Você sabe o que é ser uma pessoa intersexo? Para muitos, a palavra pode ser novidade, mas existe uma data para justamente tirar da invisibilidade o termo que se refere à condição biológica do corpo em que as características sexuais não se associam à construção do modelo binário de feminino e masculino. O Dia da Visibilidade Intersexo, comorado nesta terça-feira (26), representa mais uma oportunidade para entender melhor o tema e a luta por mais direitos para pessoas intersexo.
Apesar de ser colocado como uma condição rara, no Brasil, estima-se que um a cada 1.200 nascidos são intersexo. Os números, no entanto, podem estar defasados, já que alguns casos os intersexos só são identificados através de exames ou nunca são descobertos. A condição intersexo pode se expressar nas variações dos cromossomos sexuais com o sexo biológico ou em alterações hormonais. Por exemplo: uma pessoa pode nascer com a genitália externa feminina, mas ter aspectos reprodutivos masculinos (testículos), assim como uma criança pode nascer com uma ambiguidade genital, quando se apresenta características biológicas dos dois sexos ou quando não é possível identificar a formação de ambos. Esses são apenas alguns dos exemplos, já que existem mais de 40 estados de variação intersexo. Vale ressaltar que intersexo se refere a uma condição biológica e difere de orientação sexual (lésbicas, bissexuais) e de identidade de gênero (trans, travesti, cisgênero).
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O desconhecimento, a falta de informação e os estigmas em volta das pessoas intersexos se tornam um agravante também quando se trata dos procedimentos cirúrgicos feitos em crianças, que têm o seu sexo “moldado” para um gênero socialmente construído. Foi o que aconteceu com a ativista e cientista social, Carolina Iara de Oliveira (@acarolinaiara), eleita a primeira covereadora travesti e intersexo do país pela Bancada Feminista do PSOL-SP. Assim que nasceu, foi submetida a sucessivas cirurgias. Em entrevista à Alma Preta, Carolina diz que só soube que os procedimentos estavam relacionados ao intersexo quando adulta. Mesmo após anos, ela ainda carrega traumas das mutilações a que foi submetida.
“Foi um choque pra mim: senti como se minha história tivesse sido roubada, e meu direito de ser fosse uma mentira”, conta a covereadora, que junto com a Bancada Feminista, articula a apresentação de um projeto de lei para a criação do Dia da Visibilidade da Pessoa Intersexo em São Paulo.
“Há um grande projeto de apagar a intersexualidade, porque ela coloca em cheque a naturalidade do sistema de sexo-gênero de homens e mulheres que alimenta o patriarcado e a reprodução social do capitalismo”, avalia a covereadora.
Leia também: Primeira covereadora intersexo eleita no país, Carolina Iara sofre atentado
Por romper com os modelos de gênero socialmente construídos, a questão intersexo passa por uma confusão dos conceitos de sexo e gênero e é tratada sob a ótica do preconceito e de múltiplas violações, principalmente a violação física, através de cirurgias e procedimentos hormonais em busca de uma “readequação” que atenda à expectativa do binarismo (masculino/feminino), como diz a psicopedagoga e presidente da Associação Brasileira de Intersexos (ABRAI), Thais Emilia de Campos (@thaisemiliasantos).
“A nossa sociedade registra gênero (masculino e feminino) e a questão intersexo se trata do corpo sexuado, no sentido de um corpo biológico, porque são variações das características biológicas, não são questões de gênero […] A gente tem um país que impõe gênero em todas as pessoas. Essas questões passam pelo atravessamento da confusão dos conceitos de sexo e gênero”, explica a especialista.
A covereadora Carolina Iara critica o discurso médico que trata as pessoas intersexo como impossibilitadas de viverem um desenvolvimento pleno e defende que as famílias mantenham um diálogo para que as pessoas intersexo sejam vistas como sujeitos capazes de fazer as suas próprias escolhas.
“O ideal, por outro lado, seriam que as famílias, ao perceber que seus filhos e filhes são intersexo, procurassem centros de atendimento que não indicassem de cara a cirurgia precoce (aqui em São Paulo há o núcleo da UNIFESP), e esperassem a criança crescer pra decidir qual vai ser seu gênero e mais, como quer que seu corpo seja. Na adolescência, em geral, ela já estará mais pronta pra falar sobre suas vontades corporais e de identidade. Claro que não sou contra todas as cirurgias, há casos específicos que necessitam de intervenções no trato urinário por exemplo, mas não devemos usar isso para escolher o sexo dessas crianças sem a participação delas no processo”.
Para a presidente da ABRAI, é preciso que a visibilidade intersexo seja discutida e que as famílias adotem uma educação sem expectativa de gênero, dando autonomia às crianças intersexo sobre os seus corpos.
“Não teria impacto ser intersexo se a sociedade em que a gente está inserido compreendesse, aceitasse e conhecesse – porque na verdade ela não conhece a existência dessas variações e de corpos intersexo. Se a gente não tivesse uma biologia tão centrada em padrões de corpos binários não seria um problema […] A gente tem visto possibilidades muito interessantes de famílias que têm educado no sentido da criança crescer sabendo da sua real condição biológica e ter uma participação ativa nas consultas. Tudo isso empodera e diminui a vulnerabilidade”, sugere.
‘Eu ignoro a sua existência para não desestruturar a sociedade binária’
Desde o dia 12 de setembro, uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) trouxe à tona a urgência de se reconhecer pessoas intersexo para o acesso a direitos fundamentais, como a sua autoidentificação. Segundo a determinação, os pais de crianças intersexo não precisam mais de autorização judicial ou apresentação de laudo médico e psicológico para conseguir retirar a certidão de nascimento, podendo as crianças serem identificadas como sexo “ignorado”.
A psicopedagoga Thaís Emilia teve que enfrentar dois meses de burocracia para conseguir retirar a certidão de nascimento do filho Jacoby, que nasceu intersexo. Frente à ABRAI, a especialista também atuou para a elaboração da resolução. No entanto, diz que o uso do termo “ignorado” é uma forma de excluir as pessoas intersexo das políticas públicas.
“Optaram pelo termo “ignorado”, apesar da gente ter participado da luta pelo termo “intersexo”, porque o impacto que tem é que não há políticas públicas para quem é “ignorado”, como diz a advogada Mônica Porto [presidente da Comissão LGBTQI+ da OAB/SE], e ser intersexo continua sendo uma complexidade que a pessoa passa que continua sendo ignorada”, pontua a especialista que traduz a resolução como: “Olha, eu ignoro a sua existência, ignoro o seu corpo, ignoro tudo o que você passa para que os outros não fiquem sabendo que vocês existem e não venham desestruturar essa sociedade binária”.
Já para Carolina Iara, a resolução representa um avanço na desconstrução de sexos impostos. Para além das discussões, Carolina ressalta que também é preciso que haja políticas públicas que garantam a existência das pessoas intersexo.
“Mesmo que o ideal fosse o termo ser “intersexo”, em vez de “ignorado”, considero que o CNJ derrubou um dos principais argumentos das pessoas que defendem a cirurgia precoce: que sem a escolha do sexo a pessoa não teria direito a nada, nem a registro civil. Com isso, conseguimos avançar aos poucos o entendimento de que para se ser humano e ter direitos na sociedade não precisa ter um sexo especificado, de homem ou de mulher, mas só a própria existência do ser já deve garantir o registro civil. É muito positivo, portanto, o que conseguimos. Agora, a partir disso, devemos lutar para que no SUS (Sistema Único de Saúde) exista uma política de atenção integral a saúde de pessoas intersexo, que haja uma lei para o uso de banheiros de crianças, adolescentes e jovens intersexos nas escolas e das pessoas adultas nós espaços públicos, e também políticas públicas afirmativas que ajudem na empregabilidade de pessoas intersexo e a diminuição do preconceito e estigma”, conclui.