Um elemento essencial para o culto de religiões de origem africana é a música. Com ritmos específicos para cada orixá, as cantigas são uma forma de se conectar com o sagrado, fazendo parte das festas e funções das casas de candomblé. É o que explica o Maurício Cruz, ogãn e Axogun.
“O couro sagrado é tocado em Ketu para que os orixás se manifestem nos filhos daquela casa. Existem cantigas próprias para ‘esquentar’ o barracão, para a sacralização animal, para a consagração do Ori. Tudo é musical, e o ogãn é peça fundamental para fazer essa conexão”, explica.
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Amauri dos Santos, também ogãn, explica que são cerca de 28 ritmos entre as nações de Ketu, Jeje e Angola. Convidado para diversas festas de candomblé, o batuqueiro – como ele mesmo gosta de ser chamado – comenta que os ritmos são executados com o apoio de quatro instrumentos principais: o sino, tambor agudo, tambor médio e grave, denominados Gã, Lé, Rumpi e Rum, respectivamente.
“Em Angola a gente toca tudo com as mãos. Já em Ketu e Jeje, usamos também o aguidavi, que serve como ‘baquetas’. Conforme tocamos, os orixás vão se manifestando. Acho que é a parte mais bonita em ser ogãn: saber que somos responsáveis por esse momento”, destaca Amauri.
Dança
Segundo Maurício, o ritmo está diretamente associado à dança típica de cada orixá (vodun ou nkisis, dependendo da nação). O intuito, segundo ele, é rememorar os atributos e passagens da divindade pela Terra.
“Por exemplo, Ogum, estabelece uma dança na qual os movimentos são ágeis, rápidos e vigorosos, adequando-se ao ritmo executado, diferentemente dos passos lentos, fluidos e ondulantes de Oxum, uma deusa das águas doces. O ritmo tem a ver com o que a divindade está fazendo naquela cantiga”, explica.
“Com seus ritmos característicos, cada entidade – seja orixá, nkisi, vodun – expressa de forma gestual criando uma atmosfera que mesmo quem não tenha familiaridade consiga compreender, como a caça de Oxóssi”, descreve Amauri.
Cada um com seu ritmo
Dentre os ritmos entoados nos terreiros de candomblé, cada um tem um nome e uma “temperatura”, segundo Maurício. O ogãn explica que para Ogum, toca-se o Adarrum, ritmo quente, rápido e contínuo, que pode ou não ser unido aos cânticos
“O Adarrum é um ritmo que também pode acelerar o transe dos filhos da casa, ele chama o orixá”, diz. Apesar de ser caracteristicamente tocado para Ogum, também é tocado para outros orixás.
Além disso, em casas pertencentes à nação Ketu, o transe é propiciado ao som do Aguerê, ritmo associado a Oxóssi – o rei de Ketu. O Aguerê é, segundo Maurício, acelerado, cadenciado e exige agilidade na dança, “do mesmo modo que a caça exige a agilidade do caçador”.
“Para Omolu ou Obaluaê, temos o Opanijé, um ritmo mais pesado, pausado, lento, denso. A gente está tocando para o rei da terra, portanto, precisamos compreender o peso desse ritmo e o que este orixá representa”, comenta o ogãn Amauri.
Outro ritmo – o Bravum – embora não seja atribuído especialmente a algum orixá, é frequentemente escolhido para saudar Oxumarê, Ewá e Oxalá. “É um ritmo rápido, bem dobrado e repicado”, explica Amauri. “Combina perfeitamente com esses orixás transformadores, como Ewá e Oxumarê, mas às vezes é usado para saudar o pai de todos”, completa
Xangô é dono do ritmo chamado Alujá. Maurício explica que o ritmo é quente, rápido, que expressa “força e realeza”, voltado a encenar nos tambores “os trovões dos quais Xangô é o senhor”.
“Para mãe Oxum temos exclusivamente o Ijexá, o único ritmo tocado com as mãos no rito Ketu. É um ritmo calmo, balanceado, envolvente e acolhedor, como a deusa da água doce, à qual faz alusão”, ressalta Maurício. O Ijexá, segundo ele, é tocado ainda para o orixá filho de Oxum, Logun-Edé e para Oxalá.
Para Oyá, divindade dos raios e dos ventos, toca-se o Ilú, ritmo que, de tão rápido, repicado e dobrado, também é conhecido como “quebra-prato”. “É o mais rápido ritmo do candomblé, correspondendo à personalidade agitada, contagiante e versátil da deusa guerreira, senhora dos ventos e que tem poder de afastar os espíritos dos mortos, os eguns”, diz
Para Nanã, toca-se o Sató, um ritmo vagaroso e pesado. “Ele é lento, e deve remeter ao momento da criação, de maneira respeitosa à Nanã”, descreve Amauri.
“Ser ogãn é vivenciar isso de olhos abertos, quando orixá se manifesta de olhos fechados”
“Quando soube, aos 12 anos de idade, que eu não era rodante, no começo fiquei triste, pois queria sentir o orixá. Hoje, eu sei que Ogum sabe o que faz, pois a emoção que sinto ao conseguir – com as minhas mãos no atabaque – trazer essas divindades para perto de nós é indescritível”, relata Maurício.
O Axogun ainda explica que, durante o transe, os orixás manifestados costumam ficar de olhos fechados, restando muitas vezes aos ogãns observar o que acontece durante as festas e rituais.
“Ser ogãn é vivenciar isso de olhos abertos, sentir a aproximação quando o orixá se manifesta de olhos fechados. É cantar e ver orixá soltar seu ilá, entender que somos necessários para o culto e que o nosso ofó [encanto] é importante”, finaliza.
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