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Yemanjá: a rainha que para uns é branca, para nós é pretinha

Dona das águas, como é chamada pelos pescadores, Yemanjá é celebrada no dia 2 de fevereiro em Salvador; Pescadores e religiosos lutam para conseguir apoio para a realização da festa e reconhecimento da identidade pesqueira das comunidades

Os presentes e as mobilizações, para a comunidade da Gamboa, são uma forma de agradecer e pedir força para a continuação de um processo longo e acirrado de reconhecido da região como Zona Especial de Interesse Social 5 (ZEIS 5). Esse é o reconhecimento fundiário por parte da prefeitura de Salvador no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) para comunidades quilombolas e tradicionais. A comunidade da Gamboa luta desde 1992, quando foi criada a associação de moradores do bairro, para ser reconhecida enquanto comunidade pesqueira. Com a conquista da marca de ZEIS 5, a Gamboa consegue garantias, como a proteção de que a comunidade não será retirada de lá seja por reintegração de posse ou mesmo expropriada para o desenvolvimento de algum projeto imobiliário. O PDDU de 2016, descrito como Lei Municipal n° 9069, transformou a Gamboa de ZEIS 1, regiões caracterizadas como favelas e loteamentos irregulares, para ZEIS 5, territórios ou quilombolas ou tradicionais, ligados ou à pesca ou à mariscagem. De acordo com a Fundação Mário Leal, órgão responsável pelo instauração das ZEIS em Salvador, existem 234 ZEIS na capital baiana, com 214 ocupadas e 20 vazias para futuros projetos habitacionais. Conforme a legislação de Salvador, as ZEIS 5 devem ser implementadas no prazo curto de quatro anos. Ou seja, em junho de 2020, o processo deveria ter sido finalizado. Como a prefeitura não finalizou o processo até junho de 2020, a comunidade da Gamboa acionou a defensoria pública para pressionar o poder municipal. Foi criada então uma Comissão de Regularização das ZEIS da Gamboa, com representantes da prefeitura, da câmara municipal, e das associações de moradores da Gamboa e do Solar da União, comunidade vizinha. “Para criar a Comissão de ZEIS, a gente teve de acionar a Defensoria Pública, fazer um estardalhaço. A Comissão de ZEIS foi criada em março de 2021 e foi criada para pressionar. Tem representante da câmara de vereadores, das comunidades, de órgãos públicos”. Tânia Scofield, presidenta da Fundação Mário Leal, uma das organizações representantes do poder executivo municipal na comissão, sinaliza que não houve atraso por parte da prefeitura na regularização. “Para fazer a regularização fundiária era necessário que a Superintendência do Patrimônio da União da Bahia (SPU) passasse a cessão do terreno para o município. Foram inúmeros ofícios e reuniões com o SPU e somente conseguimos em final de 2019. Em 2021 iniciamos o plano de massa e já concluímos. Também aprovado. Estamos agora elaborando uma legislação urbanística própria com base no plano de massa. Está em curso a regularização fundiária que atrasou em razão da pandemia. Se não fosse a pandemia já teríamos concluído”. A presidenta do órgão destaca que esse é o primeiro processo de regularização de ZEIS feito pela prefeitura de Salvador ou governo do estado, o que torna o processo complexo. A expectativa de Ana Cristina e toda comunidade da Gamboa é de que a comunidade seja a primeira reconhecida como ZEIS 5 na cidade. Esse é o desejo de Yemanjá também.

Foto: Imagem: Pedro Borges

2 de fevereiro de 2022

“Yemanjá é uma mulher guerreira, bonita, preta, forte, e muito solidária”, conta Ana Caminha, presidenta da Associação de Moradores da Gamboa, comunidade pesqueira de Salvador, e Ekedi do Terreiro Ilê Obá Adinilá.

Ela descreve Yemanjá, orixá celebrada no dia 2 de Fevereiro, como a “orixá da prosperidade”. “Ela faz com que os pescadores, mesmo aqueles que dizem não acreditar no candomblé, tenham toda essa relação. Ela é o elo entre os homens e as mulheres do mar com a nossa ancestralidade, com o candomblé”, conta.

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A Gamboa é uma comunidade pesqueira de Salvador, localizada na região central da cidade. Toda a dinâmica da região gira em torno dos pescadores. E são elas e eles, mulheres e homens do mar, quem mais têm uma conexão com a dona das águas.

“Os pescadores realmente acreditam que quem dá para ele o pescado do dia, o sustento da casa, é essa dona das águas. Eles pedem licença para entrar no mar para pegar o peixe. É como se eles pedissem permissão para usufruir do que é dela, o mar. É como se Yemanjá fosse a deusa dos pescadores”.

No Rio Vermelho, outra tradicional comunidade pesqueira de Salvador, há movimentação de saída e chegada de barcos durante todo o dia. É um local onde você vai encontrar pessoas limpando peixes, vendendo, contando histórias do mar. Os pescadores de lá, assim como da Gamboa, têm uma forte conexão com a dona das águas. Além do sustento, é ela quem cuida deles em alto mar.

“Com certeza, Yemanjá estava comigo diante das dificuldades que enfrentei no mar”. É o que diz Romilson Alves, conhecido como Tomate, pescador de 46 anos. “Eu já peguei muito temporal no mar. Antigamente não tinha GPS, sonda, internet, a gente se guiava pelo vento e pela chuva. Eu já passei a situação de chegar onze horas no pesqueiro no dia e chover por 24h, com vento, e a gente à deriva”.

João Carlos da Cruz, conhecido como Chapada, diz ter enfrentado a morte no mar diversas vezes. Nas horas de maior aperto, foi ela, a dona das águas, a quem recorreu. Em uma das situações, Chapada viu um dos dois barcos em que estava com os colegas afundar, o outro ficar sem óleo e ter de enfrentar uma tempestade. “Yemanjá me ajudou neste dia. Eu só chamava por ela. Ela e o nosso pai criador. Era ela quem estava me protegendo e me livrando do mar”.

A conexão entre Yemanjá e os pescadores é forte. Chapada tem convicção de que ele e os colegas recebem uma proteção diária. “De dia à noite ela nos protege. Se num fosse ela, eu num tinha nada. Toda vez que a gente sai para o mar, a gente agradece a ela primeiro. Chama por deus, pede permissão a ela e depois cai nas águas. É a nossa alternativa, a gente vive em cima do que é dela”, conta Chapada.

Casa de Yemanjá

Casa de Yemanjá | Crédito: Pedro Borges

A Associação de Pescadores existe desde 1972. Com sede no Rio Vermelho, bairro conhecido da cidade de Salvador, carrega o nome de Casa de Yemanjá. Lá, todos os dias, pescadores saem para mar, limpam os peixes, e tentam vendê-los para possíveis consumidores que visitam o local. As oferendas para Yemanjá, segundo os pescadores, também são rotineiras e não ficam exclusivas ao 2 de Fevereiro.

Na entrada da casa, há um espaço com imagens da orixá, onde as pessoas entregam flores e oferendas, a serem entregues pelos pescadores ao mar. Desde o dia 25 de Janeiro, existiam oferendas para Yemanjá, que se acumularam com o passar dos dias e a proximidade ao dia 2 de Fevereiro.

Raimundo dos Reis, pescador conhecido como Rasta, conta que as oferendas e a busca dos fiéis pelos pescadores no dia 2 de fevereiro para entregar oferendas para a rainha do mar inspiraram o nome da explica como a casa ganhou esse nome.

“As pessoas sempre faziam oferendas para Yemanjá aqui. Ai um chamava de lá, outro de cá, e ai ficou Casa de Yemanjá. Alguns chamavam de Casa do Peixe, mas ficou Casa de Yemanjá”.

A festa no Rio Vermelho

Romilson Alves, o Tomate, sente uma relação quase familiar com Yemanjá. O aniversário do pescador acontece no dia 1º de fevereiro, um dia antes da celebração da orixá. “Se eu demoro mais pouco, eu nascia no dia 2, no dia dela. Eu nasci dentro da água”.

Ele diz ter um ritual. Tomate gosta de tomar cerveja no dia 1º de Fevereiro, para comemorar a sua data. Às 23h59, para de beber. Neste horário, ele vai para o Dique do Tororó, lagoa famosa da cidade de Salvador onde estão as representações dos orixás, para acompanhar a entrega de um presente para Oxum.

“Eu vou para a minha casa descansar e quando dá umas 10h ou 11h eu volto, porque eu não posso beber, tenho que ter um respeito à fé e faço o preceito. Aí, eu espero dar 16h para levar o cortejo. Eu faço isso há 25 anos, de levar Yemanjá no barco principal do Rio Vermelho”.

Cercado de botes do corpo de bombeiros e da marinha, Tomate é o responsável por levar no barco muitas das oferendas para a orixá. Ele também tem honra de ficar próximo dela, todos os anos. “A responsabilidade é grande, de levar vida no barco, é a responsabilidade de levar a fé de muita gente, de milhões de fiés, tanto no Brasil quanto fora do Brasil”.

Apesar da manutenção da fé, o dia 2 de Fevereiro é marcado por festas, as principais no bairro do Rio Vermelho. Pelo segundo ano consecutivo, por conta da pandemia da Covid-19, a festa de Yemanjá não acontecerá.

Em nota, o prefeito Bruno Reis (DEM) afirma adotar a medida por conta do avanço da pandemia, do aumento do número de internações e mortes por conta da doença. Um trecho da Avenida Oceânica, localizada no Rio Vermelho, ficará fechado durante toda celebração e tapumes foram colocados na praia para impedir aglomeração. O pedido do prefeito é que as pessoas depositem as oferendas para Yemanjá em outros locais e evitem aglomerações.

Tomate acredita que, como toda e qualquer mãe, Yemanjá sente falta dos filhos por perto. “O dia 2 de Fevereiro é especial, é o dia dela. Yemanjá sente falta do calor humano, das filhas e dos filhos”.

Os pescadores também sentem falta. Eles dizem que com os tapumes e a celebração têm dificuldades para sair e pescar e não conseguem levar oferendas dos fiéis, duas fontes de renda importante para o grupo. Eles relatam que alguns trabalhadores chegam a faturar R$1.000 no dia. A prefeitura, em nota, diz não ter uma mensuração do impacto econômico da festa para a cidade de Salvador.

“A gente sente a falta da festa, porque não tem como ganhar o pão de cada dia. Eles colocam portão, colocam tudo e a gente nem tem como sair para trabalhar e, no dia 2 de fevereiro, a gente levava as pessoas para deixar um presente, fazer uma filmagem, levar um negócio, e ai acabou com tudo. Como a gente vai sobreviver? É espera a festa acabar, para cair no mar e ganhar o pão”, conta Chapada.

Os pescadores do Rio Vermelho também relatam dificuldades para a produção da festa de Yemanjá. No ano passado, ainda no contexto da pandemia, afirmam terem investido do próprio bolso R$8.500 para os gastos da festa, como pintura de barcos, produção do presente principal e o investimento na cerimônia religiosa. Afirmam terem recebido um apoio de R$3.000 por parte da prefeitura.

Em 2022, acreditavam no fim da pandemia, na festa de maneira integral e na maior participação dos turistas. Investiram R$12.360. Em reunião com a prefeitura, receberam um comunicado de que não seriam reembolsados do valor. A Alma Preta Jornalismo pediu uma posição da prefeitura, que não negou ou confirmou o relato, apenas afirmou que a “Prefeitura de Salvador apoia anualmente o evento realizado em homenagem a Iemanjá, no dia 2 de fevereiro. Esse ano, como sempre, foi feito todo o possível, dentro dos parâmetros legais que cabe ao poder público, para apoiar a ação e manter essa que é uma das maiores Festas Populares de Salvador”.

Nilo Silva Garrido, presidente da associação de pescadores do Rio Vermelho, afirma que a organização teve má gestões no passado, que dificultaram o acesso a recursos por conta de problemas contábeis. Ele relata que já houve repasses por parte da prefeitura em edições passadas e os problemas contábeis da organização dificultam o apoio do poder executivo.

Ele relata, contudo, que sem apoio e nessas condições, não tem o desejo de organizar a festa em 2023.

Gamboa

Imagem de Yemanjá negra.

Yemanjá | Crédito: Pedro Borges

Na Gamboa, Ana Cristina Silva descreve o 2 de Fevereiro como um “dia mágico”. Ela acredita ser um dia de “perpetuar a ancestralidade”.

Responsável por preparar a comida dos orixás para a celebração, Ana Cristina costuma levantar cedo para deixar tudo do modo como Yemanjá gosta. Enquanto isso, um grupo organiza o balaio para a orixá, onde vão as oferendas para a dona das águas. Ela também é a responsável por mobilizar os pescadores, definir quem levará o principal presente de Yemanjá e organizar toda a comunidade para a entrega das oferendas. 

Yemanjá é descrita como uma orixá vaidosa. Por isso, nas oferendas à dona das águas é comum encontrar perfumes, flores, espelhos, pentes e argolas. Existem também pessoas que escrevem cartas para a orixá, com o agradecimento por conquistas e vitórias, e pessoas que cortam os cabelos e colocam no balaio da orixá como forma de pagamento de promessa.

Os motivos para agradecer Yemanjá são muitos, segundo Ana Cristina. “A gente está tão próximo e em cima do mar, e ela não destrói o que é construído ali, ela está cuidando da gente. Quando ela destrói alguma coisa, ela mostra que algo está errado”.

A presidenta da associação de moradores da Gamboa também acredita que as camisetas e representações de Yemanjá na comunidade são razões para deixar a orixá feliz. “Quando a gente começa a representá-la em nossas camisas e fotos como essa orixá negra, ela está dizendo isso ‘fala para o povo que eu não sou a Yemanjá branca, que foi pintada, que ficou conhecida no mundo’. Ela está dizendo: ‘aceite o povo negro, me aceite’. Eu acho que isso é proteção”, conta.

Luta pela identidade pesqueira

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Pescadores | Imagem: Iago Augusto

Os presentes e as mobilizações, para a comunidade da Gamboa, são uma forma de agradecer e pedir força para a continuação de um processo longo e acirrado de reconhecido da região como Zona Especial de Interesse Social 5 (ZEIS 5). Esse é o reconhecimento fundiário por parte da prefeitura de Salvador no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) para comunidades quilombolas e tradicionais.

A comunidade da Gamboa luta desde 1992, quando foi criada a associação de moradores do bairro, para ser reconhecida enquanto comunidade pesqueira. Com a conquista da marca de ZEIS 5, a Gamboa consegue garantias, como a proteção de que a comunidade não será retirada de lá seja por reintegração de posse ou mesmo expropriada para o desenvolvimento de algum projeto imobiliário.

O PDDU de 2016, descrito como Lei Municipal n° 9069, transformou a Gamboa de ZEIS 1, regiões caracterizadas como favelas e loteamentos irregulares, para ZEIS 5, territórios ou quilombolas ou tradicionais, ligados ou à pesca ou à mariscagem. De acordo com a Fundação Mário Leal, órgão responsável pelo instauração das ZEIS em Salvador, existem 234 ZEIS na capital baiana, com 214 ocupadas e 20 vazias para futuros projetos habitacionais.

Conforme a legislação de Salvador, as ZEIS 5 devem ser implementadas no prazo curto de quatro anos. Ou seja, em junho de 2020, o processo deveria ter sido finalizado. Como a prefeitura não finalizou o processo até junho de 2020, a comunidade da Gamboa acionou a defensoria pública para pressionar o poder municipal. Foi criada então uma Comissão de Regularização das ZEIS da Gamboa, com representantes da prefeitura, da câmara municipal, e das associações de moradores da Gamboa e do Solar da União, comunidade vizinha.

“Para criar a Comissão de ZEIS, a gente teve de acionar a Defensoria Pública, fazer um estardalhaço. A Comissão de ZEIS foi criada em março de 2021 e foi criada para pressionar. Tem representante da câmara de vereadores, das comunidades, de órgãos públicos”.

Tânia Scofield, presidenta da Fundação Mário Leal, uma das organizações representantes do poder executivo municipal na comissão, sinaliza que não houve atraso por parte da prefeitura na regularização.

“Para fazer a regularização fundiária era necessário que a Superintendência do Patrimônio da União da Bahia (SPU) passasse a cessão do terreno para o município. Foram inúmeros ofícios e reuniões com o SPU e somente conseguimos em final de 2019. Em 2021 iniciamos o plano de massa e já concluímos. Também aprovado. Estamos agora elaborando uma legislação urbanística própria com base no plano de massa. Está em curso a regularização fundiária que atrasou em razão da pandemia. Se não fosse a pandemia já teríamos concluído”.

A presidenta do órgão destaca que esse é o primeiro processo de regularização de ZEIS feito pela prefeitura de Salvador ou governo do estado, o que torna o processo complexo. A expectativa de Ana Cristina e toda comunidade da Gamboa é de que a comunidade seja a primeira reconhecida como ZEIS 5 na cidade. Esse é o desejo de Yemanjá também.

“A rainha que para uns é branca, para nós é pretinha” é uma referência à música “Baiana” do Emicida, que diz: “Dois de fevereiro, dia da Rainha / Que pra uns é branca, pra nós é pretinha / Igual Nossa Senhora, padroeira minha / Banho de pipoca, colar de conchinha”.

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