Em Salvador, oito em cada dez presos em flagrante vítimas de tortura por agentes de segurança são negros, segundo dados do relatório anual “Autos de Prisão em Flagrante na Comarca de Salvador (2021)”, da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA). Segundo o documento, na maioria dos casos a autoria das agressões foi atribuída a agentes de segurança pública, como policiais militares e civis.
Ao todo, foram registrados 3.647 casos de autos de prisão em flagrante no ano passado na capital baiana. Desse total, constatou-se que houve registro de lesão em 254 casos e em 219 verificou-se inexistência de lesão.
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Do total de custodiados, ou seja, aqueles que passaram pela audiência de custódia, o maior índice de ocorrência se deu entre as pessoas negras (pretos e pardos), totalizando 88,97%. Já entre os custodiados autodeclarados brancos, o percentual de ocorrências foi de 1,96%. Além disso, o relatório aponta que entre os detidos autodeclarados pretos e pardos há ausência da informação em 2.919 casos.
A defensora e assessora de pesquisas estratégicas da DPE/BA, Fernanda Morais, aponta que a subnotificação dos dados gera impactos para a análise da segurança pública no país, principalmente em relação ao mantimento do controle histórico sobre a população negra.
“A questão é que já foi constatado que a população negra é, digamos assim, a cliente preferencial do sistema criminal: é sobre a primeira que o segundo deita suas amarras no intuito de tentar mantê-la sob controle, já que, historicamente, o Brasil sempre demonstrou a sua incompetência em elaborar e implementar políticas públicas para a massa de pessoas que manteve escravizada ao longo de mais de 350 anos”, destaca a defensora.
Dos custodiados que informaram saber da identificação do responsável pela lesão, 60,71% atribuíram a responsabilidade aos agentes de segurança pública, como policiais militares e civis. Em 4,7% a autoria foi atribuída a agentes de segurança particular. Vale destacar que apontar a autoria difere da confirmação, que precisa passar por um processo de investigação.
Nos casos de tortura/maus-tratos, a lesão foi visível em 98 custodiados e não visível em outros 35 custodiados. Não se obteve informação em 121 ocorrências, segundo destaca o relatório. Também foi possível identificar que em 31,9% dos casos, os custodiados tiveram atendimento médico e outros 8,7% dos custodiados não receberam atendimento.
Perfil dos presos em flagrante
O relatório também destaca que o perfil das pessoas presas em flagrante em 2021 não difere dos relatórios anteriores. Homens (94,1%), negros (97,3%), com até 29 anos (69,3%) e ensino fundamental incompleto (33,67%) foram a maioria dos detidos em flagrante no ano passado na capital baiana. Dos flagranteados, apenas 7,95% já possuíam condenação criminal anterior.
De acordo com o levantamento, verificou-se que a 1.607 custodiados foi imputado o cometimento de crimes contra o patrimônio, como furto, roubo, latrocínio, entre outros. Já outros 1.408 custodiados foram imputados crimes relacionados à Lei de Drogas.
A prisão preventiva foi decretada em 37,97% dos casos cujos flagranteados eram negros e 35,87% dos casos em que os flagranteados eram brancos. Em caso de flagranteados negros, a prisão foi relaxada em 2,04% dos casos, metade do percentual referente ao relaxamento de prisão de flagranteados brancos (4,35%).
A defensora Fernanda Morais explica que o relaxamento da prisão confere ao flagranteado um status de “liberdade total” quando se identifica alguma irregularidade durante o processo da prisão em flagrante. Já a liberdade provisória é acompanhada de medidas cautelares diversas da prisão, como comparecimento periódico em juízo e proibição de acesso a determinados lugares. De acordo com o relatório, a medida foi aplicada em 94,8% dos casos.
“Analisando esse dado a partir de uma perspectiva racial, podemos concluir haver um interesse bem evidente na manutenção da população negra sob estrito controle, mesmo quando não houver tantas evidências de que tenha cometido um delito ou mesmo quando legalmente se entende ser desnecessária a aplicação da prisão no caso concreto.
Para a defensora, a produção dos dados é essencial para pautas os recortes de gênero e raça dentro das instituições públicas, como justiça e segurança pública.
“A partir desses e de outros dados que também são produzidos pela Defensoria, estamos sempre pautando o racismo e o machismo quando dos debates com outras instituições, seja do sistema de justiça, do sistema de segurança pública, ou, ainda, com a própria sociedade como um todo”, completa.
Posicionamento
A reportagem questionou a Polícia Militar, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) e a Corregedoria da Polícia Civil sobre os registros de tortura/maus-tratos atribuídos aos agentes da segurança pública no relatório divulgado pela DPE-BA.
Em nota, a Polícia Militar informou que a quando o agente efetua uma prisão, “realiza a apresentação à autoridade policial, que pode informar se o (a) flagranteado (a) possui algum ferimento/lesão no momento da apresentação em delegacia”.
A PM também disse que a tropa é formada para atuar conforme a legislação e que denúncias podem ser realizadas na sede da Corregedoria, no bairro da Pituba, através do site institucional ou pelo telefone 0800 284 0011. A nota reitera que “toda denúncia sobre a atuação de qualquer integrante da corporação é rigorosamente apurada”.
A SSP-BA e a Corregedoria da Polícia Civil não responderam a reportagem. Também entramos em contato com o Ministério Público do Estado da Bahia e o Tribunal de Justiça, mas também não obtivemos retorno até o fechamento da matéria.
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