Escritora foi preterida em processo organizado pela Academia Brasileira de Letras, que escolheu o cineasta Cacá Diegues, homem branco, para tornar-se o imortal da cadeira nº 7
Texto / Amauri Eugênio Jr.
Imagem / Ana Maria Gonçalves
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A escritora Conceição Evaristo, 71, não foi escolhida para ocupar a cadeira nº 7 da Academia Brasileira de Letras. O escolhido para se tornar imortal, de acordo com o entendimento da ABL, é o cineasta Cacá Diegues, 78, diretor de filmes como “Tieta do Agreste”, “Bye, Bye, Brasil” e “Orfeu”. Diegues foi contemplado ao posto, anteriormente ocupado pelo também cineasta Nelson Pereira dos Santos, com 22 votos entre 35 possíveis.
De acordo com Marco Lucchesi, presidente da entidade, Cacá Diegues é “um dos mais premiados cineastas brasileiros, cuja obra lança um olhar profundo e generoso sobre nosso país. Crítico refinado, diretor reconhecido além fronteiras. Sua entrada é uma homenagem ao saudoso Nelson Pereira dos Santos, de quem foi amigo, através das novas lentes que ambos construíram para ver mais longe a nossa realidade.”
Aqui vale uma observação: a crítica a seguir não é a Diegues, que tem méritos incontestáveis para chegar ao posto. A questão está relacionada ao modo como intelectuais negros são vistos – convenciona-se a vê-los como intelectuais de segundo escalão.
Em 9 de maio, o Alma Preta publicou nota relativa a uma campanha online que pedia a inclusão de Conceição Evaristo no rol de imortais da Academia Brasileira de Letras. À época, um dos aspectos citados no manifesto, que contou com 22,6 mil assinaturas, usou uma citação da escritora sobre a representação de mulheres negras na literatura:
“A literatura brasileira, desde a sua formação até a contemporaneidade, apresenta um discurso que insiste em proclamar, em instituir uma diferença negativa para a mulher negra. A representação literária da mulher negra ainda surge ancorada nas imagens de seu passado escravo, de corpoprocriação e/ou corpo-objeto de prazer do macho senhor. Interessante observar que determinados estereótipos de negros/as, veiculados no discurso literário brasileiro, são encontrados desde o período da literatura colonial.”
Enfim, Conceição Evaristo continuará a ser Conceição Evaristo, enquanto a Academia Brasileira de Letras continuará a ter apenas cinco mulheres brancas e 35 homens brancos – logo, não há nenhuma mulher negra. A ABL perde a chance de democratizar a intelectualidade em âmbito sociorracial. Em resumo, a ABL perde por se manter em uma bolha pautada pelo modus operandi de um grupo racial, ao passo que Evaristo pode ser considerada imortal com ou sem a entidade em questão.
Efeito Lima Barreto
Lima Barreto (1881-1922), autor do clássico “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, sentiu na pele inúmeras vezes o racismo dentro do ambiente tido como intelectual.
Tanto que, não raras vezes, havia relatado as dificuldades em ser negro em uma sociedade que havia saído pouco tempo antes de sistema escravocrata – mas, ainda assim, pautado pela política racista em sentido amplo. Isso o levou a relatar em seu diário, em 1908, que era triste não ser branco – triste conclusão, afinal.
A prova cabal disto foi o fato de ter sido preterido por três vezes ao posto de imortal na Academia Brasileira de Letras. Ele considerava que a entidade era composta por “diplomatas chics”, em clara crítica ao viés elitista da instituição, o oposto em relação à essência de sua obra.
Ainda que tenha sido ignorado pela Academia Brasileira de Letras, o viés combativo e progressista de sua obra tornou Lima Barreto imortal. Ou seja: é possível ser imortal independentemente de nomeações e de lugares na ABL. Ser disruptivo e socialmente relevantes são características tão importantes, ou até mais significativas, para tornar-se um(a) imortal.
A cor do conhecimento
Volta e meia, o potencial intelectual de pessoas negras é subestimado, ainda que se trate de alguém notoriamente brilhante – Conceição Evaristo, por exemplo.
O Alma Preta publicou, em 30 de maio, a reportagem “Por que a intelectualidade negra não é reconhecida?”, na qual André Luís Santana, diretor de Comunicação do Instituto Mídia Étnica, coordenador do Portal Correio Nagô e professor da Uneb (Universidade do Estado da Bahia), falou a respeito do tema.
À época, Santana destacou que a subjugação intelectual de pessoas negras consistia em sistema de dominação por meio do qual eram promovidas desqualificações em âmbitos intelectual e enquanto povo, ao privar a população negra do acesso a oportunidades e recursos sociais diversos. Logo, esse formato de discriminação interferiu até mesmo no modo como pessoas negras se veem.
“Isto nos fez, por muito tempo, estarmos ausentes de espaços de produção de conhecimento e de legitimação do que é o saber, como a academia, a própria ciência e universidades. Isso mudou a partir do momento em que a população negra percebeu que era importante entrar nesses espaços e lutar por isso.”
Ainda, esse tipo de premissa condicionou pessoas pretas e pardas a se verem como coadjuvantes em âmbito antropológico, ou seja, alguém sobre quem sempre se fala em vez de ser sujeito agente. “A partir do momento em que ele adentra a ciência e pode falar de si próprio, deixa-se um espaço de disputa até hoje”. Com isso, o conhecimento criado por pessoas negras tende a ser colocado constantemente à prova de modo contínuo.