PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

Quem foi Xica Manicongo, travesti negra homenageada em desfile da  Paraíso do Tuiuti

Traficada do Congo ao Brasil no século 16, Xica Manicongo foi condenada a ser queimada viva por desafiar as normas de gênero da coroa portuguesa
Desfile da Paraíso do Tuiuti na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, em 4 de março de 2025.

Desfile da Paraíso do Tuiuti na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, em 4 de março de 2025.

— Tomaz Silva/Agência Brasil

5 de março de 2025

O último dia de desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, na terça-feira (4), contou com uma homenagem à Xica Manicongo, a primeira travesti não-indígena documentada no Brasil. Na Marquês de Sapucaí, a Paraíso do Tuiuti apresentou um enredo em tributo à essa figura da comunidade LGBTQIAPN+ que foi perseguida e apagada ao longo dos anos.

Xica Manicongo foi traficada do então Reino do Congo ao Brasil como escravizada, no século 16. Segundo registros oficiais arquivados em Portugal, ela viveu na Cidade Baixa, região de Salvador, à época capital do país. 

Quer receber nossa newsletter?

Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!

Rebatizada no Brasil pelos escravagistas como Francisco, Xica desafiou as normas coloniais ao se vestir de acordo com sua identidade de gênero, com vestes tidas como femininas pelos portugueses. A expressão não-binária de gênero era comum na quimbanda, tradição religiosa comum de seu povo e outras etnias africanas.

Por seu comportamento subversivo às regras impostas pela Igreja Católica e a coroa portuguesa, Xica Manicongo foi denunciada pelo Tribunal do Santo Ofício, órgão de investigação da Inquisição que sistematizou leis e jurisprudências sobre ações que eram consideradas crimes de feitiçaria, usura, blasfêmia e heresias.

A denúncia do português Matias Moreira, capitão de Ordenanças da Capitania da Bahia, acusou Xica de integrar uma “quadrilha de feiticeiros sodomitas”, homossexualidade, e pelo modo de se vestir. Acusada e julgada por um padre-visitador representante da Igreja no Brasil Colônia, ela foi condenada a ser queimada viva em praça pública e seus descendentes desonrados até a terceira geração.

Para fugir da sentença de morte, ela deixou de lado as vestes que representavam sua identidade e passou a se vestir como foi imposta, além de adotar o nome dado pelos colonizadores.

Por quase quatro séculos, Xica Manicongo foi reconhecida como um homem homossexual pelos historiadores brasileiros. Ela só foi reconhecida como mulher transsexual em 2010, após atuação da Associação de Travestis do Rio de Janeiro.

Quem tem Medo de Xica Manicongo?

Na Sapucaí, a Paraíso do Tuiuti apresentou o enredo “Quem tem medo de Xica Manicongo?”, criado pelo carnavalesco Jack Vasconcelos. Com a presença de 28 personalidades trans, como as deputadas federais Erika Hilton e Duda Salabert, a agremiação trouxe a história e importância de Xica para o centro da memória coletiva brasileira​.

Com referências ao Pajubá, dialeto criado pela comunidade LGBTQIAPN+, o samba-enredo destacou a identidade travesti e a perseguição histórica às pessoas trans.

Além da exaltação da figura de Xica Manicongo, a escola abordou a violência contra travestis e transexuais, reforçando a necessidade de políticas públicas para combater a transfobia​.

Confira o sambaenredo:

Só não venha me julgar Ô Ô
Pela boca que eu beijo
Pela cor da minha blusa
E a fé que eu professar

Não venha me julgar
Eu conheço o meu desejo
Este dedo que acusa
Não vai me fazer parar
Faz tempo que eu digo não
Ao velho discurso cristão
Sou Manicongo
Há duas cabeças em um coração
São tantas e uma só
Eu sou a transição
Carrego dois mundos no ombro

Vim Da África Mãe Eh Oh
Mas se a vida é vã Eh Oh
Mumunha
Jimbanda me fiz
N Ganga é raiz
Eu pego o touro na unha

A bicha, invertida e vulgar
A voz que calou o “Cis tema”
A bruxa do conservador
O prazer e a dor
Fui pombogirar na Jurema
Chama a Navalha, a da Praia e a Padilha
As perseguidas na parada popular
E a Mavambo reza na mesma cartilha

Pra quem tem medo o meu povo vai gritar
Eu travesti
Estou no cruzo da esquina
Pra enfrentar a chacina
Que assim se faça
Meu Tuiuti
Que o Brasil da terra plana,
Tenha consciência humana
Chica vive na fumaça
Eh! Pajubá!
Acuendá sem xoxá pra fazer fuzuê
É Mojubá
Põe marafo, fubá e dendê (Pra Exu)

Apoie jornalismo preto e livre!

O funcionamento da nossa redação e a produção de conteúdos dependem do apoio de pessoas que acreditam no nosso trabalho. Boa parte da nossa renda é da arrecadação mensal de financiamento coletivo.

Todo o dinheiro que entra é importante e nos ajuda a manter o pagamento da equipe e dos colaboradores em dia, a financiar os deslocamentos para as coberturas, a adquirir novos equipamentos e a sonhar com projetos maiores para um trabalho cada vez melhor.

O resultado final é um jornalismo preto, livre e de qualidade.

  • Verônica Serpa

    Graduanda de Jornalismo pela UNESP e caiçara do litoral norte de SP. Acredito na comunicação como forma de emancipação para populações tradicionais e marginalizadas. Apaixonada por fotografia, gastronomia e hip-hop.

Leia mais

PUBLICIDADE

Destaques

Cotidiano