“Negros em Brasília, em sua maioria, são trabalhadores braçais, serviçais, alocados em postos de trabalho de menor complexidade intelectual. Vão à capital planejada, ordenada com os belos monumentos brancos para servir à sua gente branca com poder econômico”, diz a assistente social Késsia da Silva.
No Distrito Federal, o povo negro representa a maior parte dos moradores, com 58,9% – sendo 48,3% pardos e 10,6% pretos. Os autodeclarados brancos são 40%. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2020.
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Mesmo com os dados da população negra de Brasília sendo maior do que a média nacional, a cidade, cuja arquitetura e urbanismo modernistas são ovacionados em todo o Brasil e no mundo, esconde em cada esquina um racismo estrutural visivelmente empregado. No centro do Distrito Federal, a capital do poder, a população negra não se encontra nas ruas, praças, nos restaurantes ou lojas.
Késsia Silva provoca reflexão ao questionar quem realmente pode usufruir de Brasília, sua programação cultural, seus restaurantes, seus espaços de lazer, seus colégios renomados e suas promessas laborais na Administração Pública. Ela mesma responde: “Quem tem dinheiro e/ou ‘passes simbólicos’ entre a branquitude”.
“A pessoa que passa a semana inteira na peleja com o transporte público do DF e entorno [municípios goianos e mineiros que fazem fronteira com o DF] para ir ao trabalho e retornar para casa, não quer saber de Brasília no fim de semana, com razão”, relata a funcionária pública.
De acordo com o antropólogo e urbanista, Paique Duques Santarém, a política higienista é parte da forma como Brasília foi construída. Ele conta que, na concepção da capital, ela foi planejada para abrigar fundamentalmente servidores públicos e administradores da cidade. “Ainda que houvesse outros setores, o pensamento da concepção da cidade foi feito para um público branco”, destaca o especialista.
Comunidade de Santa Luzia, na Cidade Estrutural (DF), há 20km do Centro da Capital Federal. Este ano, eles receberam um reservatório de água, que pode abastecer 17 mil moradores | Imagem: Universidade de Brasília
A construção da cidade
Segundo a Pnad, entre 2012 e 2019, a população do DF cresceu de 2,7 milhões de habitantes para 3 milhões. Ocupando pouco mais de 5 milhões km², o Distrito Federal está entre as cidades mais novas do Brasil com apenas 62 anos de fundação.
Apesar de agregar em seu território regiões com mais de 160 anos de existência, como é o caso de Planaltina, a maioria das 33 Regiões Administrativas que compõem o DF também são bem jovens, algumas com menos de 20 anos. São nestas regiões, que podem se situar há até 40 km do centro, que a maioria das pessoas negras residem.
Historicamente, Brasília é conhecida como a região que “abrigou” centenas de trabalhadores – os candangos – em sua maioria nordestinos, mas também mineiros e goianos, para a construção da capital. Porém, esses trabalhadores e suas famílias, que montaram barracos próximos à região central onde trabalhavam, não puderam ficar acomodados ali quando a cidade ficou pronta. Assim surgiram as RA’s (Regiões Administrativas) de nomes como Ceilândia, em que CEI significa: Centro de Erradicação de Invasões.
“Essa configuração espacial impede o desenvolvimento da cidade, tanto pelo aspecto da mobilidade, como pela estrutura social. Além disso, cria uma situação onde a população negra do DF e dos municípios goianos e mineiros que estão na região de fronteira com Brasília, estejam em uma condição progressivamente desigual e atacada”, diz Santarém.
Segundo dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), fundamentados no Censo 2010, a região mais negra do DF é a Estrutural (77,6%) – situada a 30 km do centro. A cidade nasceu em função do antigo lixão, agora desativado, de onde pessoas tiravam o seu sustento. Esse aterro foi durante anos o maior lixão à céu aberto da América Latina. O Lago Sul foi apontado como a região mais branca, com apenas 20,1% de pessoas negras. Esse bairro é o mais rico de Brasília, onde vivem maioria dos ministros de Estado e líderes do Governo.
Entrada do Pontão do Lago Sul, local à beira do Lago Paranoá que abriga restaurantes e atividades de entretenimento. É um espaço privado em uma orla que, pela lei, deveria ser pública | Imagem: Divulgação
Mecanismos segregadores
Existem mecanismos segregadores e econômicos que fazem uma expulsão centrífuga da população negra do Distrito Federal, do Plano Piloto, para outras regiões, e das RA’s mais distantes para os municípios de Goiás e de Minas Gerais. Isso acontece pela especulação imobiliária, pelo custo de vida com mercado, saúde, educação, por exemplo. Um relatório produzido pelo Wimoveis, maior portal imobiliário de Brasília, aponta que, em 2021, o preço médio do m² no DF custava R$ 10.519.
Para Késsia da Silva, opera no DF o apartheid à brasileira em que, segundo ela, as pessoas negras não são explicitamente ou legalmente impedidas de virem à [ao centro de] Brasília e de gozar o que a cidade oferece, mas, dada a sua condição econômica, social e cultural de “insuficiência”, são afastadas do convívio no Plano Piloto.
Os especialistas ressaltam que, por isso, apesar do povo negro de Brasília estar em todas as RA’s, estão mais concentrados nos territórios mais vulneráveis socioeconomicamente, locais onde as ações protetiva e promotora do Estado são escassas, pontuais, negligentes e tardias.
“A despeito disso, é nas periferias onde negros e negras constroem seu cantinho de descanso, de criação, de convívio com os seus, de riso e de dengo. As periferias são potenciais quilombos”, ponderam.
O Jovem de Expressão (Ceilândia-DF), movimento encabeçado pelo deputado distrital eleito Max Macial (Psol), é responsável por formar a juventude negra em dezenas de cursos profissionalizantes | Imagem: Elemento em Movimento
Ações de empoderamento
O deputado Distrital eleito Max Maciel disse que hoje, o governo, não vê uma pasta que inside de maneira transversal e setorial nas políticas para a classe trabalhadora e periférica. O que se encherga é quando chega novembro, há uma movimentação de grupos específicos para se trabalhar o Dia da Consicência Negra. Ele é uma forte liderança do movimento hip-hop e da cultura negra na cidade, promovendo ações de qualificação para a juventude negra voltadas para seus espaços.
“Temos que fazer com que a cultura negra seja efetivamente trabalhada nas escolas e em todos os espaços, precisamos fazer um porcesso de apuração, de comunicação, mas também fazer denúncias que impactem essa realidade; precisamos promover a equidade racial e fortalecer ações de combate ao racismo”, disse.
Guilherme Soares Dias, fundador do Guia Negro, montou em parceria com a empresa Me Leva Cerrado, um tour que leva os interessados a locais marcantes para a população negra de Brasília, e conta as histórias reais das pessoas invisibilizadas na capital. Com início na Praça Zumbi dos Palmares, cujo busto de Zumbi foi fundado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), o passeio mostra pontos centrais da cidade em que as pessoas podem encontrar maior representatividade negra.
“Existem exposições que contam as histórias negras; festas com temáticas negras, como os bailes charme, os sambas de terreiro; o plantio do Baobá, árvore sagrada africana; a Praça dos Orixás”, enumera. Ele também fala que o turismo também demonstra o racismo estrutural e religioso, já que há depredação de imagens dos Orixás, por exemplo.
O responsável por plantar e catalogar os baobás pela cidade, com explicações sobre cultura negra, inclusive para crianças, é o professor André Bento. Ele visita diariamente várias escolas da cidade para falar sobre a história dos povos negros por meio da explicação da importância de algumas plantas. O professor faz palestras e narra todo o processo de escravização durante suas intervenções.
Nas periferias, a cultura negra é muito presente, haja vista que bairro como Ceilândia e Planaltina são berços do hiphop brasileiro juntamento com São Paulo. Alí surgiram grupos como Tribo da Periferia, Câmbio Negro, Atitude Feminina, e mais reentemente o jovem Hungria, que disparou a audiência nas plataformas de streaming. Pontos de cultura, grupos de rap, discotecagem, skate e grafite, além de samba e pagode organizados pelos movimentos sociais, são símbolos das regiões mais afastadas do Plano Piloto.
Outro projeto que merece destaque é o projeto “Reintegração de Posse: Narrativas da Presença Negra na História do Distrito Federal”, coodenado por pela professora do departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), Ana Flávia Magalhães. Em 2019, a iniciativa analisou documentos históricos e imagens de antes, durante e depois da criação do Plano Piloto para pôr as narrativas sociais e culturais em diálogo com os estudos históricos do pós-abolição, da liberdade e da cidadania dos afrodescendentes no Brasil. O resultado final foi uma grande exposição exibida no Museu Nacional da República e na Câmara Legislativa do Distrito Federal. O trabalho foi realizado por um grupo de pessoas negras — entre estudantes e profissionais de pesquisa ou atuantes nas áreas de história, letras, arquitetura e urbanismo, comunicação e produção cultural.
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