoje preside o Sindicato dos Trabalhadores da Fundação Casa do Estado de São Paulo (Sitsesp), conta que tem sido frequente o relato de servidores sobre essas tentativas, que são influenciadas pela abstinência de K e por outras situações, como a vulnerabilidade social e a restrição de liberdade. 

“De um modo geral, qualquer adolescente é ansioso. Quem usa K, tem essa ansiedade aumentada, e chega ao ponto de muitos deles desistirem da vida”, relata. 

Souza diz também que estão pedindo para o Estado uma capacitação para lidar com esses jovens. “Porque o que a gente faz é segurar para ele não se autoflagelar. Se for pegar aí os boletins de ocorrência que são feitos de autoflagelos, se cortam, se debatem, se batem em alguma coisa para se machucar.” Segundo ele, todas as tentativas de suicídio são registradas em boletins de ocorrência. 

Mais dúvidas do que certezas

Professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, Mauricio Yonamine faz parte de um projeto Investigação de Novas Substâncias Psicoativas em Química e Toxicologia Forense (INSPEQT) que tem como objetivo compreender os efeitos das drogas K no Brasil.

A iniciativa, que envolve a participação de policiais estaduais e universidades, como a USP e a Unicamp, e é estimulada pelo governo federal, já tem quatro anos, mas a variedade crescente de composições faz com que os profissionais tenham mais dúvidas do que respostas.

“Geralmente uma droga não vem sozinha. Às vezes ela vem misturada com outros canabinóides sintéticos, ou inclusive com outras drogas. Já se descobriu, por exemplo, canabinóides sintéticos misturados com cocaína, misturados com THC, que é o próprio princípio da maconha. E vários tipos de mistura, como anfetaminas, enfim. Então essa é a nossa realidade”, diz Yonamine.

A falta de padrão da substância dificulta a identificação das consequências clínicas. “Parece que ainda estamos engatinhando nessa pesquisa”, lamenta o toxicologista.

Esse desafio se deve, entre outras causas, ao fato de que a matéria-prima utilizada para sintetizar a droga não está sempre disponível, apesar de parte dela ser comprada de maneira lícita, como removedores de tinta, e parte ser desviada do sistema de saúde com certa facilidade, como cetamina, fentanil e outros medicamentos de uso restrito, explica Fernando Santiago, delegado do Denarc.

“Não há como determinar o quanto de farmáco aquele traficante terá todo mês e qual tipo de farmáco. Em um mês ele pode ter morfina, em outro mês ele pode ter fentanil… Então essa diferença na aquisição de insumos vai determinar, obviamente, uma diferença tanto da composição quanto do efeito daquela droga”, detalha Santiago.

Uso único em vez de uso combinado

Os efeitos do K moldam os hábitos recreativos das pessoas que desenvolvem uso problemático. Uma delas ocorre com o tempo de uso, quando os usuários que combinam uma série de substâncias deixam todas elas de lado e concentram seu uso apenas no K. Joana*, em tratamento no CAPS São Miguel, fazia uso de cocaína antes do K, situação que logo se alterou.

“Com o tempo, a cocaína foi ficando de lado, eu não sentia mais vontade de usar. Eu sentia vontade só de fumar. Eu troquei o uso da cocaína pelo uso da K9. E fiquei durante quase cinco anos nessa, só fumando”, conta. 

Selma*, que está se tratando em um dos CAPS AD, disse que usava cocaína e álcool mas, quando começou com o K, deixou de usar outras drogas. Esse comportamento é recorrente entre os usuários de K que são atendidos na unidade da Cidade Ademar, segundo a assistente social Pamela Bueno de Souza.

”O que a gente vem percebendo é que alguns até faziam uso de múltiplas substâncias mas, a partir do momento que começam a fazer uso do K, eles perdem o interesse pelo uso de outras substâncias. Então a maior parte do nosso grupo hoje faz uso apenas do K”, avalia.

Isso ocorre porque, segundo estudos toxicológicos, os canabinoides sintéticos fazem com que o corpo crie, rapidamente, uma tolerância à substância. “Se antes a pessoa fumava um ‘beck’ e ficava muito bem, algumas pessoas vão precisar usar mais de um para conseguir aquele mesmo efeito. E esse aumento de tolerância pode fazer com que se desenvolva um uso mais problemático”, descreve Myro Rolim. 

Sem uma gestão cuidadosa, o K logo pode se tornar uma parte problemática do cotidiano.

Políticas de cuidado

A presença das drogas K nos territórios periféricos demanda uma política pública de cuidado, segundo o redutor de danos ouvido pela reportagem. Rolim cita a possibilidade das pessoas levarem as substâncias para centros de saúde, para que se analise os produtos e assim se entenda o perfil da substância.

“Assim a pessoa poderia escolher a forma de uso. Seria um passo gigantesco para que a gente pudesse reduzir danos e mortes no uso da substância”, aponta o redutor de danos.

Os sintomas mais relacionados ao uso abusivo fazem Rubens* rever a relação com a substância. Ele conta fumar o K9 em determinados momentos, em uma intensidade diferente de antes, e prefere manter os cuidados para preservar a vida.

“Tenho que dar valor à nossa vida, porque a nossa vida é uma só. Depois que você morreu, já era, irmão”.

Esta reportagem recebeu o apoio da Fundación Gabo e da Open Society Foundations (OSF)

* Foram utilizados nomes fictícios como forma de manter em anonimato os usuários que deram depoimento para a Alma Preta.

  • Camila Rodrigues da Silva

    Jornalista com mestrado em economia e formação em demografia. Editora e repórter, com quase 20 anos de experiência em redações da grande imprensa e de veículos independentes de comunicação. Atuo na cobertura de direitos humanos desde 2012.

  • Pedro Borges

    Pedro Borges é cofundador, editor-chefe da Alma Preta. Formado pela UNESP, Pedro Borges compôs a equipe do Profissão Repórter e é co-autor do livro "AI-5 50 ANOS - Ainda não terminou de acabar", vencedor do Prêmio Jabuti em 2020 na categoria Artes.

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