A Justiça do Pará determinou a penhora da sede de um terreiro de candomblé situado em Belém. A decisão é do juiz Adriano Gustavo Veiga Seduvim, da 2ª Vara de Execução Fiscal da Comarca da cidade. O processo foi ajuizado pela Procuradoria Geral do Município, em outubro de 2020, e cobra do templo religioso cerca de R$ 30 mil de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), referente aos tributos de 2016, 2017 e 2018.
A sentença foi proferida no último dia 21 de março, data que celebra o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial e o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. Este último, sancionado em 2023 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
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De acordo com a defesa do terreiro penhorado, a decisão é inconstitucional e também descumpre a legislação municipal. O artigo 150 da Constituição Federal diz que “(…) é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) VI – instituir impostos sobre: (…) b) entidades religiosas e templos de qualquer culto, inclusive suas organizações assistenciais e beneficentes”.
Da mesma forma, na Lei Orgânica do Município de Belém, há previsão no art. 99: “É vedado ao Município: (…) VI – instituir imposto sobre: (…) b) templos de qualquer culto”. Também diz, na Lei Municipal Nº 8.296/2003, que ficam isentos de IPTU os imóveis onde estejam regularmente instalados templos religiosos de qualquer culto.
Segundo a advogada do terreiro de candomblé, Karina Oliveira, do escritório Hugo Mercês Advocacia, a atuação da defesa tem sido no sentido de evidenciar que o IPTU está sendo cobrado de um templo religioso. O objetivo é suspender a dívida e, consequentemente, a penhora.
“Em termos práticos, a penhora é uma restrição no exercício de propriedade. Ou seja, o oficial de Justiça vai lá fazer uma verificação do imóvel, faz com que a proprietária assine um termo de penhora e, a partir disso, ele leva o documento em um cartório e fala que se o imposto não for pago, ela perde a posse. O que é mais grave no caso em questão, é que essa decisão afeta um templo religioso, cuja imunidade tributária é um direito constitucional com reconhecimento internacional”, explica Oliveira.
“Pode parecer apenas uma formalidade, contudo quando atinge um território tradicional é ilegal. Isso porque, conforme a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, aí incluso os povos de matriz africana, esses grupos são culturalmente diferenciados e se reconhecem como tais, com formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica”, analisa a especialista.
Caso a decisão não seja reformada, a defesa do terreiro diz que denunciará o caso ao Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (ConPCT) e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
‘Lei não tem eficácia de implementação’, avalia defesa do terreiro
Apesar do marco constitucional, reforçado pela legislação municipal, a lei não tem efetividade prática, principalmente quando se trata da concessão de imunidade tributária a terreiros de matrizes africanas. Isso se dá porque não é considerada a tradição de organização informal e não institucionalizada da maioria desses espaços, avalia a advogada.
“Pela tradição oral, essas casas têm dificuldades de organizar as burocracias estatutárias, os balanços contábeis e, sem o suporte do poder público, ou reconhecendo a dificuldade ou oferecendo essa estrutura, a lei não vai prevalecer, não vai ter uma eficácia de implementação. Não basta estar escrito, uma lei só tem materialidade se o próprio poder público oferece estrutura para que as pessoas e instituições possam implementar essa norma”, diz Karina.
Para a especialista, a sentença reflete a falta de um olhar que entenda e respeite a realidade dos terreiros. “Todas as vezes que a gente lida com esse tipo de problema, a questão tem que ser levada para o judiciário, gerando um estresse para todas as pessoas que vivem o espaço coletivo da casa de santo, que vivem e que praticam seus cultos, e é nesse contexto que mora o problema”.
Manso Massumbando Quem Quem Neta: 40 anos da tradição Bantu em Belém
Mametu Nangetu, nascida Oneide Monteiro Rodrigues, 78, é a ialorixá responsável pelo terreiro de candomblé Manso Massumbando Quem Quem Neta, da nação de origem angolana Bantu, que funciona há 40 anos no mesmo endereço na travessa Pirajá, em Belém. O espaço também realiza trabalho social, por meio do Instituto Nangetu de Tradição Afrorreligiosa e de Desenvolvimento Social.
“São mais de 50 anos que eu moro aqui e 40 só de terreiro. Esse local não foi escolhido por mim, mas sim pelo caboclo Rompe Mato”, afirma a ialorixá. “A nossa história é de resistência contra a intolerância religiosa desde a fundação. Já teve briga com vizinho, chegaram a apedrejar a nossa casa, atingir meus filhos e a quebrar os telhados”, relembra.
O terreiro Manso Massumbando Quem Quem Neta é o alvo da decisão. Mametu diz que já busca a imunidade tributária há anos junto à Prefeitura, mas esbarra em dificuldades burocráticas. “Em nenhum momento, veio alguém para dizer: ‘olha, eu vou te ajudar, eu vou fazer alguma coisa por ti’”, lamenta.
“No meu entendimento, assim como as igrejas cristãs são isentas de pagar o IPTU, nós também deveríamos ser, porque aqui é um templo religioso. Assim como padres e pastores, eu demorei muito para ser mãe de santo, passei por todo um preparo, uma iniciação, então deveria ter o mesmo direito”, ressalva.
Na visão da liderança religiosa, a sentença é um ataque ao modo de organização dos povos de terreiro. “Isso não vai mudar enquanto não tiver uma pessoa que se preste a entender a gente, assim como já é feito com os povos indígenas, que têm as especificidades para administrar o terreno, que têm a sua hierarquia, a figura do cacique. Do mesmo jeito, aqui tem uma mãe de santo, que administra o espaço, a comida, a bebida e batalha para conseguir alimento para a comunidade”, conclui Mametu Nangetu.
Prefeitura presta informações sobre imunidade tributária
Por meio da Secretaria Municipal de Finanças (Sefin), a Prefeitura de Belém realiza campanhas junto a templos religiosos de diversos cultos para reconhecimento da imunidade sobre impostos e/ou isenção sobre as taxas de urbanização e de resíduos sólidos, também prevista na Lei Municipal Nº 7.933/1998. O pedido também pode ser feito por meio virtual.
“Para solicitar o reconhecimento, o solicitante deve criar um cadastro no site da Sefin, por meio do sistema Siate, que vai gerar um login. Depois de logar, o requerente vai protocolar o pedido de imunidade ou de isenção, fazer as juntadas dos documentos requeridos e expor o processo. Isso vai gerar um processo administrativo, que vai tramitar perante à Sefin, e passar por diversos setores, inclusive o jurídico, onde vai ser gerado um parecer. Por fim, a secretária de Finanças vai subscrever o parecer e publicar no Diário Oficial do Município o reconhecimento da imunidade tributária e/ou da isenção das taxas”, explica a coordenadora do Núcleo Jurídico da Sefin, Ana Luiza Cunha.
Segundo a representante da Sefin, a documentação necessária para requerer as isenções tributárias no sistema é: estatuto, ata e CNPJ do templo e documentação do representante legal (se o processo for protocolado por um advogado, é necessária a procuração do representante do terreiro passando os poderes). Também é preciso que o imóvel seja registrado na Sefin em nome do templo.
A Alma Preta solicitou posicionamento da Prefeitura de Belém, Tribunal de Justiça e Ministério Público do Pará acerca dos apontamentos levantados pela defesa do terreiro de candomblé Manso Massumbando Quem Quem Neta sobre a decisão, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.