O último dia de desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, na terça-feira (4), contou com uma homenagem à Xica Manicongo, a primeira travesti não-indígena documentada no Brasil. Na Marquês de Sapucaí, a Paraíso do Tuiuti apresentou um enredo em tributo à essa figura da comunidade LGBTQIAPN+ que foi perseguida e apagada ao longo dos anos.
Xica Manicongo foi traficada do então Reino do Congo ao Brasil como escravizada, no século 16. Segundo registros oficiais arquivados em Portugal, ela viveu na Cidade Baixa, região de Salvador, à época capital do país.
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Rebatizada no Brasil pelos escravagistas como Francisco, Xica desafiou as normas coloniais ao se vestir de acordo com sua identidade de gênero, com vestes tidas como femininas pelos portugueses. A expressão não-binária de gênero era comum na quimbanda, tradição religiosa comum de seu povo e outras etnias africanas.
Por seu comportamento subversivo às regras impostas pela Igreja Católica e a coroa portuguesa, Xica Manicongo foi denunciada pelo Tribunal do Santo Ofício, órgão de investigação da Inquisição que sistematizou leis e jurisprudências sobre ações que eram consideradas crimes de feitiçaria, usura, blasfêmia e heresias.
A denúncia do português Matias Moreira, capitão de Ordenanças da Capitania da Bahia, acusou Xica de integrar uma “quadrilha de feiticeiros sodomitas”, homossexualidade, e pelo modo de se vestir. Acusada e julgada por um padre-visitador representante da Igreja no Brasil Colônia, ela foi condenada a ser queimada viva em praça pública e seus descendentes desonrados até a terceira geração.
Para fugir da sentença de morte, ela deixou de lado as vestes que representavam sua identidade e passou a se vestir como foi imposta, além de adotar o nome dado pelos colonizadores.
Por quase quatro séculos, Xica Manicongo foi reconhecida como um homem homossexual pelos historiadores brasileiros. Ela só foi reconhecida como mulher transsexual em 2010, após atuação da Associação de Travestis do Rio de Janeiro.
Quem tem Medo de Xica Manicongo?
Na Sapucaí, a Paraíso do Tuiuti apresentou o enredo “Quem tem medo de Xica Manicongo?”, criado pelo carnavalesco Jack Vasconcelos. Com a presença de 28 personalidades trans, como as deputadas federais Erika Hilton e Duda Salabert, a agremiação trouxe a história e importância de Xica para o centro da memória coletiva brasileira.
Com referências ao Pajubá, dialeto criado pela comunidade LGBTQIAPN+, o samba-enredo destacou a identidade travesti e a perseguição histórica às pessoas trans.
Além da exaltação da figura de Xica Manicongo, a escola abordou a violência contra travestis e transexuais, reforçando a necessidade de políticas públicas para combater a transfobia.
Confira o samba–enredo:
Só não venha me julgar Ô Ô
Pela boca que eu beijo
Pela cor da minha blusa
E a fé que eu professar
Não venha me julgar
Eu conheço o meu desejo
Este dedo que acusa
Não vai me fazer parar
Faz tempo que eu digo não
Ao velho discurso cristão
Sou Manicongo
Há duas cabeças em um coração
São tantas e uma só
Eu sou a transição
Carrego dois mundos no ombro
Vim Da África Mãe Eh Oh
Mas se a vida é vã Eh Oh
Mumunha
Jimbanda me fiz
N Ganga é raiz
Eu pego o touro na unha
A bicha, invertida e vulgar
A voz que calou o “Cis tema”
A bruxa do conservador
O prazer e a dor
Fui pombogirar na Jurema
Chama a Navalha, a da Praia e a Padilha
As perseguidas na parada popular
E a Mavambo reza na mesma cartilha
Pra quem tem medo o meu povo vai gritar
Eu travesti
Estou no cruzo da esquina
Pra enfrentar a chacina
Que assim se faça
Meu Tuiuti
Que o Brasil da terra plana,
Tenha consciência humana
Chica vive na fumaça
Eh! Pajubá!
Acuendá sem xoxá pra fazer fuzuê
É Mojubá
Põe marafo, fubá e dendê (Pra Exu)