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Herança colonial perpetua famílias brancas no poder

A política brasileira carrega uma cultura imperial de passagem do poder de maneira hereditária; hoje, a família Andrada é a mais longeva, com mais de 200 anos de legislaturas seguidas

Imagem: Reprodução/Douglas Gomes/Republicanos

Foto: Imagem: Reprodução/Douglas Gomes/Republicanos

4 de novembro de 2022

“Eu não vejo essa estrutura familiar da política como uma questão prejudicial por si só, mas sim a forma com que ela é posta, onde somente famílias brancas se beneficiam, sem levar em consideração que, um dia, famílias negras e indígenas possam fazer o mesmo”, disse a cientista política Nailah Veleci.

A política brasileira é composta, em sua maioria, por poucas famílias que passam gerações em cargos públicos ocupando cadeiras nas mais variadas instâncias. Com o atual presidente não é diferente. Bolsonaro, que passou mais de 30 anos como deputado federal, têm três filhos em cargos de alto escalão da política e alguns parentes já tentaram entrar na carreira. 

Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) é vereador da cidade do Rio de Janeiro e cumpre seu 5º mandato. Ele é irmão do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que ocupa a cadeira desde 2015, e do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Flávio foi deputado estadual pelo estado do Rio de Janeiro entre 2003 e 2018, assumindo o quarto mandato nas eleições de 2014. Em 2018, foi eleito senador e ocupará essa função até 2027. A ex-mulher do presidente Ana Cristina Valle também concorreu a um cargo de deputada pelo Rio de Janeiro, mas não se elegeu.  

A especialista Nailah Veleci aponta que dá para perceber essa hereditariedade em todo o Brasil – em Câmaras Legislativas, Assembleias e em todo o Congresso. “Isso é um resquício da nossa política desde os tempos imperiais”, afirma. 

Não à toa existe representante da família imperial no Congresso Nacional até hoje. Luiz Philippe de Orléans e Bragança, é um empresário brasileiro filiado ao Partido Liberal (PL). É descendente dos imperadores do Brasil Dom Pedro I e Dom Pedro II, e, portanto, da família imperial brasileira. Em 2019 assumiu o cargo de deputado federal pelo estado de São Paulo, eleito com 118.457 votos. Ele é um dos líderes e cofundador do movimento Acorda Brasil, que foi favorável ao impeachment de Dilma Rousseff. É o único descendente da família imperial brasileira a ocupar um cargo político de relevância no Brasil desde a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889.

Porém, o topo da lista em longevidade na política fica com a família Andrada. O deputado federal Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), eleito em 2022 para o seu segundo mandato na Câmara, é um dos herdeiros de José Bonifácio de Andrada e Silva. A figura que compõe os livros de história foi ministro do Império em 1822; deu apoio à regência de D. Pedro I; e atuou na proclamação da Independência, comandando a ação militar contra os focos de resistência à separação de Portugal. Também foi conselheiro de Dom Pedro II. 

Lafayette é filho de Bonifácio de Andrada, que morreu de Covid-19 em 2021 após ter exercido mandatos políticos por 60 anos. A Revista Congresso em Foco mostra que os Andrada estão na política há 200 anos e ficaram fora do Legislativo uma única vez, na elaboração da primeira Constituição da República. 

“De 1894 para cá, no entanto, não houve uma única legislatura sem a presença de um integrante da família no Congresso. Além de 16 deputados e senadores, o clã fez quatro presidentes da Câmara, oito ministros de Estado e dois ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), além de governadores, prefeitos, deputados estaduais e vereadores”, afirma o Congresso em Foco.

Recentemente, a Câmara dos Deputados fez uma homenagem à José Bonifácio de Andrada e Silva com um projeto que dá nome ao corredor das comissões e um busto do ex-ministro nas dependências do Congresso. A Alma Preta Jornalismo procurou a assessoria do deputado Lafayette de Andrada para perguntar a que ele atribui a longevidade da família Andrada na política brasileira e se acha que as famílias que têm tamanha tradição na política é um impedimento para diversificar o sistema brasileiro, mas não obtivemos resposta.

A doutoranda Isadora Harvey, ressalta que a manutenção das linhagens de herdeiros políticos é uma prática, ainda muito comum, que fere uma série de princípios da representação e da participação na política institucional. A cientista política considerou que a “passagem de bastão” de cargos políticos eletivos entre entes familiares distorce as oportunidades de concorrência e de acesso à recursos materiais, financeiros, assim como ao capital político, simbólico de postulantes à cargos políticos.

“Por outro lado, essa prática engessa e obstaculiza o desenvolvimento de uma inteligência política capaz de gerar respostas criativas, inovadoras e sustentáveis para a promoção da mobilidade social, cultural, educacional da população brasileira. Basta olhar o retrato racial das famílias que mantêm a tradicional herança política, e ver a nítida persistência de um perfil branco, masculinista, conservador, cisheteronormativo. Uma velha política de manutenção de um velho jogo político das elites”, afirma.

Para explicar melhor o porquê isso acontece, Veleci ressalta que, desde quando o Brasil se torna uma República, existe o voto de cabresto, quando uma pessoa muito influente de uma determinada localidade intervém no voto da população para eleger determinado político. Naquela época, esse político não era qualquer pessoa pois, pelas regras, as mulheres, os analfabetos e pessoas sem condições financeiras eram proibidas de votar e de serem votados. Quem tinha direito ao voto e também quem conseguia ser eleito eram pessoas ricas e classe média-alta. 

A especialista continua explicando que quando essas regras censitárias somem, as mesmas pessoas continuam no poder e o voto de cabresto continua. “Então, para permanecer com esse poder e não perder a posição de destaque, o que eles faziam era repassar os recursos intelectuais, financeiros e os postos para membros da sua família ou para seus apadrinhados”, diz Veleci.

Levantamento feito pela Revista Congresso em Foco em 2018 mostra que pelo menos 319 deputados (62%) e 59 senadores (73%) daquela legislatura tinham laços de sangue com outros políticos.No atual Senado, por exemplo, há casos de mães e filhos que viraram colegas, como Kátia Abreu (PP-TO) e Irajá Abreu (PSD-TO) e Nilda Gondim (MDB-PB) e Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB). Na próxima legislatura, Renan Filho (MDB-AL) se juntaria ao pai, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), na bancada de Alagoas no Senado. Todas essas famílias são compostas por pessoas brancas. 

“Essas questões de gerações de famílias é, literalmente, uma herança do sistema político do país que restringiu quem eram as pessoas que poderiam se candidatar e aptas a votar. E isso a gente tem chamado de capitais políticos – recursos que os indivíduos têm a mais para acender dentro de um campo –  são atributos e características que esses indivíduos precisam ter para ter sucesso e se manter no meio. O capital cultural é um deles, como as pessoas analfabetas não podiam votar, pessoas negras, mulheres e indígenas por exemplo tinham restrição à participação política, então o poder ficou concentrado em homens brancos”, diz a cientista política. 

Outros capitais, além do cultural – estudar nas melhores escolas, ter conhecimento sobre a carreira e as funções, etc –  apontados foram: o capital social, que são os contatos. Um político, além de colocar o seu filho em uma escola que proporcione o melhor ensino, no colégio ele vai interagir com a alta sociedade, jovens filhos de diplomatas, filhos de outros políticos e empresários, fazendo o seu círculo social desde a infância. Há, também, o capital econômico, onde as relações com os profissionais geram maior recurso, somados aos bens familiares e a facilidade de gerir orçamento público em torno de interesses ligados à sua própria classe social.

“Depois de todos esses, ou concomitantemente, vem o capital familiar, que é o sobrenome. Um herdeiro político carrega o legado de todos os seus antecessores e todos aqueles que já fizeram parte da política ou da alta sociedade de alguma forma. Ele pode aproveitar apenas o nome e abordar em suas campanhas”, conclui Nailah.

Para a especialista, essa realidade para famílias negras é extremamente recente. Foi necessário ter a criação das ações afirmativas para que as primeiras gerações de pessoas negras tivessem acesso à universidade. Um capital básico – o cultural – o povo negro está começando a conquistar agora. O capital social que a população negra está trilhando vem, muitas vezes, dos movimentos sociais e movimento negro organizado. Além de ter-se gerações de negros cuja ascenção econômica está chegando recentemente. 

“Mesmo um negro rico, com vários títulos, com vários contatos, ainda é inferiorizado. O negro pode frequentar as mesmas universidades, pode ter o mesmo diploma, mas os investidores terão um olhar diferenciado para a candidatura negra, porque a gente vive em uma sociedade racista que não apoia candidaturas negras e todos sabem disso”, pontua. 

A deputada eleita Paula Nunes (PSOL-SP) diz que é um grande desafio para mulheres negras, indígenas, jovens, que não tem tradição política hereditária ocupar esses cargos. No entanto, ela afirma que está existindo uma renovação na política, mesmo que ainda é muito pequena frente a necessidade e perto do que seria uma representação de mulheres negras na sociedade. Para ela, cada vez mais mulheres e pessoas negras estão ocupando postos na política sendo, inclusive bem votados.

“É o caso da Bancada Feminista, que foi uma candidatura coletiva de mulheres negras que vai ter um mandato de deputadas estaduais em São paulo e foi a candidatura para deputado estadual mais bem votada do país, que foi a candidatura negra proporcionalmente mais bem votada do país entre as estaduais e federais, e isso mostra que mesmo diante de todas essas barreiras, é possível que nós ocupemos esses espaços sem nenhum recurso vindo de empresários ou grandes nomes da elite política”, afirma Paula.

A jovem parlamentar ainda considera que isso só vem com lutas dentro dos partidos políticos para que o financiamento adequado seja dado e pela priorização dessas candidaturas. 

Leia mais: 25% dos governadores eleitos no segundo turno se autodeclaram negros

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