“Eu procurei as delegacias de polícia para me sentir acolhida depois de ter sido agredida pelo meu ex-marido. Saí de lá pior do que entrei. Nunca pensei que poderia ser tão maltratada mesmo estando toda cheia de machucados. Meu ex me machucou por fora, mas os policiais da delegacia me feriram por dentro”.
O relato da recepcionista e estudante de pedagogia Adriana Silva* comprova as estatísticas de violência e violações de direitos humanos em delegacias de polícia de todo o Brasil. De janeiro a março de 2021, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) contabilizou 92 denúncias sobre o assunto. Já no mesmo período de 2022, o número cresceu para 119, sendo as mulheres negras as principais vítimas.
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
Adriana conta que procurou duas delegacias para denunciar a agressão que sofreu em fevereiro deste ano. Casada há quatro anos, a recepcionista era frequentemente xingada pelo ex-companheiro, que a ameaçava de morte e dizia que ela nunca conseguiria fazer com que alguém acreditasse na sua história.
“O delegado fez eu me sentir do jeito que ele [ex-marido] falava. Fez perguntas descabidas, riu, debochou, e ainda falou que eu deveria passar uma maquiagem para cobrir os hematomas do rosto porque eu já era feia, machucada ficava pior. Eu me senti humilhada”, desabafa.
Na ocasião da denúncia, o ex-marido da estudante de pedagogia partiu para a agressão física após uma discussão entre o casal. Ele proferiu golpes no rosto da vítima, o que gerou cortes em sua boca e pálpebras. Incentivada por conhecidos, Adriana foi à delegacia do bairro em que mora. Lá, os agentes a encaminharam para o posto policial da região central da cidade*.
No entanto, ao chegar na delegacia em questão, Adriana relembra que foi mal atendida desde o primeiro momento. Ao ser chamada para depor, ainda sangrando devido aos machucados, ela conta que o escrivão e o delegado passaram a debochar da sua condição.
“Perguntaram se eu anotei a placa do caminhão que me atropelou, rindo muito da minha situação. Daí começaram as perguntas estúpidas, do tipo: ‘o que você fez para irritar ele assim?’ Ou ‘estava de roupa curta, maridão não gostou e te arrebentou na porrada. Vocês [mulheres] parecem que gostam de tirar homem do sério’. Eu fiquei extremamente constrangida e comecei a chorar”, lamenta a recepcionista.
De acordo com os dados do MDH, as agressões contra mulheres e violações de direitos humanos em delegacias vêm – na maioria dos casos – do delegado, de um policial civil, escrivão, e/ou advogado. Das 119 denúncias registradas em 2022, em 110 vezes o suspeito se enquadrava nestas profissões e era um homem branco, hétero, cisgênero, de idade entre 35 e 44 anos.
O que o aumento de casos representa?
A advogada e pesquisadora do Projeto Gênero e Drogas do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), Cátia Kim, pontua que o aumento de casos de violência e violações de direitos humanos em delegacias de polícia demonstra que a equipe – que deveria acolher as vítimas – está despreparada para compreender a complexididade das denúncias, principalmente no que tange gênero, classe social e raça. Às vezes, de acordo com a jurista, até mesmo testemunhas da violência são vítimas, causando medo em testemunhar a favor da pessoa agredida.
“Significa dizer que não há um procedimento institucionalizado de preparação, sensibilização, de criação de empatia e até mesmo de vínculos com essas pessoas [vítimas]. No caso das mulheres que passam por situações de violência, elas chegam às delegacias e passam por outros processos de violência”, pondera a pesquisadora.
As informações do MDH mostram que as vítimas de violência nas delegacias até março deste ano eram 47,9% mulheres, 41,18% homens, sendo que em 10,92% dos casos a vítima não declarou gênero.
A composição racial das vítimas das 119 denúncias registradas é a seguinte: 31 mulheres e 21 homens pardos; 13 mulheres e 13 homens brancos; 3 mulheres e 8 homens pretos, 2 mulheres amarelas e 1 homem indígena. Ou seja: a população negra (soma de pretos e pardos) é a mais prejudicada – com 63 casos registrados, sendo 34 violências contra mulheres negras.
Para Fayda Belo, pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal, advogada criminalista especialista em crimes de gênero, Direito Antidiscriminatório e Feminicídios, é necessário ressaltar que as mulheres não negras sofrem com a discriminação referente ao gênero, o que é diferente do caso das mulheres negras.
“A mulher negra sofre com a discriminação de gênero, que é vivida por toda mulher, a discriminação de raça, por ser negra, e a discriminação de classe, onde se encontram as pessoas mais vulneráveis. Acumulando o fato da ausência de representatividade nesses espaços [delegacias] o resultado é uma diária revitimização dessa mulher”, analisa a especialista.
Tipos de constrangimento
A pesquisadora e advogada Cátia Kim explica que existem diversas formas de constranger uma vítima – em especial, mulheres – durante o atendimento nas delegacias de polícia. Ela destaca que a partir de sua experiência, é comum que os agentes de polícia ajam de forma que a vítima se sinta culpada pela violência que sofreu.
“Ela ser uma mulher negra, ou gorda, ou ser dependente do companheiro ou do agressor, fazer uso de álcool ou outras drogas, estar em situação de rua. Vários fatores que ocorrem na vida desta mulher – até reflexos da sociedade em que ela está inserida – são usados contra ela durante a colheita desta denúncia“, enfatiza.
No estudo da violência de gênero institucional, segundo Fayda Belo, este processo é chamado de revitimização, que ocorre quando de alguma forma há a tentativa de culpabilizar a vítima pelo fato ocorrido. Segundo a jurista, isso acaba por desencorajar a mulher a seguir com a denúncia. Ofensa à honra desta mulher, quando se trata de crimes sexuais, também ocorrem frequentemente, de acordo com ela.
“Perguntam à mulher como ela vai viver se o marido for preso, como ela vai explicar para os filhos que mandou prender o pai deles, o que ela fez para que fosse agredida e, em crimes sexuais, há relatos de que perguntam a roupa que ela estava usando, se ela realmente não queria a relação sexual ou ainda, se for caso de importunação sexual, como um beijo roubado por exemplo, dizem que é uma bobeira que não deve ser levada a sério”, destaca.
Fayda Belo ressalta que, no que diz respeito aos crimes sexuais contra mulheres negras, ocorre também a objetificação do seu corpo nas delegacias. “A violência institucional é ainda maior neste caso. Chegam a desacreditar que a mesma realmente é uma vítima”, argumenta.
Adriana Silva, vítima de agressão que procurou respaldo nas delegacias de polícia, conta que o que Fayda Belo destaca condiz com a sua realidade. De acordo com ela, a agressão física se deu por ela ter negado ter relações sexuais com o companheiro, fato que desencadeou a discussão.
“Eu estava muito cansada e ele [ex-marido] veio tentar forçar a relação e eu disse que não queria. Daí ele ficou bravo, disse que era minha obrigação de esposa, mas eu não sou obrigada a transar com alguém que me trata mal. A discussão esquentou e ele veio pra cima de mim. Tentei me defender, mas ele é bem maior que eu”, relata a recepcionista.
“Na delegacia, o escrivão disse que isso teria sido evitado de maneira simples, era só ‘dar para o cara’. Já o delegado falou ‘tá vendo o que a sua frescurinha causou no seu rosto?’. De verdade, eu me senti ao mesmo tempo revoltada, culpada e muito constrangida”, lamenta Adriana.
O MDH ainda disponibiliza uma nuvem de palavras a respeito da motivação das agressões sofridas nas delegacias de polícia. Dentre os motivos estão as palavras “sexo” e “mulher”.
Ainda sobre os casos de violência e violações de direitos humanos em delegacias, a pasta destaca que dos 119 casos, dois foram contra pessoas portadoras de doenças raras; 17 contra pessoas com deficiência intelectual; 11 contra pessoas portadoras de deficiência física e/ou motora, três contra pessoas deficiência visual e um, auditiva.
Como proceder
A advogada e especialista Fayda Belo explica que caso uma pessoa seja vítima de violência em delegacias de polícia é necessário denunciar este caso à corregedoria e também ao Ministério Público da região que a vítima reside.
“Importante ressaltar que essa violência institucional é crime e está elencada como tal na Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13869/19), em seu artigo 15-A, na qual proíbe que que as vítimas sejam submetidas a procedimentos invasivos que a fazem reviver a situação de violência ou que gerem sofrimento, podendo esse servidor público receber uma pena de até um ano de detenção”, explica.
Segundo ela, se esse servidor público permitir que um terceiro intimide ou revitimize a vítima, a pena é aumentada em 2/3, e se for ele próprio que intimidar a vítima – gerando a revitimização – a pena é aplicada em dobro.
“Vale lembrar que o art. 92 do Código Penal traz entre os efeitos da condenação – punição além da pena de prisão –,a perda do cargo ou função pública quando o crime for praticado com abuso de poder ou violação do dever para com a Administração Pública. Já o art. 91 cita a obrigatoriedade de indenizar a vítima o dano causado pelo crime”, ressalta.
Medo
De acordo com o estudo “Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher — 2021”, realizado pelo Instituto DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência, 75% das vítimas não denunciam as agressões domésticas por medo. Cátia Kim pondera que esse medo se estende também ao tratamento que as vítimas irão receber nas delegacias. “Existe este justo receio de represálias”, salienta.
É o caso de Adriana Silva. Depois do constrangimento que passou ao tentar denunciar as agressões cometidas por seu ex-companheiro, a vítima desistiu de levar em frente o caso, por medo de piorar a situação com o agressor e de sofrer mais violência por parte dos agentes da delegacia.
“Eu tinha esperança, sabe? De que poderiam fazer algo por mim. Mas quando o deboche deles se tornou insuportável, simplesmente me levantei e fui embora. Nunca mais quero ter que pisar em delegacias de polícia. Não vou mais denunciar meu ex, não vou denunciar o delegado e o escrivão”, lamenta.
“Só quero virar essa página e esquecer tudo. Até porque tenho medo de arrumar mais problemas para mim. Tenho medo de denunciar e o delegado vir atrás de mim. A minha vontade é apenas sumir. Estou contando meu relato com medo, mas para que outras pessoas saibam que é isso que acontece quando uma mulher negra tenta denunciar violência: ela é humilhada”, completa a vítima.
No cenário “delegacias de polícia”, o MDH que as denúncias de violações de direitos humanos e violência contra a mulher se resumem em: ameaça à integridade, à liberdade, aos direitos sociais, direitos civis e políticos e à vida. Ao todo, com as 119 denúncias no primeiro trimestre de 2022, a pasta contabilizou 429 violações de direitos humanos.
Atenção e importância dos canais de denúncia
Quem denunciou os 119 casos ocorridos nas delegacias de polícia, de acordo com o MDH foram: em 67 casos, a própria vítima; em 44, terceiros; sete casos de denúncia anônima, e uma pessoa em sofrimento psíquico.
Das ocorrências no primeiro trimestre de 2022, 86 não apresentavam risco de morte da vítima, dois casos de risco iminente e 31 ocorrências foram registradas em situação de flagrante. O canal que mais recebeu relatos foi o Disque Denúncia, com 105 ocorrências registradas no período.
Cátia Kim pondera ainda que o interesse do governo em retomar o atendimento às vítimas de violência em delegacias de polícia comuns pode ser preocupante. Ela argumenta que as delegacias especializadas em defesa da mulher são resultado de muita luta de movimentos feministas e de direitos humanos, justamente por que antes ocorriam muitas violências nesses espaços convencionais, portanto, levar essas denúncias para canais comuns de registro pode desencorajar a prática da denúncia.
“Em tese, ter mais delegacias e canais de atendimento às mulheres é positivo para se ter mais espaços para colheita de denúncias, mas, como a realidade vai contra o sentido de atendimento acolhedor, que compreenda a situação daquela mulher, e não a deixe em um contexto de constrangimento e de revitimização, eu vejo com uma certa preocupação esse cenário e é importante estar atento”, considera.
Fayda Belo, por sua vez, avalia que não é razoável que uma mulher que tenha sido vítima de um crime passe por mais constrangimento no ambiente que deveria acolhê-la, ampará-la. Para ela, os canais de denúncia “são de suma importância para que as mulheres não sejam desencorajadas de denunciar os crimes que sofrerem, bem como afastar aqueles que violam as normas que devem nortear os atendimentos das delegacias”.
“Dar uma resposta às mulheres nesse sentido torna esse ambiente mais seguro, mais justo e com a verdadeira missão na qual existem”, finaliza a especialista.
*Adriana Silva é um nome fictício. A vítima prefere não se identificar ou expor dados – como a cidade onde reside – para evitar represálias tanto do seu ex-companheiro quanto dos agentes que a atenderam nas delegacias de polícia.
Leia também: ‘Quem sofre violência no transporte público do Brasil?’