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Sem provas centrais, jovem negro é preso, reconhecido pela cor do boné

Ministério Público pediu a prisão de Hugo Silva sem apresentar o horário do crime, informação fundamental para a defesa; ele responde às acusações preso

Imagem: Reprodução

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1 de fevereiro de 2023

Hugo Silva e Yara* foram detidos na madrugada do dia 27 de dezembro de 2022, depois da polícia buscar por suspeitos de envolvimento no roubo de uma caminhonete da marca JAC, que aconteceu na noite do dia 26 de dezembro. O Boletim de Ocorrência, assinado pelo delegado João Cláudio Paes e o escrivão José Ribeiro, no 3º DP de Diadema, não tem o horário exato do crime, o que dificulta a defesa dos jovens.

“Com o horário, a gente consegue demonstrar onde e o que eles faziam. Temos mensagens de áudio e vídeo deles durante a noite de 26 de dezembro, até o horário em que são enquadrados, depois das 23h”, relata Ewerton Carvalho, advogado de defesa, que pediu essa informação para a polícia. Questionada pela reportagem, a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública não indicou o horário do crime. Moradores da região relatam terem visto os criminosos estacionando os carros roubados entre as 22h30 e as 23h do dia 26 de dezembro.

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No dia 16 de janeiro, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou o pedido de habeas corpus feito por Vitória de Abreu, também advogada defesa dos acusados, para que Hugo possa responder em liberdade. A Justiça fundamentou a decisão nas informações do Ministério Público e do B.O de que o jovem foi preso em flagrante e reconhecido pela vítima do roubo. Yara* foi liberada pela polícia, na manhã do dia 27 de dezembro, e não foi alvo de denúncia do MP.

“A decisão desconsidera que Hugo tem endereço certo, fornecido durante seu interrogatório, emprego fixo e é primário, não constando qualquer condenação em seu desfavor. Seguirei prestando todo apoio que puder a Hugo e seus familiares, pois sei que não é um caso isolado”, afirma Vitória de Abreu.

Ewerton Carvalho peticionou nos autos do processo, no dia 26 de janeiro, um pedido para que a Justiça de São Paulo solicite mais investigação e mais informações por parte da polícia civil sobre o caso, em especial o horário do crime de roubo. Para ele, há inconsistências no Boletim de Ocorrência. “Foi um trabalho mal feito”, afirma. 

A defesa também questiona o formato do reconhecimento. De acordo com o boletim de Ocorrência, “por não haver outras mulheres no local e horário para se fazer a comparação”, Yara* foi a única colocada para ser identificada. Ela é uma mulher negra, de cabelo crespo, e a autora do roubo, uma mulher com “cabelo grande”, sem mais detalhes descritos no B.O. Depois, foi apreendido uma peruca com cabelo ondulado no Gol e as testemunhas que a viram dizem ser uma mulher branca, com cabelos lisos.

O processo diz que Hugo foi reconhecido em meio a “várias outras pessoas”, sem especificar as características de cada uma delas. A defesa contesta a versão e afirma que ele foi apresentado sozinho para o reconhecimento. De acordo com os acusados, Hugo foi identificado por usar um boné vermelho, a única informação que a vítima do assalto apresentou acerca dos três homens participantes do crime.

“O reconhecimento foi errado. Você tem que ser colocado com no mínimo duas pessoas parecidas com você, para que a vítima reconheça. Na hora do reconhecimento, colocaram o Hugo e a Yara* dentro de uma sala e chamaram a vítima que tinha acabado de ser assaltada. Óbvio que ela ia apontar o autor, ela estava sob forte emoção”, conta Ewerton Carvalho.

Yara* segue na luta para provar a inocência do colega e denunciar as inconsistências do caso. “O que pesa contra o Hugo é que ele é pobre, periférico, cheio de tatuagens, estava com o boné vermelho”.

Simone Nascimento, integrante da Coordenação Nacional do MNU, acompanha o caso e acredita se tratar de mais uma situação de racismo. “O estado prende nossos garotos, tirando eles do convívio social, da escola, do trabalho, de suas famílias e amigos. São Paulo é o estado que proporcionalmente mais prende negros no país, mas isso não significa que são os que mais cometeram crimes”. 

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou que a Polícia Civil de Diadema realizou todos os procedimentos e obedeceu às regras processuais. “Na delegacia foram realizadas oitivas de todos os envolvidos, policiais militares, vítimas e conduzidos. Também foi feito reconhecimento pessoal nos termos do artigo 266 do Código de Processo Penal. O flagrante foi realizado, além do reconhecimento, com outras medidas como os depoimentos, interrogatório e expedição de nota de culpa. O homem foi preso em flagrante e a mulher liberada. O caso foi relatado e encaminhado ao Poder Judiciário”.

O ouvidor das polícias, Cláudio Silva, afirmou que o órgão acompanha o caso e tem solicitado a apuração sobre possíveis abusos na ação policial. “A Ouvidoria da Polícia está acompanhando o caso, instaurado o expediente OP n. 4926/2022. Foram oficiadas a Corregedoria da Policia Militar e o Departamento de Polícia Judiciária da Macro São Paulo  (DEMACRO), para que sejam apuradas eventuais irregularidades na ação dos policiais. O contexto apresentado no caso chama a atenção, com indícios de abusividade na ação das forças de segurança, que levou à prisão de Hugo Gomes Silva, um jovem negro da periferia de São Paulo”. 

O Tribunal de Justiça de São Paulo informou que não comenta a decisão de juízes. “Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”. 

O Ministério Público de São Paulo, responsável pelo pedido de prisão preventiva, não respondeu aos questionamentos da reportagem. A promotora do caso é Ana Paula Mazza.

O caso

Na noite do dia 26 de dezembro, um grupo de assaltantes formado por três homens e uma mulher, em posse de um veículo Gol, furtado no dia 13 de novembro, roubaram uma caminhonete da marca JAC na Avenida Dona Ruyce Ferraz Alvim, 995, em Diadema. No carro, estavam duas pessoas, mãe e filho, que logo acionaram a polícia. 

As duas vítimas utilizaram a localização do celular, que foi a referência para a polícia rastrear o carro. Os agentes de segurança, contudo, localizaram o Gol, alvo de roubo do dia 13 de novembro, e não o JAC, recém roubado. O Boletim de Ocorrência não explica como os policiais chegaram ao JAC, que estava estacionado na Rua Paulo Magnani, 98, a 1,2km da Rua Sul, onde estava o Gol, com o celular das vítimas do assalto daquela noite.

De acordo com as testemunhas, os policiais encontraram Hugo na praça, distante do Gol, o que se difere da versão dos PMs, que afirmam ter visto o jovem mexendo em objetos dentro do carro. Os agentes de segurança afirmaram ter encontrado Yara* nas proximidades da Rua Sul, 91, “verificando a movimentação da via”. Os dois negam as acusações.

“É mentira. O Hugo estava no banquinho. Ou seja, o Hugo estava sentado longe do carro. Ele estava na mesinha perto da escada, que sai na Avenida dos Signos. O carro estava no bequinho, também na Avenida dos Signos, porém do outro lado. Eu sei que quando eu cheguei lá na hora, ele estava na mesinha e a polícia já estava abordando ele, mas longe do carro”, conta Yara*. 

Na praça próxima à Rua Sul, onde foi deixado o Gol, usado no roubo do JAC, os moradores perceberam a presença de três pessoas, dois homens e uma mulher. As testemunhas apontam que o Gol escuro foi abandonado no campo de futebol entre as 22h30 e as 23h. Das três pessoas que saíram do carro, os dois homens trocaram as roupas, e a mulher manteve a mesma vestimenta. Um dos rapazes mudou o boné vermelho para um branco, colocou um casaco corta vento branco e vermelho e uma bermuda jeans, o outro homem vestiu uma calça jeans e uma camiseta preta. A mulher, por outro lado, não mudou de roupa. Hugo foi abordado minutos depois. 

A Rua Paulo Magnani, onde o JAC foi encontrado, é sem saída e se tornou um ponto de descarte de carros roubados. Por esse motivo, os moradores da região criaram um grupo de whatsapp para monitorar o movimento na rua. 

Na noite do dia 26 de dezembro, data do roubo, uma mensagem às 22h56 foi enviada pelos moradores acerca do JAC parado, irreconhecível pelas pessoas da região. Ainda de acordo com relato dos moradores, eles viram dois homens dentro do carro. Os moradores também dizem que outros dois carros, desconhecidos da vizinhança, estavam parados em outros pontos da praça e também levantaram suspeitas.

*Nome fictício utilizado para preservar a identidade da moça.

Leia também: Tyre Nichols: câmeras nas fardas de policiais podem ser ferramenta para elucidar casos de racismo policial

  • Pedro Borges

    Pedro Borges é cofundador, editor-chefe da Alma Preta. Formado pela UNESP, Pedro Borges compôs a equipe do Profissão Repórter e é co-autor do livro "AI-5 50 ANOS - Ainda não terminou de acabar", vencedor do Prêmio Jabuti em 2020 na categoria Artes.

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