O cabelo crespo, característica estética encontrada em boa parte da população negra, carrega em si alguns tabus. Em uma cultura que valoriza traços e aspectos brancos e eurocêntricos, o preconceito contra quem não faz parte deste grupo ainda existe no Brasil, apesar de pretos e pardos representarem a maior parte do conjunto populacional do país.
Um estudo publicado em 2021 na revista Social Psychological and Personality Science mostrou que candidatas negras aos mais diversos cargos de emprego no mundo todo – com penteados naturais ou usando tranças afro – são percebidas como menos profissionais do que negras com cabelos alisados.
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No entanto, não é de agora que o cabelo crespo sofre com microagressões de cunho racista, ou até mesmo é colocado em uma posição de “feio”, “sujo” e “duro”. É o que explica a socióloga Anita Pequeno, autora do artigo “História Sociopolítica do Cabelo Crespo”.
“As mulheres negras conhecem a violência do racismo desde muito cedo, principalmente através da maneira como a sociedade taxa o cabelo crespo como ‘ruim’. Acredito que esse é um dos discursos racistas mais abertamente postulados”, afirma a socióloga.
Anita explica que, de modo geral, os primeiros esforços de transformação do corpo negro começam na infância, com o desejo de mudar uma parte específica do corpo: o cabelo crespo, através do alisamento capilar. No entanto, embora compartilhem da crença na importância simbólica do cabelo, de acordo com ela, os estudiosos das relações raciais mostram que a importância específica do cabelo para negros e negras é irrefutável, devido ao seu legado histórico e político específico.
“No contexto das relações raciais, o cabelo pode significar relações com a África, construções da negritude, memória da escravidão, autoestima, rituais, estética, técnicas de cuidado apropriadas, imagens de beleza, política, identidade e, também, a intersecção de gênero e raça. Fora todas as tensões que existem quando ideias culturais e sociais são transmitidas através dos corpos”, ressalta a pesquisadora.
Marca identitária
De acordo com a professora universitária e escritora estadunidense Ingrid Banks, na obra “Hair Matters”, nos anos 1960, debates sobre o que as práticas com o cabelo crespo representam entre mulheres negras surgiram na academia. Quando o Feminismo Negro chega às universidades, está fortemente associado à necessidade de autodeterminação das mulheres negras sobre a sua própria estética.
“A geração de feministas negras pós-movimento Black Power construiu, em continuidade, uma nova celebração do “cabelo natural” e da ancestralidade africana, mas com ênfase na autonomia, na irmandade e na diversidade sexual. Esse processo desafiou as convenções de gênero em um mundo no qual o cabelo longo é sinônimo de feminilidade”, diz Banks, em um trecho da obra.
No livro “400 years without a comb”, que aborda a importância dos cabelos para a população negra, o autor Willie Morrow afirma que o pente garfo era um artefato cultural muito valorizado na África. A escravidão, no entanto, forçou os escravizados a abandonar essa tradição, sendo retomada mais tarde, por meio do avanço na discussão da estética negra.
“Além de deixar o pente para trás, a escravidão também significou a perda da liberdade, da dignidade e do amor-próprio. Os homens negros, por exemplo, diante da nova realidade de negação da sua humanidade e, consequentemente, da sua beleza, muitas vezes cortavam os cabelos extremamente curtos – o que era muito perigoso devido à exposição ao sol no trabalho escravo”, diz o livro.
“Junto com a imposição de um novo padrão estético, os pentes africanos, ideais para o cabelo crespo, foram substituídos por novos artefatos completamente inapropriados para o trato com aquele cabelo. Não é à toa que, frequentemente, é dito que alisar o cabelo é mais simples e fácil de cuidar; ora, isso é verdade, se o regime de cuidado é moldado por assunções da branquitude”, complementa a socióloga Anita Pequeno.
Cabelo crespo no Brasil
“A negação da beleza negra é parte estruturante do racismo, que busca desumanizar suas vítimas. O cabelo crespo surge como uma questão desde muito cedo na vida dos negros, sobretudo, das mulheres. A manipulação dessa parte do corpo tende a protagonizar os seus rituais de beleza, mesmo durante a infância”, salienta Anita.
No Brasil, o artigo História Sociopolítica do Cabelo Crespo explica que no final do século XIX, já perto do fim da escravidão, tomava força um modelo racial de análise em resposta à miscigenação, a qual era tida, naquele contexto, como um grande “tumulto”.
Diante do enfraquecimento da escravidão, que resultou em seu fim, e da necessidade de realização de um novo projeto político para forjar uma identidade para o país, os modelos raciais se tornaram um caminho de negação à civilização dos negros e negras.
O artigo ainda pontua que o mito da democracia racial, ao negar uma realidade, criava uma dificuldade maior para o povo preto: a de ter de enfrentá-la e superá-la. Nesse momento, segundo a socióloga e autora do artigo, era preciso “reeducar a raça”.
Ela explica que no Brasil pós-abolição, com a voz dos negros endereçada aos negros, a ideia era eliminar os estereótipos consagrados pelos séculos anteriores: a preguiça, a deseducação, o “vício da cachaça” e a hiperssexualidade da população preta. Para isso, concursos de beleza foram promovidos por esse grupo a fim de, além de auxiliar na construção de um conceito de beleza negra, responder à imagem da “mulata promíscua” que surgiu na escravidão .
A pesquisadora pondera ainda que apesar de as três primeiras décadas do século XX terem ficado marcadas pelos resquícios do período escravista, a imprensa foi fundamental para disseminar voz e dar visibilidade e espaços de sociabilidade aos negros.
“Tanto que o que a publicidade ‘vendia’ era um ideal de beleza eugênico, historicamente construído e perpassado por relações de poder. Naquele contexto de romper com os estereótipos, o alisamento capilar também era uma maneira de ascender. Ou seja, a busca por uma inserção social passava pela estética, ainda que isso custasse uma profunda manipulação de seu corpo”, ressalta.
Apoio de movimentos sociais
O artigo assinado por Anita Pequeno explica que, a partir de 1931, a Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental do Negro seriam ferramentas para a mudança do olhar sob a estética negra e suas características, como o cabelo crespo.
A Frente Negra Brasileira, fundada em setembro de 1931 tinha, dentre os seus militantes, o negro, dramaturgo, ator e ex-senador da república Abdias do Nascimento. Com núcleos em vários outros estados como Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul, a sua proposta fundamental era a educação de negros e negras. Com o lema “congregar, educar, orientar”, tratava-se de um movimento de massa cujo principal objetivo era resgatar este grupo da condição de exclusão.
Além de montar espetáculos teatrais, o grupo do Teatro Experimental do Negro promovia cursos de alfabetização. O jornal Quilombo, por exemplo, foi uma produção muito diferente dos outros jornais militantes que o antecederam. O teatro buscava também o resgate da cultura negra de raiz africana e um dos modos que encontrou foi a promoção de concursos de beleza para mulheres negras que valorizassem seu próprio padrão estético: contra os concursos que só aceitavam mulheres brancas.
“Uma análise sobre como a beleza negra foi abordada pelos próprios movimentos negros no pós-abolição foi importante, porque foi possível enxergar as tensões que sempre estiveram presentes. Mesmo o olhar dos negros sobre os negros recaiu na dificuldade de romper com pressupostos racistas”, avalia Anita.
Black is beautiful
Nos anos 1960 e 1970, com os movimentos “black is beautiful” e “black power”, o cabelo crespo passou a significar orgulho e poder. O cantor norte-americano James Brown expressou esse momento no seu hit de 1968: “Say it loud – I’m black and I’m proud” (na tradução livre “diga alto: eu sou negra(o) e me orgulho disso!”).
“Naquele momento, as pessoas que não usavam seu cabelo crespo como um afro – ou porque a textura não permitia, ou simplesmente porque preferiam alisar – eram consideradas uma contradição, uma mentira, uma piada”, ressalta a socióloga.
Anita valia que embora as pessoas associem muito fortemente o “black is beautiful” exclusivamente ao movimento norte-americano, as suas raízes, na verdade, remontam à luta antirracista na África do Sul.
“No violento contexto do apartheid sul-africano, um grupo de estudantes decidiu se organizar politicamente, debruçando-se sobre os problemas históricos do país construindo um conceito libertário intitulado Consciência Negra. O conceito de Consciência Negra teve como principal protagonista Steve Biko, assassinado pelo regime do Apartheid. O conjunto de ideias do movimento extrapolou as fronteiras sul-africanas e influenciou a organização dos negros em diversos países, inclusive no Brasil”, comenta.
Segundo ela, a valorização da estética negra esteve fortemente presente nessa militância, já que suas reflexões eram sobre os condicionamentos mais profundos do racismo. É assim que surge o slogan “negro é lindo” (black is beautiful).
A radicalização em torno do uso do cabelo crespo “natural” foi central, já que este foi reforçado como ícone identitário e cultural. O uso do cabelo crespo no estilo afro passa a ser privilegiado, numa releitura do que era enfatizado pelos ativistas do Movimento de Consciência Negra sul-africano.
“Ainda mais importante, é preciso enfatizar que, logo no início da década de 1960, mulheres negras como Odetta, Abbey Lincoln e Nina Simone passaram a usar o cabelo sem alisamento. Ou seja, mulheres negras também foram precursoras do cabelo crespo afro como estilo político”, completa.
Aceitação feminina e transição capilar
Apesar de tanto homens negros quanto mulheres negras rejeitarem alisar o cabelo crespo a partir desses movimentos de ressignificação da estética negra, houve diferentes implicações para as mulheres negras, segundo Anita.
“Para elas, assumir o cabelo ‘natural’ não é só uma valorização da negritude ou da descendência africana, mas uma rejeição direta de uma concepção de beleza feminina que inclusive muitos homens negros reiteram”, salienta.
Anita Pequeno afirma que atualmente está sendo escrito um novo capítulo na história da ressignificação da estética negra: a aceitação do cabelo crespo e o acolhimento à transição capilar. Para ela, o processo consiste na ressignificação desses cabelos, que eram quimicamente alisados, e no retorno ao cabelo natural como reconstrução da autoestima.
Para se livrar da química, é necessário esperar o crescimento de um cabelo totalmente novo, o que acarreta, por exemplo, no “problema das duas texturas”, que evidencia o contraste entre a parte alisada e o cabelo novo que cresce na raiz.
“Uma das partes mais importantes é, justamente, o corte do cabelo quimicamente tratado: muitas mulheres, inclusive, não esperam muito o crescimento do cabelo natural e optam pelo BC [‘big chop’ ou grande corte, em português], o que significa raspar a cabeça ou cortar o cabelo bem curto. Esse processo é muito difícil e marca profundamente a vida dessas mulheres”, pondera.
Contudo, Anita Pequeno avalia que o movimento pela transição capilar apresenta continuidades em relação aos antigos movimentos socio-políticos. Para ela, as mulheres negras atualmente estão reivindicando a beleza negra com ênfase na aceitação do cabelo crespo, natural.
“A transição capilar acarreta, via de regra, o reconhecimento de uma identidade negra antes negligenciada. É um processo que vai muito além do cabelo e implica a negociação de identidades complexas, sobretudo em um país que vive sob a égide de um racismo ambíguo”, finaliza.
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