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O estigma das drogas K e a violência contra jovens negros

Drogas K têm sido utilizadas como justificativa para reprimir jovens negros das periferias da cidade de São Paulo. A maior parte dos intoxicados são jovens negros da zona leste.
Jovem abordado por segurança privado na estação Itaquera do metrô, em São Paulo

Foto: Jovem abordado por segurança privado na estação Itaquera do metrô, em São Paulo/Imagem: Kananda Nery/Alma Preta

4 de novembro de 2024

Kananda Nery passava em frente ao Shopping Itaquera, na zona leste da capital paulista, quando viu um jovem negro, sob efeitos das drogas K sendo abordado e agredido por um segurança do centro comercial. Depois de reclamar da situação, passou a filmar o fato. 

“Foi uma ação muito violenta, porque o segurança deu várias cacetadas nas costas do adolescente, e o adolescente não tinha forma de defesa, porque estava sob o efeito das drogas K. Ele não conseguia reagir, não conseguia falar, não conseguia andar. O menino poderia ter convulsionado ou ter acontecido algo mais grave”, relata.

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Assistente social do Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS) da Penha, Nery conta que o uso do K na região aumentou nos últimos dois ou três anos, sobretudo no terminal de ônibus do bairro. Ela ainda percebe que o bairro se tornou mais inseguro, com maior repressão policial e privada. “É toda uma preocupação, porque realmente o território de Itaquera sempre foi um lugar de muita violência policial e repressão. Mas agora tem sido muito, muito mais, até por conta da intensificação do uso dessas drogas”, relata.

Apesar de lidar com cenas de repressão, Nery sabe que a violência não é restrita ao bairro, localizado na zona leste da cidade. “A realidade de maior violência contra usuários de K não é uma exclusividade do território de Itaquera, na zona leste da cidade. Muito menos da polícia ou de agentes privados. Sob os efeitos mais agudos do K, jovens têm sido alvos dos mais variados tipos de ataques nas ruas”, afirma.

As experiências de Rubens* com a polícia no centro da cidade nas regiões da Praça da Sé e da Avenida Paulista confirmam esse cenário de violência generalizada. Ele, um jovem negro,  revelou ter sido vítima de truculência. “Passei por situações com a polícia batendo. Uma vez me deram um monte de murro na boca, colocaram um saco de drogas e falaram ‘agora você vai segurar isso aí'”. A suposta situação de ter sido incriminado por policiais resultou no cumprimento de uma medida socioeducativa de três meses na Fundação Casa.

Na região central, onde Rubens relatou ter sido abordado de maneira violenta, a polícia tem uma atuação ostensiva. A ação dos policiais, contudo, não é sempre a mesma, com um tratamento mais cuidadoso para pessoas com outro perfil racial e social, segundo o relato de Trabalhadores da Secretaria de Direitos Humanos da capital.

“A polícia trouxe um menino porque ligou pro Conselho Tutelar, e o Conselho Tutelar pediu para trazer aqui. Mas essa experiência que eu tive também foi com um menino branco de um bairro que não era do centro, ele morava em Perdizes e acabaram encontrando ele no centro”, afirma o psicólogo Glauber Vitorino, do Centro de Referência de Criança e Adolescente em Situação de Rua e na Rua (CRCA), órgão da prefeitura que era administrado pela organização social Sefras. Essa foi a única vez que tiveram esse tipo de interação com a polícia.

O CRCA, que oferecia banho, alimentação e espaço para repouso durante o dia, passou a se chamar Centro de Referência dos Direitos da Criança e do Adolescente (CRDCA) desde meados de julho e não conta mais com esses serviços de convivência. A parte do convívio passou para a casa da SMADS que, segundo fontes do antigo CRCA, deve abrir ainda este ano o Núcleo de Criança e Adolescente (NCA) na região da Bela Vista, no centro da capital.

O tráfico se torna outro risco. Mesmo que vendida em biqueiras na cidade de São Paulo, a recomendação dada por traficantes para os usuários é o de não fazer o uso da substância perto do ponto de venda, sob o risco de serem agredidos. Os efeitos do K chamam a atenção de todos, inclusive da polícia, o que torna a situação ruim para os negócios. 

Estratégias para driblar a repressão

A saída de famílias de usuários ouvidas pela Alma Preta é acolher a pessoa para que o uso seja feito dentro de casa, distante da repressão das ruas. Jonas*, um jovem da região do Tremembé, zona norte da cidade, conta que o uso do K tem de ser distante do ponto de compra, porque existe uma regra estabelecida pelo tráfico. “A gente pega e vai para um lugar seguro”, afirma.

Quem não tem uma casa, como as pessoas em situação de rua, não tem um teto para se proteger. A estratégia, então, é utilizar em grupo. Nos lugares visitados pela Alma Preta, haviam pontos localizados, com usuários agrupados, como uma forma de cuidado compartilhado.

“Você percebe que eles precisam ficar em grupo porque, na maioria das vezes, eles ficam com respostas demoradas, eles acabam perdendo boa parte da percepção sensorial”, conta o psicólogo Lincoln Borges, também do CRCA. 

As mulheres também demandam diferentes métodos de cuidado, para evitarem abusos sexuais, sobretudo nos momentos de maior intensidade do efeito da substância. No CRCA, os redutores de danos tentavam construir uma relação de confiança com os usuários, que permitam o cuidado diante do uso.

“A gente já escutou de adolescente também, de ficar nesse estado de sonolência e acabar sendo abusado sexualmente, principalmente as mulheres. No espaço, a gente foi ganhando um pouco dessa confiança, tempos atrás, de a gente conseguir fazer um uso assistido com eles. A gente consegue chegar com eles ali na calçada, tentar um mínimo de orientação”, relata Pamela Zaparolli, pesquisadora do CRCA.

Maioria dos intoxicados são jovens negros de periferia

Para além das violências diárias, esses mesmos jovens negros são a maioria dos intoxicados por drogas K na cidade de São Paulo e vivem, em sua grande maioria, nos bairros de periferia de todas as regiões. O principal ponto de atenção é a zona leste da cidade.

Das 901 intoxicações de K registradas na Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo apenas neste ano até 22 de outubro, 20,3% vieram da Vila Jacuí e 8,1% de Itaquera, no extremo leste; 8,2% em Pedreira e 6,9% no Jabaquara, no extremo sul; e temos 7,7% na Vila Maria e no Jaçanã juntos, na zona norte.

A assistente social Pamela Bueno, que atua no CAPS II de Cidade Ademar/Pedreira, afirma que o uso do K tem ocorrido principalmente em regiões com baixos indicadores sociais — um exemplo é Cidade Ademar, na Zona Sul, que tem o segundo pior indicador social da cidade, de acordo com o Mapa das Desigualdades.

Arte: Camila Rodrigues da Silva/Alma Preta

“A substância em si nunca vai ser um problema. Mas ela atrelada a outros fatores, como é o caso dessa população que a gente atende, uma população preta, periférica”, diz.

Bueno acredita que a substância faz parte de um contexto de genocídio, de violência contra pessoas negras. “É uma substância que, atrelada a outros fatores, fatores sociais, fatores econômicos, vai gerando esse extermínio, não necessariamente a morte em si, mas como ele vai perdendo os desejos, os interesses, vai deixando de se relacionar, vai deixando de estar vivo”, afirma.

Pesquisadora do É de Lei, Janaína Gonçalves acredita que os relatórios epidemiológicos dão a dimensão de uma parte da situação, não de toda. O uso controlado, com situações de qualidade, permite que outras classes e setores não se intoxiquem e, portanto, deixem de entrar nas estatísticas

“Quem experimentar e gostar, vai gostar, e isso independe de classe, raça, gênero. A questão é que algumas pessoas têm como usar e esconder. Quem está em situação de rua não tem como não relatar. Se ele passa mal, vem um SAMU, pega ele, leva ele pra um posto. Além de que o uso dele é exposto, ele não tá num lugar seguro pra fazer uso”.

Medidas socioeducativas

A repressão policial aliada à falta de interesse em outras atividades da vida, faz com que usuários adolescentes, de periferia, negros acabem internados em unidades da Fundação Casa, em São Paulo, ou precisem cumprir medidas socioeducativa em liberdade assistida nos Serviço de Medida Socioeducativa em Meio Aberto (SMSE). A Alma Preta conversou com funcionários dos serviços e redutores de danos que atendem os adolescentes nesses espaços. 

Na Fundação Casa, as internações podem durar, no máximo, três anos, e os adolescentes são liberados compulsoriamente aos 21 anos de idade. Os trabalhadores da Fundação Casa ficam responsáveis por atender um grupo de adolescentes. Em diálogo com a Alma Preta, um funcionário sinalizou que dos 50 adolescentes que atende, 15 fazem uso problemático de alguma substância.

Pátio de unidade da Fundação Casa. Foto: Gilberto Marques/ MáquinaCW/Governo do Estado de São Paulo.

A superintendente de Saúde da Fundação Casa, Maria Angélica Alves da Silva, afirmou que os funcionários são orientados a usar o Assist, um instrumento de triagem padronizado e indicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para mensurar o nível de dependência de substâncias e o grau de comprometimento que elas trazem para as relações sociais do jovem.

“É um instrumento que serve para identificar o padrão de uso de substâncias e do esgarçamento que a pessoa tenha em outras esferas da sua vida”, afirma Maria Angélica. 

Ela explica que, a partir dessas informações, psicólogos ou outros profissionais fazem o que chamam de “intervenção breve”. “É uma estratégia baseada em técnicas motivacionais, oriunda das terapias cognitivas comportamentais, para trazer para o adolescente as possibilidades que ele tem para parar o uso, quais seriam os ganhos, por exemplo”, explica, esclarecendo que essas intervenções não são tratamento.   

Um dos meninos ficou um ano e meio internado, com o uso problemático de K. Depois de sair do espaço, o rapaz teve uma dificuldade para se reinserir na sociedade, sobretudo sem o uso da substância. O adolescente passou a vender balas em farol para atingir uma autonomia financeira. Um dos locais escolhidos foi a Praça do Jaçanã, um ponto de uso de K na zona Norte da cidade.

“‘Será que não é difícil para você?’ Perguntei. Ele falou. ‘Não, consigo’. Então, não deu outra. Meses depois recaiu. E recaiu complicado. Assim, de ficar 5 dias fora de casa e perder 30 quilos nesse meio tempo”. 

Neemias Souza, presidente do sindicato dos servidores da Fundação Casa, afirma que é necessário construir perspectivas de autonomia para esses adolescentes e jovens. “Eu fico pensando como que é essa questão para trabalhar a autonomia dos meninos. Que é o mais difícil, ainda mais nessa transição da adolescência, que tudo é intenso. Os meninos vão voltar para o local onde eles moram. E aí?”, questiona.

Em alguns casos, o serviço público ofertado parece não ter especialidade para tratar com os desafios que os usuários de K enfrentam, como demonstrado em reportagem da Alma Preta. “O adolescente foi para Fundação Casa e fizeram uma avaliação bem rápida, só que falaram que ele não era dependente. Ele ficou lá, teve suadeira, teve todos os sintomas, mas falaram que ele não era dependente, ele retornou depois de alguns dias dessa internação”. Entre as ausências sentidas está a falta de profissionais psiquiatras para atender os adolescentes.

Estação de metrô Corinthians-Itaquera. Foto: Pedro Borges/Alma Preta.

A superintendente de Saúde da Fundação Casa explicou que, “dentro do princípio da incompletude institucional”, casos como esses são encaminhados para os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Como o K não é uma substância padronizada, a instituição não tem um protocolo específico para atendimento desses usuários – assim como nenhum órgão da Saúde. 

“O que a gente orienta é que, na presença de determinados sinais e sintomas, levar o adolescente para o atendimento da rede [municipal de saúde]. No caso de intoxicação aguda, levar para o hospital ou para o pronto atendimento, onde vão fazer a intervenção voltada para quadro sintomático. Se ele não está numa situação de crise, ele é encaminhado para fazer acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial [CAPS], às vezes dentro do nosso programa de psicoterapia”, explica Maria Angélica.

Há ainda o punitivismo sentido pelos adolescentes que são acompanhados nos CAPS especializados nesse público, que ficam na responsabilidade de manter um diálogo com o Poder Judiciário para avaliar o uso dos internos. “Se for judicializado que há um problema de drogadição, eles só saem daqui [do Sistema de Medida Socioeducativa] quando isso foi resolvido. Mas os meninos não bancam sa questão na casa deles, eles não bancam na escola e, consequentemente, não vão bancar a medida socioeducativa”, lamenta funcionário de um serviço de medida socioeducativa em meio aberto.

Tentativas de suicídio

Souza, do sindicato de servidores da Fundação também relatou que a entidade tem recebido reclamação de agentes socioeducativos sobre o aumento de tentativas de suicídio e autoflagelo nas unidades de São Paulo por conta do uso de drogas K. 

Segundo dados oficiais da Fundação Casa, foram 284 tentativas de suicídio de janeiro de 2019 a setembro de 2024, sendo que 22 adolescentes tentaram mais de uma vez. Três deles morreram nesse período.

Maria Angélica, da Fundação Casa, diz que não é possível afirmar a relação de causa dessas tentativas de autoextermínio com o uso de K ou de qualquer outra substância. Ela diz que nunca houve um estudo para analisar esses casos e, normalmente, a causa dessas tentativas é multifatorial.

“Tem menino que faz cartão SUS quando chega na Fundação. Só aqui vai conhecer o acesso à saúde, à vacina, à escolaridade. Muitos estão evadidos da escola, sem sequer alguém ter investigado o porquê ou ter ido atrás da família. Às vezes sem família, eles vêm de casas de acolhida. Então, há uma série de vulnerabilidades. Alguns já chegam com algum quadro expressivo de transtorno em saúde mental, que pode ser uma comorbidade em relação ao uso de droga”, argumenta.

Guerra às drogas

O redutor de danos Myro Rolim frisa que as drogas K não podem ser entendidas como restritas a um grupo social e que a dinâmica da violência está para além das substâncias, mas do controle social.

“Não é só uma substância da pobreza. Ela é uma substância também de classe média, de meninos brancos, classe média, de apartamento. Só que aí as relações estão de outras formas. Na verdade, o que a gente quer é reprimir e punir a miséria. Então, hoje em dia, as drogas são um dispositivo de controle social”, analisa Rolim. 

Ele, inclusive, contesta qualquer discurso mais alarmista sobre a disseminação da substância. “E aí se cria essa discursividade de que temos uma ‘epidemia das drogas’. No meu ver, e pelo que apontam os estudos, não tem epidemia nenhuma de drogas. O que temos, na verdade, é uma miséria, e as drogas entrando como esse dispositivo de controle”, explica.

Janaína Gonçalves, do É de Lei, conta que, independente das apreensões, pessoas de classe média também fazem o uso do K, como das demais substâncias. 

Ela conta da tentativa de pesquisar o uso do Crack em setores médios e de classe alta, e das dificuldades que encontrou.

“Não é possível que uma substância, por exemplo, tenha preferência de determinada classe. Então, eu fui procurar saber se pessoas de classe média, alta, por exemplo, usavam essa substância. E, sim, usavam, né, eu encontrei várias. Mas eu tive dificuldades. Mesmo tendo um termo de consentimento livre esclarecido, essas pessoas não queriam fazer parte da pesquisa. Elas diziam que tinham algo a perder, né, como se uma pessoa que estivesse em situação de rua, por exemplo, não tivesse nada a perder”, relata Gonçalves.

Esta reportagem recebeu o apoio da Fundación Gabo e da Open Society Foundations (OSF)

* Foram utilizados nomes fictícios como forma de manter em anonimato os usuários que deram depoimento para a Alma Preta.

  • Camila Rodrigues da Silva

    Jornalista com mestrado em economia e formação em demografia. Editora e repórter, com quase 20 anos de experiência em redações da grande imprensa e de veículos independentes de comunicação. Atuo na cobertura de direitos humanos desde 2012.

  • Pedro Borges

    Pedro Borges é cofundador, editor-chefe da Alma Preta. Formado pela UNESP, Pedro Borges compôs a equipe do Profissão Repórter e é co-autor do livro "AI-5 50 ANOS - Ainda não terminou de acabar", vencedor do Prêmio Jabuti em 2020 na categoria Artes.

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