Às vésperas da festa mais popular do Brasil, o Carnaval, enredos com temáticas negras marcam os desfiles. Nos últimos dez anos – sem contar homenagens individuais a personalidades pretas contemporâneas –, as agremiações de São Paulo e do Rio de Janeiro abordaram a história, diáspora e luta negra por 39 vezes. Apesar da riqueza cultural que cada escola apresentou na avenida, de 2013 para cá, apenas quatro comunidades foram vitoriosas ao contar tais narrativas.
Levando em consideração que não houve carnaval em 2021 devido à pandemia de Covid-19, a Alma Preta Jornalismo relembra desde 2013 os enredos que trouxeram para o Sambódromo do Anhembi e da Marquês de Sapucaí a vivência e a homenagem ao povo negro que os livros de história não contaram.
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2013
Em São Paulo, a Nenê de Vila Matilde apostou no enredo “Da Revolta dos Búzios à atualidade, Nenê canta a igualdade”. O enredo da Nenê em 2013 foi criado a partir de uma sugestão do Olodum, na Bahia. A luta pela igualdade racial, de gênero, trabalhista e até mesmo o sistema de cotas na educação brasileira brilhou na apresentação da escola.
2014
No Rio e com o enredo “Batuk”, o Império da Tijuca voltou ao Grupo Especial no Carnaval 2014 para celebrar as batucadas que vieram da cultura africana. O enredo da escola mostrou que para os povos africanos, ritmar algum acontecimento representa preservar sua memória coletiva e identidade cultural. O tema levou a escola à vitória.
No mesmo ano, a São Clemente levou à Sapucaí a riqueza e a criatividade da favela. Seu desfile apresentou as origens, a arquitetura, os costumes e os personagens dos morros entre becos e vielas, além das contradições e espontaneidade das comunidades.
2015
Uma das mais tradicionais escolas de samba de São Paulo, a Nenê de Vila Matilde fechou o primeiro dia de desfiles de 2015 com o enredo “Moçambique – A Lendária Terra do Baobá Sagrado”. A agremiação falou sobre a nação africana por meio da lenda do baobá, árvore milenar que é símbolo do país.
Em Moçambique, o baobá é reverenciado. As pessoas jogam moedas e fazem oferendas ao pé da planta. O enredo mostrou ainda a chegada do baobá ao Brasil, pelas mãos dos africanos escravizados na época da colonização. Já no Carnaval carioca, a escola Beija Flor trouxe para a Sapucaí a Guiné Equatorial.
O destaque de 2015 vai para a Imperatriz Leopoldinense, que abordou o racismo. A ideia inicial partiu de uma atitude racista, quando torcedores espanhóis jogaram em campo uma banana para o jogador de futebol Daniel Alves. E ele, com muito fair-play, pegou a fruta e comeu, dando uma banana para o preconceito. Nasceu assim o enredo “Axé, Nkenda! Um ritual de liberdade e que a voz da igualdade seja sempre a nossa voz”.
A Unidos do Viradouro retornou à elite do Carnaval em com um dos sambas mais elogiados do ano, fruto da fusão de duas obras belíssimas do veterano Luiz Carlos da Vila. O enredo “Nas veias do Brasil, é a Viradouro em estado de graça” falou sobre a onipresença do negro na construção de identidade brasileira.
2016
Em 2016, a Mocidade Alegre de São Paulo abordou a alma ancestral do samba no Carnaval. O enredo homenageou o centenário do gênero musical. A proposta da agremiação visou toda a história do samba através de uma lenda africana que conta o nascimento do orixá Aiô.
A lenda surgiu em um festejo tribal africano quando Exu conta a Xangô que um irmão estava aprisionado dentro de um tambor. Xangô, como rei impositivo que era, partiu esse tambor ao meio e dele surgiu Aiô, que é tido até hoje como o orixá do som e da música.
2017
Em 2017, a temática negra dominante foi a dos orixás do candomblé. A Acadêmicos do Tatuapé levou para o Sambódromo do Anhembi o enredo “Mãe-África conta a sua história: Do Berço Sagrado da Humanidade à Terra Abençoada do Grande Zimbabwe!’, e venceu o Carnaval de São Paulo.
Já o Unidos do Peruche abordou “A Peruche no maior axé, exalta Salvador, cidade da Bahia, caldeirão de raças, cultura, fé e alegria”, e a Vai-Vai homenageou Oxum e Mãe Menininha.
Já na folia do Rio, a Estação Primeira de Mangueira levou para a avenida a fé como mensagem com o conselho de que a sociedade se apegue a santos, orixás e patuás.
A União da Ilha do Governador levou para seu desfile a cultura dos bantos da nação de Angola com suas tradições, lendas, mitos, deuses e sua fé. Com o enredo “Nzara Ndembu – glória ao Senhor Tempo”, a escola buscou revelar pela primeira vez na Sapucaí esse lado da cultura banto.
Unidos de Vila Isabel cantou a influência do negro na música no continente americano com o enredo “O som da cor”.
2018
A escravização do povo negro foi abordada pela Paraíso do Tuiuti em 2018. Com seu enredo “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”, a agremiação falou sobre os 130 anos da assinatura da Lei Áurea a partir de um olhar crítico, ressaltando que não houve preparo para a libertação dos escravos.
Já a Acadêmicos do Salgueiro mais uma vez investiu num tema que agradou muito sua comunidade. Com o enredo “Senhoras do ventre do mundo”, o Carnaval do Salgueiro destacou a importância e a força da mulher negra.
2019
A Colorado do Brás abriu os desfiles do Grupo Especial do Carnaval de São Paulo em 2019 com um enredo que homenageou o Quênia. O título do enredo, “Hakuna Matata, isso é viver”, é uma frase que ficou conhecida principalmente depois da animação “O Rei Leão”.
A Mancha Verde, por sua vez, homenageou Aqualtune, figura histórica marcada pela luta pelos direitos dos negros e das mulheres, da escravidão e também da intolerância religiosa. O enredo recebeu o nome de “Oxalá, salve a princesa! A saga de uma guerreira negra”, e venceu a disputa.
A Vai-Vai levou à avenida uma viagem no tempo de um africano contador de histórias no Carnaval de São Paulo de 2019. A escola de samba mostrou as lutas do povo negro no enredo batizado de ”Vai-Vai, o quilombo do futuro”.
No Rio de Janeiro, o Salgueiro foi à Sapucaí em 2019 com um tema que saúda o orixá dos raios, trovões e fogo, Xangô. Com o samba-enredo intitulado pelo nome da divindade, que representa também a justiça, a escola de samba reverencia seu poder e sua influência sobre o povo brasileiro.
2020
Barroca Zona Sul trouxe o enredo “Benguela… A Barroca clama a ti, Tereza!”, em homenagem à líder quilombola Tereza de Benguela. Já a Tom Maior escolheu brilhar no Carnaval de São Paulo com o enredo “É coisa de preto”. Com um tom mais político, a agremiação salientou a importância do negro na construção e desenvolvimento do Brasil.
O enredo “Do canto das Yabás renasce uma nova morada”, exaltou o poder feminino para a reconexão com o universo pela Mocidade Alegre.
Com o enredo “O Rei negro do picadeiro”, o primeiro palhaço negro do Brasil, Benjamin de Oliveira, foi o personagem homenageado pelo Salgueiro no Carnaval 2020, ano que marcou os 150 anos do nascimento do artista mineiro. Benjamin superou o preconceito para se tornar um dos maiores artistas do Brasil no início do século 20. Era filho de mãe escrava e pai capataz.
2022
Sem Carnaval em 2021 devido à pandemia, a Acadêmicos do Tatuapé chegou à festa popular de 2022 com o enredo “Preto Velho conta a saga do café num canto de fé”, que uniu a história do grão em uma analogia com a figura mística do Preto Velho.
“Afoxé de Oxalá – No ‘Cortejo de Babá’, Um Canto de Luz em Tempo de Trevas”. Esse foi o enredo escolhido pela Águia de Ouro para a festa paulistana de 2022. Em um mergulho nos saberes africanos, a escola exaltou a diversidade étnica e religiosa do Brasil.
O Salgueiro, por sua vez, exaltou locais e personagens importantes da história da resistência negra no Rio de Janeiro.
“Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”. O enredo sobre a valorização dos feitos e dos pensadores negros, muitos escondidos na história oficial, foi colocado em prática em Nilópolis.
Agremiação de São Cristóvão, Paraíso do Tuiuti trouxe o enredo “Ka Ríba Tí Ye”, que prometeu e entregou histórias de luta, sabedoria e resistência negra. Referências do cinema e da cultura pop marcaram o desfile, como um carro alegórico sobre o herói dos quadrinhos e filmes Pantera Negra.
Um ano antes do seu centenário, a Portela homenageou os próprios ancestrais com um desfile dedicado ao baobá – árvore sagrada de origem africana que, para a escola, carrega diversos significados – a começar pelas raízes fortes. Já a Mocidade Independente de Padre Miguel trouxe o “Batuque ao Caçador” para reverenciar seu orixá padroeiro, Oxóssi.
No entanto, o destaque vai para o desfile da Grande Rio, com o enredo “Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu”, que condensou as várias facetas do orixá, indo de referências populares até personagens marginalizados. Como resultado, a escola venceu o carnaval carioca de 2022.
2023
Em São Paulo, a Rosas de Ouro trouxe o enredo “Kindala! Que o amanhã não seja só um ontem com um novo nome”, que contou a história da luta do povo negro em busca de liberdade e igualdade. A Tom Maior exaltou as Yabás com o enredo “Um Culto às Mães Pretas Ancestrais” em uma homenagem para as mães pretas de São Paulo e do resto do Brasil.
“Em nome do pai, dos filhos, dos espíritos e dos santos… amém” foi o tema da Gaviões da Fiel para 2023, a fim de falar sobre a intolerância religiosa, problema que ainda assola o país. E a Império de Casa Verde se enveredou pelo Anhembi com o enredo “Império dos Tambores – Um Brasil Afromusical”. A escola enfatizou a história da ancestralidade e identidade cultural partindo dos batuques.
No carnaval do Rio de Janeiro, a Unidos da Tijuca trabalhou em cima da temática “É Onda Que Vai… É Onda Que Vem… Serei A Baía De Todos Os Santos A Se Mirar No Samba Da Minha Terra”. O enredo exaltou a Bahia, incluindo os tupinambás, caboclos, orixás e santos.
“As Áfricas que a Bahia Canta” é um enredo de destaque sobre protagonismo feminino, levado para a Marquês de Sapucaí pela Estação Primeira de Mangueira. E a Unidos do Viradouro contou a história de “Rosa Maria Egípcia”, trazida da África para o Brasil em 1925. Ela foi a primeira mulher negra a escrever um livro.