Daher dos Anjos de Paula é morador do bairro do Bixiga, no centro da capital paulista, e foi preso por uma equipe da Polícia Militar no dia 4 de junho de 2021, acusado de participar de um roubo de celulares. Ele nega o roubo e afirma que foi ameaçado e coagido a confessar o crime pelos policiais militares.
O jovem de 23 anos estava em liberdade há quatro meses, quando foi abordado por agentes na rua São Vicente, no bairro onde mora, depois de jantar com uma amiga.
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O rapaz tinha acabado de entrar em um bar para e diz que ouviu algo como “mão na cabeça, negão”. Daher diz que obedeceu a ordem e foi levado para o fundo do bar onde começou a ser revistado. Ele conta então que viu alguns celulares sobre uma mesa ao lado.
Daher nega que tenha roubado os celulares. Porém, a versão dos policiais militares sustenta que ele estava com os celulares na cintura. Ele conta que não sabe de onde surgiram os aparelhos que, segundo os agentes, teriam sido roubados cerca de 1h30 antes da abordagem, na Avenida Paulista.
Quase no mesmo momento, os irmãos Caio e Pedro* também foram detidos em outro estabelecimento comercial, perto do Bixiga, como suspeitos do mesmo crime.
Os três foram levados para o 78º DP, nos Jardins, também na região central, onde Caio foi reconhecido com absoluta certeza por três vítimas. Pedro foi reconhecido por duas e Daher por uma testemunha.
“A delegada percebeu que as vítimas tinham sido “manipuladas” para reconhecer os suspeitos e, por isso, liberou os irmãos. Mas manteve Daher preso, com base na alegação dos policiais, que asseguraram que ele foi surpreendido com os celulares na cintura”, disse Vivian Marconi, advogada do jovem.
Na justiça, para esclarecer a divergência entre as duas versões, a advogada do rapaz solicitou as imagens das “COPs” (câmera operacional padrão, que fica fixada nos uniformes) de todos os policiais que participaram da ação de abordagem de Daher, dos dois irmãos e do acompanhamento das vítimas. Só na abordagem de Daher havia, pelo menos, 10 policiais envolvidos e o jovem ficou alguns minutos algemado, sentado na calçada com policiais ao lado, que pressionavam ele, segundo a defesa.
“Em todo tempo, ele foi pressionado, como mostram os fragmentos das imagens enviadas à Justiça. Diziam para ele que as vítimas já tinham a descrição dele, que tinham foto dele e que ele iria ser reconhecido como o autor do roubo”, diz a advogada.
A Polícia Militar mandou apenas trechos das filmagens de dez câmeras. Os fragmentos das imagens selecionadas não foram suficientes para comprovar a versão dos policiais, no entanto, serviam para colocar em dúvida o que disse o jovem, pois mostravam um celular no chão, próximo ao local onde todos estavam.
A advogada acredita que houve uma ação consciente para evitar o envio de imagens que pudessem comprometer as informações colocadas no inquérito, baseado na declaração dos policiais militares. Pelo POP (Procedimento Operacional Padrão) nº 5.16.03, as câmeras deveriam ter sido ligadas com o áudio e as imagens, logo no início, quando foi informado via rádio que havia acontecido um roubo.
No caso de Daher, por exemplo, a gravação de vídeo começou apenas na abordagem e o áudio foi ligado momentos depois, quando ele já estava imobilizado.
Armazenamento em nuvem
As câmeras de segurança nos uniformes da Polícia Militar do Estado de São Paulo começaram a ser implantadas há cerca de dois anos. Apesar de ser proposta em 2016, só em agosto de 2020 aconteceu a primeira fase de testes. Seis meses depois, em fevereiro de 2021, compraram um lote de 2.500 câmeras. Em maio de 2021, diversas tropas da capital, como a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), começaram a usar as COPs.
A meta do governo é que o uso das COPs seja ampliado para todas as cidades do estado até 2023. As câmeras gravam em tempo real, não podem ser desligadas pelo policial e as imagens são armazenadas em nuvem, um tipo de armazenamento virtual, protegido por senha.
No processo, a advogada apontou que as imagens das câmeras não são conclusivas para comprovar que o celulares estavam com ele no momento da revista e que ele só assumiu ter a posse por pressão e medo.
“Ele não só nega o roubo como também nega que os celulares tivessem na sua cintura. Importante esclarecer que Daher nem sabia de onde tinham surgido os aparelhos, porque foi tudo muito rápido para ele. Assim que ele entrou no bar para fazer xixi, ouviu a sirene de polícia acompanhada de uma ordem de parada, que ele obedeceu de pronto com as mãos entrelaçadas sob a cabeça”, disse a advogada Vivian.
Para ter acesso ao que foi gravado no momento da prisão, a defesa do acusado precisa fazer um pedido judicial. Pelo número do boletim de ocorrência da Polícia Civil é possível localizar o número do B.O. da Polícia Militar, onde consta a informação sobre todos os PMs envolvidos e as COPs destes. Neste caso, no entanto, a PM não mandou a íntegra das gravações.
“Ao não enviar todas as imagens, a versão dos PMs se mostra fragilizada e, ao mesmo passo, configura descumprimento de uma ordem judicial”, disse a advogada.
A assessoria da PM foi procurada pela Alma Preta Jornalismo, mas não respondeu às questões feitas sobre o envio das imagens das COPs. Em vez disso, encaminhou uma nota com as informações do B.O.: “o suspeito foi encontrado com quatro celulares que haviam sido roubados – os aparelhos foram restituídos aos donos. Além disso, o homem foi reconhecido por cinco vítimas”. A nota diz ainda que a prisão em flagrante do Daher foi convertida em prisão preventiva, pela autoridade policial, e “que foi acatada pela Justiça”.
(*) os nomes são fictícios para manter preservada a identidade dos jovens.
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