Em entrevista para o Alma Preta, o pagodeiro contou sobre a resistência da comunidade negra, o fortalecimento da autoestima na juventude, os casos de racismo vividos pelo grupo Katinguelê e sobre como tem visto a realidade política brasileira
Texto / Pedro Borges I Imagem / Reprodução | Edição / Simone Freire
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“Ninguém está entendendo o que está acontecendo. A gente vai entrar em um momento bem obscuro e difícil depois para tirar”, afirma o cantor Salgadinho, um dos principais nomes de samba da geração dos anos 1990, sobre o cenário político brasileiro atual.
O Brasil tem vivido um cenário com projetos políticos que retiram direitos da maioria da população, como o caso das propostas de mudanças na lesgislação trabalhista e nas regras da Previdência Social. O país também presencia propostas que críticos têm apontado como possíveis medidas que aumentarão a repressão e violência, como tentativa de flexibilização do porte e da posse de armas.
Famoso por conta dos sucessos do grupo de pagode Katinguelê, Salgadinho acredita que o Brasil vive uma queda desde 2014, com a instabilidade política criada no país e o “golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff”, como ele mesmo define. “Apesar de não ser um militante petista, eu entendo dessa forma”, diz.
Apesar de reconhecer as dificuldades, Salgadinho acredita que, independente do atual governo, o Brasil viverá momentos difíceis. “Eu não estou dizendo a partir desse governo só. Vai ser bem difícil conquistar muita coisa que já tinha sido conquistada no passado e que estão passando por cima como se não fosse nada”, critica.
Religião
Evangélico, Salgadinho também crítica a participação da igreja evangélica na política nacional. No Congresso, a Frente Evangélica é composta por 198 deputados e 4 senadores. O grupo é um dos mais influentes na política nacional e, entre outras iniciativas, fez pressão para impedir o avanço da proposta de criminalização da homofobia e é o principal apoiador do ministro da Jutiça e Segurança Pública, Sergio Moro. “As classes religiosas não deveriam interferir na política como interferiram no resultado [das eleições presidenciais]. A igreja tem que ser imparcial em todos os sentidos”, opina Salgadinho.
O cantor, contudo, reitera a dificuldade de se posicionar, por saber que qualquer posição tida como equivocada pode gerar críticas por parte do público. “Não é fácil para mim ter um posicionamento político. Eu acabo não tendo apoio dos sambistas, porque o cara entende que eu sou um pagodeiro. Eu acabo não tendo apoio de grupos negros, que tem um mito em torno do artista Salgadinho, então é muito difícil defender uma posição. É muito difícil um artista chegar em frente das câmeras e falar algo porque eu não estou sendo beneficiado por ninguém”, pontua.
População negra
Salgadinho sempre adotou para si a luta em defesa do povo negro. O nome do grupo em que fez sucesso, Katinguelê, é um sinal disso. A palavra significa criança iniciante na capoeira, em referência à luta desenvolvida pelos quilombolas durante o período da escravidão no país.
Quando perguntado sobre racismo e os ataques contra a comunidade negra, Salgadinho se recorda do assassinato de Evaldo dos Santos e Luciano Macedo, mortos depois de receberem mais de 80 tiros do Exército, no Rio de Janeiro. “Eu vi o nosso presidente dizendo que ‘o Exército não matou ninguém’. Ou seja, morreu ninguém, porque a gente não é ninguém. O pobre não é ninguém?” questiona.
Ele também recorda que a população negra é a principal vítima de assassinatos, aprisionamento, suicídio e que a mulher negra é a pior remunerada no mercado de trabalho. Por isso, Salgadinho destaca a importância da comunidade se organizar e de se movimentar.
“O posicionamento do negro é muito importante como um agente da sociedade, e que pode fazer a diferença para a sociedade. Não para o negro só, mas para a sociedade. A gente tem muitas vidas sendo descartadas nas periferias, então brigar pelo espaço é muito importante”, diz.
O cantor acredita que há uma movimentação e fortalecimento da comunidade negra e fica contente por se sentir parte desse processo, como um fomentador da autoestima negra desde a década de 1990, além de ver como reflexo disso o posicionamento político dos filhos. “Quando eu converso com o meu filho hoje, ele tem um entendimento de quem ele é, o que ele quer para o futuro, o que é coerente ou não dentro da sociedade colonialista”, diz.
Racismo
A influência das músicas cantadas pelo pagodeiro foi expressiva em números. À época, o Katinguelê vendeu quase um milhão de discos com o sucesso “No Compasso do Criador”, lançado em 1996. Um dos responsáveis de clássicos do samba da década de 1990 como “Inaraí” e “Recado a minha amada”, Salgadinho foi vítima de racismo ao longo da carreira.
Ele se recorda do dia que visitou uma produtora. Quando entrou na sala, percebeu a existência de um poster da dupla sertaneja, João Paulo e Daniel. O cartaz, porém, tinha uma diferença. Daniel, negro, havia sido tirado do poster, e Daniel, branco, mantido.
Salgadinho então foi pleitear uma participação do grupo Katinguelê na televisão para a responsável da sala. A resposta, como ele recorda, foi a seguinte: “Salgado, a música de vocês é maravilhosa, é linda, eu até choro, mas vocês ainda não foram para a TV porque a música não é muito compatível com a imagem de vocês”.
Depois de notar a ausência de João no cartaz e receber essa informação, entendeu que se tratava de uma situação de racismo. “Ela teve coragem de me falar isso. Para bom entendedor, foi o pingo no i que eu precisava porque, no geral, o negro tem que ser bom entendedor”, diz. A barreira da televisão, contudo, foi quebrada e o Katinguelê foi o segundo grupo de pagode a se apresentar em uma emissora. O primeiro foi a banda Raça Negra, que tinha a produção vinculada à Rede Globo.
Salgadinho lembra também que a vontade de pautar o debate racial era motivo de reclamação na época, quando os colegas sambistas diziam que ele queria ser “intelectual”. Ouvia que precisava parar com “essa coisa de negro”, porque “todo mundo é igual”. “Não é igual cara. Nós não tínhamos base e profundidade para entender a nossa história. Faz 100 anos que a gente num é escravizado, a gente não sabe elogiar o outro”, pontua.