PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

O sonho do meu menino era o mar

Luciana Guimarães, mãe de jovem morto por policiais militares na Gamboa, conta a história do filho que tinha o sonho de morar na comunidade cercada pela Baía de Todos-os-Santos
Imagem mostra um jovem negro de boné amarelo. Atrás dele, tem um mar rodeado por casas da comunidade da Gamboa

Cléverson Guimarães tinha 22 anos quando foi morto por PMs no bairro da Gamboa, em Salvador

— Arquivo Pessoal

26 de janeiro de 2025

Em uma viela estreita na Rua 24 de Fevereiro tento encontrar a comerciante Luciana Guimarães em meio à competição dos ambulantes por clientes nas escadarias da Estação da Lapa, no centro de Salvador. Atrás de uma caixa de isopor, avisto a mulher de olhar cabisbaixo que me esperava para contar a história do seu filho, Cléverson Guimarães, um dos três jovens assassinados por policiais militares da Bahia na comunidade da Gamboa em 1º de março de 2022.

A comerciante cede um banco de plástico para me acomodar — como quem já estava à espera de uma visita em casa — e começa a responder a minha primeira pergunta: “Qual a história dele?”.

Quer receber nossa newsletter?

Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!

“Era uma joia de menino”, define a mãe.

Quando foi morto, Cléverson tinha 22 anos. Ele era o mais velho dos três filhos de Luciana — que também tem um adolescente de 16 anos e uma filha de 23 anos, atualmente.

Ainda criança, Cléverson começou a ajudar a mãe como camelô e na venda de sorvetes. Lig, como era conhecido, tinha pressa de ser gente grande e quando adolescente abriu a própria guia de ambulante.

Queria ser independente e batia pé firme com a mãe: “Quando crescer, eu vou comprar uma casa na Gamboa”.

“Era um sonho que ele tinha desde pequeno. Ele era apaixonado pelo mar. Gostava dessa Gamboa. Quando saia do colégio, ele ia para lá porque gostava de ficar pulando de uma ponte, se jogava de cabeça. Eu achava que era coisa de adolescente, mas com o passar do tempo ele foi morar lá”, relembra a mãe.

Cléverson em uma praia da Gamboa, região margeada pela Baía de Todos-os-Santos | Foto: Arquivo Pessoal.

Quando o sonho se tornou pesadelo

Na madrugada do dia 1º de março de 2022, os policiais militares Tárcio Oliveira, Thiago Leon e Lucas dos Anjos assassinaram Cléverson e mais dois amigos, Patrick Sapucaia, de 16 anos, e Alexandre Reis, de 20 anos.

Testemunhas contam que os jovens voltavam de uma festa e não portavam armas nem drogas. Já a versão dos policiais é de que houve uma troca de tiros no local.

Depois de serem baleados nas escadarias, os corpos dos jovens foram arrastados pelos policiais para dentro de uma casa abandonada na Gamboa.

Os gritos e pedidos de socorro que ecoaram pela comunidade naquela madrugada não foram suficientes para que os agentes deixassem de concretizar o crime.

Cléverson foi encurralado em um quarto e dois tiros disparados pelo PM Thiago Leon deram fim ao sonho do jovem.

“O menino já estava rendido, de frente, e ele foi lá e atirou de metralhadora. Tinha necessidade disso? Levasse para a delegacia, deixasse lá. E eles agiram como se fossem os juízes. Ele determinou naquele dia ‘vai morrer hoje’ e matou”, desabafa a mãe de Cléverson.

O PM Tárcio Nascimento disparou quatro tiros em Alexandre Reis, sendo um no tórax e os outros três que perfuraram o fígado da vítima. Já o PM Lucas Bacelar matou o adolescente Patrick Sapucaia, de 16 anos, com dois tiros — um no tórax e outro na lombar.

Os policiais são réus por homicídio qualificado por motivo torpe e fraude processual.

Nenhum dos jovens tinha partículas de chumbo nas mãos, o que indica que eles não apertaram o gatilho de suas supostas armas.

Duas das três armas que os policiais disseram ser dos jovens não tinham condições de disparo. A perícia também não encontrou substâncias ilícitas e álcool no sangue das vítimas.

Cléverson foi torturado um ano antes

Segundo o laudo cadavérico, o corpo de Cléverson tinha sinais de execução, já que um dos tiros que o policial Thiago Leon disparou foi de cima para baixo. Ou seja, possivelmente quando o jovem já havia se rendido.

Um ano antes do assassinato, em 16 de março de 2021, o mesmo policial torturou Cléverson.

Durante a madrugada, policiais teriam invadido a casa dele e o levaram.

Os PMs poderiam ter encaminhado o jovem para a 1ª Delegacia dos Barris, próxima de onde morava, mas a mãe só o encontrou na 5ª Delegacia Territorial de Periperi, bairro do Subúrbio de Salvador.

A unidade fica a quase 17 quilômetros de distância da região do Centro de Salvador.

Distância entre a Gamboa, localidade onde Cléverson morava, e a 5ª Delegacia de Periperi, no subúrbio de Salvador | Foto: Reprodução/Google Maps

“Ele me relatou que os caras ficaram dando voltas com ele. Torturaram, ameaçaram o tempo todo atrás de um dinheiro. Não sei que dinheiro era esse. Ele estava todo roxo porque bateram nele com cassetete. Eles viram que ele não tinha nada e o entregaram na delegacia”, comenta Luciana.

O exame de lesões corporais anexado ao processo sinaliza que não foi possível evidenciar “lesões corporais, macroscópicas e recentes” em Cléverson.

No entanto, o documento também ressalta que o “perito não reuniu elementos para afirmar ou negar” se as possíveis lesões resultaram ofensa à integridade corporal ou à saúde do jovem.

Boletim de Ocorrência

Com passagens por dano e tráfico de drogas, sendo a maioria em varas de Infância e Juventude, Cléverson já era uma figura conhecida pelo PM Thiago Leon em, ao menos, uma das vezes em que foi detido.

No boletim de ocorrência registrado em março de 2021, ao qual a Alma Preta teve acesso, consta o número da viatura, além dos nomes dos três policiais que levaram Cléverson para a delegacia, incluindo Leon.

A versão dos agentes é de que eles circulavam pela região da Gamboa quando “vários indivíduos” saíram correndo ao perceberem a presença deles.

Eles relataram ainda que alcançaram Cléverson em uma escadaria perto da praia e que ele tentou jogar fora 125 pinos com cocaína, 23 trouxas de maconha, dois cartuchos de munição e um caderno de anotações.

Em nenhum momento os policiais explicaram porque apresentaram Cléverson em uma delegacia distante do local onde ele foi apreendido.

Em depoimento, Cléverson negou o crime e disse que estava em casa dormindo quando ouviu um barulho e, ao sair, se deparou com um saco de drogas, que tentou jogar na praia quando viu os policiais.

Depois, ele informou que tentou jogar as drogas no vaso sanitário de casa e que nunca tinha visto o material antes.

Quando invadiu a casa de Cléverson, testemunhas relatam que Leon teria dito que levaria o jovem em um lençol.

Quase um ano depois, o PM cumpriu a ameaça.

“O meu sentimento é de inutilidade, de mãos atadas, porque você vê que aconteceu uma coisa dessa do policial fazer com um jovem o que ele fez com aqueles meninos e até hoje nada”.

“A gente está até hoje esperando resposta. Eu espero que um dia possam chegar até mim e dizer: ‘Foi feita a justiça’, completa Luciana.

‘Minha vida virou um inferno’

A morte do jovem abriu feridas psicológicas em toda a família.

O irmão mais novo dele, diagnosticado com TDAH (Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade) e TOD (Transtorno Desafiador Opositivo), teve sintomas de agressividade agravados após a morte de Cléverson.

“Isso significa que ele bate de frente e é revoltado com polícia. Ele quer ver o cão na frente dele, mas não quer ver um policial”, relata Luciana.

Certa vez, o adolescente fugiu de casa para ir na Gamboa na esperança de encontrar o irmão preferido.

“Ele disse que o irmão queria que ele fosse morar na Gamboa e fica com esse negócio de Gamboa na minha cabeça. Minha vida virou um inferno”, completa.

A filha do ‘meio’ de Luciana, de 23 anos, entrou em depressão.

Dona de uma loja de mochilas na mesma rua onde a comerciante tem uma barraca, a jovem chegou a se afastar do trabalho.

“Virou uma menina deprimida porque não aceita o que fizeram com o irmão dela. Ela diz: ‘minha mãe, fizeram com o meu irmão como se ele fosse um bicho, como se ele tivesse feito algo para merecer isso aí. E mesmo que tivesse feito, ninguém merece isso'”, lamenta Luciana.

“Todo mundo ficou com depressão. Meu marido é aquela pessoa que não demonstra, mas por dentro só ele quem sabe”, conta.

Chefe de família, Luciana ficou 5 meses sem trabalhar depois do assassinato e passou a tomar antidepressivos. Sentiu o olhar de preocupação dos familiares por causa do seu histórico de depressão.

“Tive que tomar remédio controlado, fazer terapia, porque eu tinha sensação de perseguição. Eu olhava para o lado e, para mim, eles [os policiais] estavam me seguindo”.

Futuro (?)

Nesse meio tempo, também teve que enfrentar os desafios de ser avó de uma criança que perdeu o pai para a violência policial. Quando Cléverson morreu, a neta tinha apenas 4 anos.

“Um dia ela chegou lá em casa e me perguntou: ‘minha avó, porque a polícia matou meu pai?’ E aí você vai explicar o quê para uma criança? Essas coisas acabam com a vida das pessoas, com os sentimentos, expectativa de vida. Ver a minha neta crescer sem o pai e saber que ele morreu de uma forma tão indigna, cruel, é terrível”.

Há dois anos, Luciana ainda grava na memória a frase que o policial teria dito ao seu filho: “Você vai sair daqui no lençol”.

“Acho que eu vou morrer e, no dia da minha morte, eu vou estar com isso na minha mente”, reflete.

Para o futuro, a comerciante, mãe de três filhos e avó só tem um pedido: “Esperamos justiça”.

“Eles não têm o direito de usar a farda deles, de usar o distintivo. Eles têm que pagar pelo que fizeram”, brada.

Apoie jornalismo preto e livre!

O funcionamento da nossa redação e a produção de conteúdos dependem do apoio de pessoas que acreditam no nosso trabalho. Boa parte da nossa renda é da arrecadação mensal de financiamento coletivo.

Todo o dinheiro que entra é importante e nos ajuda a manter o pagamento da equipe e dos colaboradores em dia, a financiar os deslocamentos para as coberturas, a adquirir novos equipamentos e a sonhar com projetos maiores para um trabalho cada vez melhor.

O resultado final é um jornalismo preto, livre e de qualidade.

  • Dindara Paz

    Baiana, jornalista e graduanda no bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade (UFBA). Me interesso por temáticas raciais, de gênero, justiça, comportamento e curiosidades. Curto séries documentais, livros de 'true crime' e música.

Leia mais

PUBLICIDADE

Destaques

Cotidiano