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Castiel Vitorino Brasileiro: com estética bantu-brasileira, artista apresenta trabalho decolonial

Com grande expressão internacional, a artista fala à Alma Preta sobre como se relaciona com a negritude e a brasilidade 

Castiel Vitorino Brasileiro é uma artista que desafia padrões

Foto: Imagem I Roger Ghil

16 de maio de 2022

Desde 2015, a artista Castiel Vitorino Brasileiro fez 33 exposições individuais e 11 performances ao redor do mundo a apresentou de forma criativa e provocadora a sua arte de estética bantu-brasileira. Castiel é uma das figuras de maior expressão e reconhecimento internacional da arte contemporânea, além disso, é escritora e documentarista.

Seus filmes circularam por diversas mostras, como o Festival Internacional de Cine de No Ficción FRONTERA-SUR, o Museo Del Bairro de New York City, Berlin Biennale – Alemanha, Fórum.doc e Festival de Cinema de Vitória. Neste último, em 2020, recebeu o prêmio especial do júri para o filme Para todas as Moças (2021). Este filme também ganhou os prêmios de Melhor Curta Nacional pelo júri da Janela Internacional de Cinema do Recife e pelo Júri da ABD/APEC.

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Castiel nasceu no Espírito Santo em 1996 e é psicóloga com mestrado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Como uma mulher trans e negra, que não faz concessões que reduzem a sua liberdade, ela desenvolve uma leitura de espiritualidade e ancestralidade instigante que questiona a brasilidade. Em entrevista exclusiva para a Alma Preta Jornalismo, ela falou sobre o seu processo criativo, letramento racial e liberdade.

“Minha obra instaura momentos perecíveis de liberdade, e eu acredito que esses momentos são aqueles onde compreendemos que abandonar a classificação negro, não se trata, necessariamente, de embranquecimento. Pode se tratar de liberdade”, pontua Castiel.

Alma Preta Jornalismo [APJ]: Qual a sua lembrança mais antiga de infância que tenha relação com a arte? Qual leitura você faz dessa lembrança atualmente?

Castiel Vitorino [CV]: De fato, a memória não acontece sem a chuva. Talvez em alguns planetas aconteçam outros tipos de chuva, e eu realmente acredito que sim, existem vidas que não necessitam da água para tornarem-se possíveis. Mas neste planeta terra, sinto que minha memória mais antiga é do meu afogamento em uma cachoeira. Eu dei um passo para trás e afundei num buraco. Naquele momento eu senti que precisava ter coragem, deixar meu corpo afundar até o solo daquelas águas, tomar um impulso e subir à superfície. E assim o fiz e me salvei. Então, minha memória mais antiga de infância é sobre medo e coragem. Hoje me relaciono tal memória sempre que eu digo a mim mesma ou para quem a mim chega: minha vida ultrapassa a mitologia negro, minha vida ultrapassa a violência gênero. Sim, sou livre, sou um desígnio da liberdade e um filamento do mistério que é a transmutação sideral.

APJ: Seu histórico de prêmios, exposições, cursos ministrados e obras de destaque nos últimos quatro anos é impressionante. Como você avalia este período recente na sua vida e as transformações pelas quais o mundo passou?

CV: Sua pergunta é interessante porque pra mim é difícil me perceber na história deste mundo como conhecemos. Ou melhor, é doloroso. Afinal, o trauma do esquecimento é cotidiano, então cotidianamente necessitamos cuidar dessa ferida. Sim, o que posso dizer com sinceridade é que quando eu decidi iniciar minha presença estética naquilo que o mundo ocidental decidiu chamar de Arte / História da Arte, eu me fiz uma promessa: cuidarei do meu corpo, não vou utilizá-lo para encenar violências. Então, minha vida acontece não numa contramão ou numa resistência à violência, mas num outro movimento, talvez mesmo o movimento espiralado, justamente este que cria histórias perfurando camadas rígidas ou molengas. Sentindo novas temperaturas e sabores. Quando perfuro essas camadas, que podemos chamar de culturas, em muitos desses momentos percebo-me estrangeira. Eu carrego em meu nome familiar, o sobrenome Brasileiro. No entanto, não sinto a verdade neste fato, o Brasil não me pertence. Ainda não existe uma nação possível para nossa liberdade retinta. Por isso, e por infinitos outros motivos, eu construo minha liberdade desse jeito: acreditando que sou livre, sendo extraterrestre.

MANJAR D olho dágua a foz Castiel Vitorino cred Renato Mangolin

 Obra ‘Manjar do olho d´água a foz’  da Castiel Vitorino (Foto: Renato Mangolin)

APJ: Qual a sua rotina de criação?

CV: Eu crio porque tenho fome, e nem sempre eu quero dividir meu alimento com outras pessoas. Não é egoísmo, apenas um cuidado, e em alguns momentos preguiça de comungar com pessoas falsas, mentirosas, rancorosas e violentas. Porque minha criação não obedece ao letramento racial da brasilidade negra, aquele que aprendemos sobre ser gente a partir da perspectiva branca. Sim, meu processo de criação caminha com a seguinte pergunta: quais são nossos verdadeiros nomes? E continuo a pergunta: qual a tradução de negritude, para a língua kimbundo? Não existe porque em outras culturas temos outros nomes e histórias. Porque ainda nos chamamos com o nome de commodities escravocrata “negro”?

Eu creio em múltiplas linguagens, me interesso pela produção de imagem, pintura / desenhos e criação de espaços. Recentemente, também lancei um livro que se chama “quando o sol aqui não mais brilhar: a falência da negritude”. Então eu desenvolvo estéticas e também uma trajetória intelectual acadêmica. Sou artista, escritora e psicóloga mestra em psicologia clínica.

Minha obra instaura momentos perecíveis de liberdade, e eu acredito que essas momentos são aqueles onde compreendemos que abandonar a classificação negro, não se trata, necessariamente, de embranquecimento. Pode se tratar de liberdade. Bem, o título de minha dissertação de mestrado em psicologia clinicada PUC-SP é “Tornar-se imensurável: o mito negro brasileiro e as estéticas macumbeiras na clínica da efemeridade”. Então, em suma, minha rotina de criação é: todos os dias lembrar que tornei-me imensurável à colonialidade.

APJ: A sua arte destaca a fé ancestral. Qual a sua opinião sobre a intolerância e a perseguição às religiões de matrizes africanas?

Essa guerra não vai acabar. Cabe a nós estudarmos sobre as alianças que nossos ancestrais fizeram no passado, para conseguimos colher os frutos sem cometer os mesmos erros. A intolerância religiosa não vai acabar com brancos sendo iniciados em nossas escolas religiosas. Precisamos rever a história, e decidi por outras alianças e pactos.

APJ: Qual é o ponto forte que você gostaria de destacar da cultura brasileira e como isso se mostra na sua obra?

CV: Veja bem, o fato de eu ter nascido no Brasil não me faz brasileira. Estou criando para mim outras origens, porque sei que não sou refém do local de meu nascimento. Dentro do território Brasil, eu faço parte da comunidade do Morro da Fonte Grande (Vitória/ES), uma comunidade composta por pessoas indígenas e negras e remanescentes quilombolas de origem bantu. Se há algo que minha arte destaca sobre o Brasil, é que a cultura brasileira é uma cultura de morte, que o Brasil é um grande cemitério, e que as pessoas de pele negra precisam se libertar do domínio que a brasilidade tem sobre nossas vidas. Eu não celebro o Brasil, e desejo o fim desta nação, para a construção de outra, que talvez possa até ter outro nome.

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