Joaquim Pinto de Oliveira ganhou apelido que significava “bom no que faz”; ele mudou o conceito da arquitetura da capital paulista e ganhará uma homenagem na Sé
Texto: Guilherme Soares Dias | Edição: Nataly Simões | Imagem: Reprodução/Google
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Joaquim Pinto de Oliveira, mais conhecido como Tebas, arquiteto que viveu no século 18 e foi responsável pela fachada de diversas igrejas de São Paulo e pelo primeiro chafariz público da cidade, será homenageado com uma escultura no centro de São Paulo. O monumento terá 3,6 metros de altura e 1,5 metros de largura.
Joaquim era tão bom no que fazia que ganhou do povo o apelido de Tebas, termo quimbundo sinônimo de quem exerce seu ofício com louvor. Para idealizar uma obra à altura dele, Lumumba e Francine Moura foram o artista e a arquiteta escolhidos. A entrega da homenagem será em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, e a inauguração oficial em 5 de dezembro, durante a Jornada do Patrimônio.
A escultura ficará na Praça Clovis Bovilaqua, integrada à Praça da Sé, dialogando com a Igreja da Ordem 3ª do Carmo e Catedral da Sé, no centro da capital paulista. O local no coração da cidade é significativo. Tebas foi o responsável pela fachada da Igreja do Carmo e também da segunda versão da igreja Matriz da Sé (1778), onde foi erguida, em 1954, a estátua de José de Anchieta. Foi durante o seu trabalho nas duas igrejas que o arquiteto, escravizado, conquistou a alforria, numa intrincada trama jurídica, segundo o historiador do Iphan Carlos Gutierrez Cerqueira.
O arquiteto também foi responsável pela restauração do Mosteiro de São Bento (1766 e 1798) e da fachada da Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco. O Chafariz da Misericórdia, construído entre 1791 e 1793, foi sua obra mais importante. Deixou de fazer parte da cidade em 1866 após o processo de canalização de água no centro. A obra, erguida no ainda hoje denominado Largo da Misericórdia, na esquina das atuais ruas Direita, Quintino Bocaiúva e Álvares Penteado, funcionava como um ponto de encontro de escravizados que buscavam água para seus senhores.
Apesar da sua projeção, o arquiteto foi relegado ao esquecimento por anos. Não é nome de rua, de praça no centro e não tinha uma homenagem à altura. Em 1974, o cantor e compositor Geraldo Filme (1927-1995) compôs um samba enredo que reivindicava a memória do arquiteto: “Tebas, negro escravo / Profissão: Alvenaria. Construiu a velha Sé / Em troca pela carta de alforria / Trinta mil ducados que lhe deu padre Justino / Tornou seu sonho realidade / Daí surgiu a velha Sé / Que hoje é o marco zero da cidade / Exalto no cantar de minha gente / A sua lenda, seu passado, seu presente”.
Mas foi somente em 2018, por sugestão do escritor e jornalista Abilio Ferreira, que o Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo (SASP) reconheceu-o como arquiteto, depois que documentos oficiais localizados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) revelaram as relações de trabalho entre o arquiteto escravizado e as ordens religiosas.
Em 2019, ganhou um grafite em um prédio na Rua Rego Freitas, na esquina com a Major Sertório, na região da República. A pintura é uma obra do Grupo Opni, mas é preciso atenção para perceber o nome de Tebas camuflado em meio aos tons de azul da parte superior do painel e pode passar despercebido pelos transeuntes. O Google preparou um doodle (imagem do dia junto ao logo do site de pesquisa) em homenagem a ele em 30 de junho de 2020. Tebas também ganhou uma biografia escrita pelo jornalista e ativista dos movimentos de memória Abílio Ferreira, lançada em 2018.
“O que o Tebas traz para gente é mais sobre o patrimônio imaterial do que material. Essa palavra ‘Tebas’ que traduz elogio entre pessoas daquela época e não designa apenas uma pessoa, mas, sim, a representação mental de todo um povo”, considera Abílio.
O escritor diz que o arquiteto só passou a autodenominar-se Tebas em 1791. “Foi um apelido atribuído a ele pelas pessoas que frequentavam o espaço público, negros, indígenas. Nessa época, aos 70 anos, Joaquim Pinto de Oliveira já era um arquiteto reconhecido. “Assim como o cruzeiro de Itu só teve a autoria revelada em 2016, deve ter outras obras em Santos que ele produziu, uma vez que viveu lá seus primeiros 30 anos de vida. Ainda não sabemos como aprendeu o ofício. É uma história que ainda precisa ser mais estudada”, reivindica Abílio, questionando: “A escultura é muito bem vinda, principalmente, num momento em que as homenagens aos escravocratas estão em xeque. Mas ela sozinha, sem políticas públicas de educação patrimonial, não terá a função transformadora que reivindicamos”.
Nascido em 1721, em Santos, Tebas parece ter morrido em plena atividade, aos 90 anos, vítima de uma gangrena provavelmente causada por acidente de trabalho. Ele foi sepultado na Igreja de São Gonçalo, localizada na Praça João Mendes, centro de São Paulo. A igreja pertenceu à irmandade negra de Nossa Senhora da Conceição e São Gonçalo Garcia, que construiu a edificação em 1757 e ficou à frente dela até 1893, período em que acolheu o corpo de Tebas, morto no dia 7 de janeiro de 1811.
Em março de 2020, a igreja, que em 1966 se tornou Paróquia Pessoal Nipo-Brasileira São Gonçalo, passou a ser chefiada por padres negros, o pároco José Enes de Jesus e o vigário Luiz Fernando de Oliveira. “A presença deles ali”, interpreta Abilio, “adiciona ainda mais sentido ao debate que hoje se faz sobre a região: a implantação do Memorial dos Aflitos, a necessidade de restauro da Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, a ocupação racial e etnicamente diversa do bairro da Liberdade. É uma reintegração de posse.”
Escultura
A escultura que marcará a presença de Tebas no centro é desenhada por Lumumba e tem apoio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. O valor do investimento foi de R$ 200 mil. “A obra tem o objetivo de firmar e reverberar a expertise e modernidade do legado de Tebas, revelar de modo artístico a sua produção tecnológica sofisticada para a época e propor, acima de tudo, uma reflexão que recobra a relevância da ocupação territorial preta em área central da cidade que foi fragmentada ao longo dos séculos”, informam os responsáveis pela obra.
Tebas e Lumumba têm outra coisa em comum: o Congo. A origem do arquiteto não é precisada pela falta de documentos, mas a técnica que Tebas empregava de talhar e aparelhar em pedra vinha do país do continente africano. Com isso, ele impactou de forma decisiva uma São Paulo até então erguida principalmente com taipas, construções de barro com possibilidades estéticas muito limitadas. O nome Lumumba também é proveniente do Congo e homenageia Patrice Émery Lumumba (1925 – 1961), que foi um líder anti-colonial e político congolês. Afroindígena, o brasileiro classifica-se como artista plástico e grafiteiro.
Lumumba, 40 anos, é mineiro, descendente de congoleses, guaranis, morador do centro de São Paulo, e por algumas temporadas, de Salvador. Ele é bisneto de indígena da etnia Puri-Guarani, da serra do Caparaó. Autodidata, o artista iniciou sua trajetória em 2001 pintando orixás em juta, traduzindo os mitos yorubás, influenciado por Michelangelo e Boris Vallejo. Em 2009, começou a dedicar-se a trabalhos cenográficos: Parada Momentos Mágicos Disney World, Óperas Infantis para o Teatro Municipal de São Paulo, Beto Carrero World, Dreamworks, Oktoberfest, Caso do Porco Bar e o último, Boteco da Diversidade. Já fez exposição com obras que produziu no Alto do Xingu, em que ressaltava a cultura local, e já passou um período produzindo e vendendo obras no Pelourinho, na Bahia.
A memória e preservação já faziam parte do início da trajetória da arquiteta Francine Moura, 43 anos, mulher preta formada em Arquitetura e Urbanismo no Mackenzie. Com 20 anos de carreira, seus primeiros passos foram na conservação do painel de azulejos do Largo da Memória, quando estagiou no DPH – Departamento de Patrimônio Histórico. Francine é especialista em Projeto de Arquitetura na Cidade Contemporânea e pesquisa espaços públicos e coletivos. Também possui especialização em Educação, Relações Étnico-Raciais e Sociedade e investiga as percepções construídas sobre o corpo da mulher negra e a busca por ressignificações.
“Participar do monumento ao Tebas tem dimensão simbólica muito forte para mim. Contribuir para o reconhecimento do trabalho deste arquiteto nos impulsiona a seguir seu legado. Olhando para a minha produção recente, nos últimos dois anos meu amor, energia e técnica foram dedicados a projetos arquitetônicos e artísticos afro-referenciados em 99% das experiências”, reforça Francine, que também atua profissionalmente como carnavalesca, cenógrafa e diretora de arte audiovisual. Seu último projeto entregue é o da Casa Preta Hub, no Vale do Anhangabaú, também no centro da capital paulista.
Coube à paulistana Rita Teles, do Núcleo Coletivo das Artes Produções, alinhar a produção executiva e artística do aquilombamento e, para demarcar a arte e o protagonismo negro na centralidade da proposta, compôs uma equipe com 90% de profissionais negros para a realização do monumento. A paulistana é formada em Educação Artística – Artes Cênicas e trabalha como atriz, produtora cultural, arte educadora, pesquisadora, além de ser reconhecida como ativista e articuladora de políticas culturais. Já o projeto estrutural foi realizado pela engenheira negra Mabi Elu.
“A ideia principal desta empreitada é afastar, de uma vez por todas, a aura de invisibilidade que repousava sobre a história de Tebas. Um monumento que projeta, em grande escala, a contribuição negra para a cidade em que uma criança, ao passar no local, possa se sentir representada com aquela escultura que pode remeter a um super-herói ou, simplesmente, a um homem importante que existiu e lutou dignamente por sua afirmação e espaço”, destaca Rita.
O processo do desenvolvimento da escultura, em si, foi feito em imersão dentro de prazo desafiador, de dois meses de trabalho, no Quimera Atelier, no bairro dos Campos Elíseos. “A obra suspensa no ar dará uma ideia de ascensão, como se ela emergisse para fora, do período da escravidão, desse universo perverso, ao mesmo tempo em que temos a presença do high tech, que faz um contraponto ao componente perecível, da corrente de ferro comum, que ficará na base da estrutura ao inox que é um material mais contemporâneo”, contextualiza Lumumba.
Instituto
Além da escultura, Tebas deve ganhar ainda este ano um instituto com seu nome, destinado a trabalhar pelo reconhecimento, pela preservação e pela valorização do patrimônio cultural negro-indígena em território paulistano. A assembleia de fundação do Instituto Tebas de Educação e Cultura ocorreu no dia 28 de setembro, data da promulgação das leis do Ventre Livre, em 1871, e dos Sexagenários, em 1885. É, por isso, também que 28 de setembro é o nome do mais antigo clube negro em atividade no estado de São Paulo, fundado em janeiro de 1897 na cidade de Jundiaí.
A Lei 10.346, de 27 de dezembro de 1968, também instituiu o 28 de setembro como o Dia da Gratidão à Mãe Preta. “Temos patrimônio cultural que muitas vezes não é reconhecido, como é o caso de lugares de memória como o antigo endereço da Frente Negra Brasileira, que funcionou onde hoje é Casa de Portugal, na Liberdade. Há patrimônios como a Capela dos Aflitos, também na Liberdade, que não tem programa de preservação. E há patrimônios reconhecidos e preservados, como o monumento à Luiz Gama, que precisa ser valorizado”, explica o coordenador-geral do Instituto Tebas, Abilio Ferreira.
Descrição Técnica do projeto da escultura
Título: “JOAQUIM PINTO DE OLIVEIRA”
Artista: Lumumba Afroindígena
Co-autora: Francine Moura
Material estátua: Aço inox
Material corrente: Ferro
Material base: Concreto aparente
Dimensões: Altura 3.60m/Largura: 1.50m/Profundidade: 2.60m